Na Europa, Lula aponta os desafios do mundo: desigualdade, clima e era digital

Lula diz que sua viagem ao continente busca mostrar, aos próprios brasileiros, que o mundo gosta do Brasil e que o país é fundamental na construção de uma nova geopolítica

Ricardo Stuckert

Lula encerra na Espanha sua viagem pela Europa

Em uma fala que deixou emocionados todos os presentes, neste sábado (20), na Espanha, última etapa de sua viagem pela Europa, Lula convocou a esquerda mundial a se unir em busca de soluções para os três grandes desafios que enxerga para a humanidade: o fim da desigualdade, a preservação ambiental e a manutenção de relações trabalhistas justas em um mundo cada vez mais digitalizado. E ressaltou que, nesse debate, o Brasil certamente é um ator chave. 

“Essa viagem que fiz pela Bélgica, Alemanha, França e Espanha é uma tentativa de provar, para o próprio povo brasileiro, que o mundo gosta do Brasil. Sou muito grato ao presidente Pedro Sánchez, que me recebeu, ao Macrón e ao Olaf Scholz, que me receberam, ao Parlamento Europeu, que me tratou com a maior dignidade. Porque não é o Lula que é importante, é o Brasil que é necessário ao mundo neste instante para discutir uma nova geopolítica”, disse, lembrando que o país já mostrou ser possível vencer a fome e preservar o meio ambiente, duas conquistas que estão sendo destruídas hoje por Jair Bolsonaro.

“O faminto está fragilizado, temos de estender a mão”

Lula falou em Madri, durante o evento Construindo o futuro: desafios e alianças populares, convocado pelo partido espanhol Podemos e que reuniu sindicatos, legendas e lideranças progressistas europeias. “Precisamos colocar a desigualdade no centro da nossa pauta”, defendeu. “Nós, que tomamos café, que almoçamos todo dia, que jantamos, temos a obrigação ética e moral de estendermos a mão para que essa gente tenha o direito de comer”, completou, lembrando que o planeta abriga 800 milhões de seres humanos que hoje não têm acesso à comida suficiente para viver com dignidade. 

Para Lula, o combate à desigualdade deve ser encampado pela esquerda do mundo, uma vez que uma extrema-direita age de forma cada vez mais agressiva contra os mais pobres. “Trump ganhou as eleições nos Estados Unidos com uma frase simples: ‘América para os americanos’, ou seja, chega de latino, de africano, de muçulmano. A pobreza incomoda. Tanto que até entre famílias os mais pobres não são convidados para aniversários. Mas como é possível, num mundo que produz mais comida que consome, haver 800 milhões de pessoas sem ter o que comer? Essa tem que ser nossa bandeira. Porque o faminto não faz a revolução, o faminto está fragilizado. Nós é que temos de estender a mão para eles”, disse, antes de ser muito aplaudido (assista à integra do discurso no fim desta matéria).

“A Amazônia é brasileira, e sua riqueza deve ser compartilhada”

Segundo Lula, a desigualdade está fortemente relacionada com o outro grande problema da humanidade, que é a questão ambiental. “Meio ambiente não é só a questão da Amazônia. Precisamos discutir a questão das favelas, da coleta de água e esgoto, a despoluição dos rios e das praias. Muitas vezes, a gente só fica falando da Amazônia e não vê o cara ali morando numa palafita, fazendo as necessidades biológicas dele e os caranguejos comendo, e ele vai comer o caranguejo depois. Isso já foi escrito em 1946 por Josué de Castro, que em Geografia da fome descreveu exatamente o que ainda ocorre no século 21”, ressaltou.

O ex-presidente brasileiro, porém, não minimizou a importância da preservação das florestas, sobretudo da Amazônia, que, de pé, pode ser fonte de inúmeras descobertas científicas que beneficiem a população brasileira e mundial. “Na questão da Amazônia, a gente tem que deixar claro que a Amazônia é um território brasileiro, portanto o Brasil é soberano. Agora, a riqueza da biodiversidade tem que ser compartilhada com o mundo. Temos que compartilhar com o mundo a pesquisa. Não queremos transformar a Amazônia num santuário. O que queremos é explorar cientificamente a riqueza da biodiversidade para, dela, a gente ver se tira alguma coisa para dar ao povo brasileiro e ao povo do mundo”, defendeu. 

E lembrou: “A questão ambiental não é mais um problema de ambientalistas, de um Partido Verde, de uma classe média sofisticada, intelectualizada. Não. É uma questão do povo do planeta Terra, nós só temos ele. Precisamos colocar a questão ambiental na ordem do dia. Não é possível mais pensar em desenvolvimento, em emprego, sem considerar a questão ambiental”.

“Convenceram as pessoas de que elas são pequenos empreendedores”

Como terceiro ponto que merece a atenção das forças progressistas de todo o mundo, Lula destacou o emprego na era digital.  “Noventa por cento da indústria de dados é dominada hoje pelos Estados Unidos e pela China. A indústria de dados, alguns dizem, será o que petróleo foi no século passado. Vocês jovens terão de discutir como será o mundo digital, o emprego na era digital. Cada coisinha que você está fazendo no seu celular está sendo guardado e isso vai valer dinheiro. E o povo do Brasil, da Espanha, o povo do mundo que não é chinês nem americano, precisa começar a pensar nisso”, alertou.

Para Lula, o avanço desse mercado digitalizado representa um desafio imenso aos sindicatos. “Se não pensarem nessa questão, os sindicatos vão perder o trem da história e as pessoas começarão a se perguntar para que serve um sindicato. Porque essas pessoas (empregadas no mundo digital) são trabalhadoras. E veja que as empresas, num primeiro momento, venceram a batalha porque conseguiram convencer as pessoas de que elas são ‘pequenos empreendedores’. Você está trabalhando em casa usando a sua água, a sua conta de luz, a sua mesa, gastando parte do seu dinheiro e trabalhando o dobro do que você trabalhava achando que você é pequeno ou pequena empreendedora”, analisou.

“Os Estados pobres precisam unir universidades, que é quem tem inteligência, a juventude, que é quem pode pensar no futuro, os empresários e os sindicatos para a gente pensar sobre isso. É urgente. Obviamente que o mundo não vai acabar por conta disso, mas a gente vai ficar refém de indústria que a gente não conhece, de empresário que a gente não conhece”, completou.

“Jovens, não desistam da política”

Por fim, Lula disse que a esquerda, que defende os interesses da classe trabalhadora e dos excluídos, precisa compreender por que o mundo assiste atualmente o avanço da extrema direita. “Temos de analisar o discurso deles e entender por que essa gente voltou a convencer uma parcela da sociedade. Por que a população deu a eleição ao Trump e não aos democratas, que tinham o símbolo de uma mulher concorrendo à Presidência? Qual foi a mentira que eles contaram? Qual foi a mentira que contaram aqui na Espanha e fez surgir o Vox, mais à direita que a direita? Qual é o problema que faz a França ter dois candidatos de extrema-direita? Como pode ter surgido o Bolsonaro no Brasil?”, indagou. 

“Temos de analisar isso. Não deve ter sido erro apenas dele, deve ter sido erro nosso também. O que nós deixamos de fazer? É preciso que a gente comece a pensar nisso, para termos certeza de que vale a pena lutar. E a juventude, pelo amor de Deus, saibam que uma das coisas que está fazendo a extrema-direita crescer é a negação da política. Então, queria pedir: não desanimem”, concluiu.

Assista à íntegra da fala de Lula:

Da Redação

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