Mercadante: crises globais exigem novas relações entre Estado e mercado

Ao Reconversa, presidente do BNDES defende papel dos bancos públicos na transição energética e digital e confirma que neoliberalismo está superado: “O Consenso de Washington não é mais consenso nem em Washington”

Reprodução / Reconversa

Mercadante: não é possível disputar fronteiras como a inteligência artificial, sem instrumentos de políticas públicas

A reinserção do Brasil no cenário geopolítico global é um enorme desafio do ponto de vista do redesenho multipolar que está em curso no mundo. Mas também traz uma rara janela de oportunidades para a agenda de transição digital e energética do país nas próximas décadas. O diagnóstico foi feito pelo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, na terça-feira (9), em entrevista ao Reconversa.

No programa comandado por Reinaldo Azevedo e Walfrido Warde, Mercadante defendeu o papel dos bancos públicos no desenvolvimento dos países, fez um balanço positivo da economia, defendeu o esforço do ministro da Fazenda Fernando Haddad para equilibrar as contas públicas e observou que o fomento de uma nova política industrial é a melhor resposta ao fracasso do neoliberalismo no Ocidente.

“O Consenso de Washington é não é mais consenso nem em Washington”, brincou Mercadante. “Se você abrir o programa industrial do Biden hoje, a última vez que eu abri, faz umas três semanas que eu não vejo, mas estava em US$ 686 bilhões de subsídio não reembolsado”, frisou o petista. “E lá não precisa devolver para o Estado o subsídio, como o BNDES teve que fazer durante todos esses anos, queriam matar o BNDES”, lembrou.

Leia mais: Para Pochmann, Brasil precisa se libertar da financeirização da economia

“A verdade é que os neoliberais estão perdendo o discurso no planeta. Veja o resultado da eleição no Reino Unido: um massacre dos trabalhadores, a maior derrota dos conservadores em 190 anos”, enfatizou.

Mercadante mencionou o fato de que o mundo conta hoje com 555 bancos públicos em 155 países, com ativos de mais de US$ 23 trilhões. “O que mudou? A crise climática, a transição energética, a descarbonização, a transformação digital, elas estão exigindo uma nova relação entre Estado e mercado”, alertou.

Ele citou o exemplo da crise climática, causada, entre outros fatores, pela atuação irresponsável do setor privado. “Só o mercado não consegue responder. Então, você precisa de uma nova relação. Não é o Estado substituir o mercado, não é o banco público tomar o lugar do mercado de capitais e do banco privado. Você tem que trabalhar junto”, defendeu Mercadante.

Leia mais: “Mercado vai ficar surpreso de novo com desempenho da economia”, diz Mercadante

O banco, defendeu, precisa ter um papel preponderante no processo, assumindo riscos que a iniciativa privada não toma para si. “Quem é que dá crédito em 35 anos no Brasil? Ninguém, só o BNDES. Quem é que entrou na Embraer nos momentos difíceis? Celulose: o Brasil tem a maior empresa do mundo. Quem é que financiou? Foi o BNDES”, elencou o presidente do banco.

Nova política de industrialização

Mercadante falou sobre os obstáculos ao processo de neoindustrialização do país e reforçou que mecanismos de concessão de crédito para a indústria, como praticado hoje em países desenvolvidos, são essenciais. O Brasil, felizmente, acaba de aprovar iniciativa voltada ao setor.

“Foi muito importante, queria agradecer a Câmara dos Deputados, o presidente da Câmara, Arthur Lira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e a todos os senadores e deputados que se envolveram, o Guimarães, o Omar Aziz, que foi relator na Câmara do Senado, nós conseguimos aprovar a LCD, a Letra de Crédito de Desenvolvimento”, comemorou.

Transição energética

Mercadante criticou a visão imediatista do mercado, em contraponto ao modelo de desenvolvimento de logo prazo dos bancos públicos. O cenário geopolítico mundial exige a concepção de políticas que considerem horizontes mais distantes, insistiu o economista.

“O que era a globalização está virando fragmentação”, analisou. “O Ocidente está desacoplando da economia chinesa, haverá muita turbulência e instabilidade”, previu. Nesse cenário, o Brasil corre riscos mas também tem oportunidades. “Mas você não tem como disputar sem instrumentos de política pública”.

“O Brasil pode liderar essa transição para uma economia de baixo carbono”, afirmou. “Para essa transição de uma economia de baixo carbono climático e energético, nós já temos a melhor matriz energética do G20. Você pega, por exemplo, biocombustível e etanol: 50 anos de história, que começou com o BNDES. O Brasil é o maior consumidor do mundo de etanol e biocombustível, e o segundo maior produtor”, resumiu.

Para o economista, com a crise climática, a insegurança alimentar será agravada em um cenário de oscilações nos preços das commodities. “O Brasil terá um papel extraordinário”, ressaltou. Mercadante avaliou que o atual quadro geopolítico global levou as economias a aumentarem o protecionismo, razão pela qual os países do Sul Global devem aprofundar as relações comerciais e colaborar em áreas estratégicas.

Mercado digital e IA

Para o presidente do BNDES, o Brasil precisa retomar o processo de reindustrialização de olho na exploração de novas fronteiras tecnológicas, como a transição digital e a inteligência artificial. Ele revelou que empresas espanholas demonstraram interesse em conversar com o governo brasileiro para avançar no mercado digital.

“O argumento deles é o seguinte: o mundo ibero-americano precisa se organizar para participar, porque as nossas informações não terão o mesmo peso em uma rede de inteligência artificial de origem inglesa, por exemplo”, relatou Mercadante. “Temos de pegar nossa cultura, nossas informações e rede de conexões e transformar isso em um potencial grande para competir em uma área que é estratégica”.

Equilibrio fiscal, economia e juros

Mercadante defendeu que é preciso rever o mandato do chefe do Banco Central, hoje descolado do mandato do presidente da República. Na visão dele, esse desalinhamento atrapalha a harmonia das políticas fiscal e monetária. “E é preciso que elas trabalhem juntas, não pode uma atacar a outra, isso não contribui para o desenvolvimento”.

Ele também elogiou o trabalho de Haddad à frente da equipe econômica, diante de um cenário desafiador. “O ministro Haddad está fazendo um esforço gigantesco para dar sustentabilidade fiscal ao Brasil”, reconheceu. “Ele está tentando fazer justiça fiscal, tributar super-ricos, fundos que não tinham nenhuma tributação”. Ele observou ainda que o atual patamar de juros cria um desafio extra, na medida em que a taxa Selic incide sobre a dívida pública, dificultando seu controle.

Apesar das dificuldades impostas pela atual conjuntura política, o petista comemorou os surpreendentes resultados macroeconômicos positivos alcançados pelo governo Lula em apenas 18 meses de gestão.

“[Temos a] menor taxa de desemprego em 10 anos, a maior massa de população empregada da história do índice, 101 milhões de pessoas. O governo Lula gerou três milhões de empregos e um milhão e meio com carteira assinada. Nós estamos com a maior massa salarial real da história econômica documentada do Brasil. Não é qualquer coisa”, argumentou.

Da Redação

Tópicos:

LEIA TAMBÉM:

Mais notícias

PT Cast