Nobel da Paz se diz consternado com perseguição política contra Lula
Em entrevista ao Diário do Centro do Mundo, Nobel da Paz de 1996, José Ramos-Horta avalia a conjuntura política do Brasil e fala sobre arbitrariedade da prisão de Lula
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Em entrevista do Diário do Centro do Mundo, ganhador do Nobel da Paz de 1996 por ter percorrido o mundo pela autodeterminação do Timor Leste durante a ocupação indonésia, José Ramos-Horta agora usa sua visibilidade para denunciar outro ataque político, cometido contra o ex-presidente Lula da Silva.
Para Ramos-Horta, a obviedade da perseguição política orquestrada contra o brasileiro já era clara, mas foi apenas reforçada pelas revelações do site The Intercept, que ainda assim o deixaram “consternado”, nas suas palavras.
Antes defensor de uma cadeira do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, já não defende essa posição sob a presidência de Jair Bolsonaro (PSL). Tendo passado por diversos cargos na Organização das Nações Unidas, ele não fala diretamente de outros chefes de estado, mas quando mencionado o atual presidente brasileiro, Ramos-Horta diz que as violações de direitos humanos obrigam-lhe a se manifestar.
O também ex-presidente do Timor Leste acredita que o Brasil, por sua história, pode dar um grande ensinamento ao mundo.
Nesta entrevista exclusiva para o DCM, ele diz qual e propõe um rumo para o país. Também fala da indicação do ex-presidente Lula ao Nobel da Paz, da submissão brasileira aos Estados Unidos, do silêncio dos líderes de países lusófonos sobre o caso Lula e da imagem do Brasil no exterior.
DCM – Como o senhor reagiu às revelações sobre a Operação Lava Jato?
Ramos-Horta – Devo começar reafirmando a minha profunda admiração pelo povo brasileiro e pelos muitos progressos sociais, técnicos e científicos que o Brasil registrou ao longo de décadas. Antes da presidência de Lula, o Brasil já era o maior produtor e exportador mundial de alimentos e já produzia a Embraer, enviava satélites para o espaço, dominava ciência, medicina, tecnologia, rivalizando com as grandes potências mundiais.
E o Brasil teve sempre uma política externa independente e previsível, promovendo e reforçando a arquitetura multilateral assente no Direito Internacional e cooperação regional, e cooperação Sul-Norte e Sul-Sul. Os brasileiros devem orgulhar-se destas grandes conquistas.
A presidência Lula teve um grande enfoque nos programas sociais, como a China, de eliminação da extrema pobreza, redução da extrema desigualdade social. Por isso, primeiro como Chanceler (2001-2006) e depois como Presidente (2007-2012) fui um dos maiores defensores da eleição do Brasil como membro Permanente do Conselho de Segurança da ONU. Apoiei ativamente, fazendo eu próprio lobby ativo junto aos delegados do Comitê Olímpico Internacional para a escolha do Rio para receber os Jogos Olímpicos.
Por tudo isso, fiquei profundamente consternado com a perseguição política, era óbvio que foi perseguição política, orquestrada contra Lula. E profundamente consternado, chocado, com as verdades apresentadas pelo Intercept.
Quando há cerca de um ano li sobre a midiatização do processo anti-Lula, eu comentei que o Juiz Moro devia ser mais discreto, profissional, prudente. O meu país é jovem, temos menos de 20 anos de independência, o nosso Procurador-Geral da República é jovem, modesto, muito corajoso mas fala muito pouco à mídia. Ele não faz teatro, não procura humilhar ninguém.
De que forma o senhor interpreta o que aconteceu desde a destituição de Dilma Rousseff até a prisão de Lula?
Não conheci a presidente Dilma, que não parecia tão carismática, experiente e “charmosa” como Lula. Mas foi óbvio que a destituição de Dilma não tinha base factual e legal legítima. Dilma foi proativa na luta contra a corrupção e não a derrubaram por corrupção. Mas tinham que destitui-la para chegar a Lula.
O senhor conheceu Lula e o recebeu como chefe de Estado no Timor Leste. Como foi esse encontro?
Não sou o único admirador de Lula. Ele é admirado em todo o mundo. Nós já tínhamos contatos com Lula e PT nos anos oitenta quando eu próprio não acreditava que algum dia Lula poderia ser eleito presidente do Brasil pois o Brasil era uma sociedade exclusivista – que excluía os pobres, negros, mulatos e índios. Óbvio que na sociedade brasileira branca há também milhões de pessoas liberais, de esquerda, conservadores com consciência, não racistas.
Eles votaram em Lula. Mas o poder corrompe e quanto mais alguém, um partido, fica no poder, maior é a tentação do poder e riqueza. Mas Lula é mesmo um homem genuíno, simples, homem do povo. Não provaram nada contra ele. Foi uma grande injustiça, estão a perseguir um homem bom, um homem que mudou o Brasil para melhor.
O senhor se manifestou à época das eleições presidenciais do Brasil dizendo que sempre defendeu uma cadeira do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, mas que não o faria com Bolsonaro no poder. Por quê?
Óbvio que não vou continuar a defender quando o próprio presidente Bolsonaro, se desinteressa pela ONU e o Brasil foi entregue à proteção da Virgem Maria?
Como o senhor avalia que Bolsonaro mantenha Moro no cargo e o defenda, como tem feito nos últimos dias?
O presidente Bolsonaro foi eleito porque Lula foi impedido de se recandidatar. Mas ele é o presidente do Brasil. Eu não me pronuncio sobre políticas exclusivamente domésticas do Brasil mas quando as políticas são de natureza racista, contra negros, os LGBT, os povos indígenas, etc. tenho que me pronunciar, não posso ficar calado. Os Direitos Humanos são consagrados internacionalmente e violações desses direitos, incitação e discursos que subvertem as obrigações internacionais, já não são matéria de jurisdição doméstica.
Por que, na sua percepção, Bolsonaro é tão submisso aos Estados Unidos?
Eu tenho ótimas relações pessoais nos EUA, conheço e admiro os EUA, tenho relações de amizade com dezenas de membros do Congresso e Senado Americanos. O Brasil será mais respeitado quanto à sua independência em relação às grandes potências mundiais, não ser adversário ou inimigo de ninguém, relacionar com todos os vizinhos com respeito e não ingerência, ganhando respeito e confiança como pacificador e mediador. A dimensão
do Brasil, a sua posição no G20, as relações equilibradas que o Brasil cultivou durante décadas dão ao Brasil o privilégio de poder ter um papel importante na mediação internacional. E isto que esperamos do Brasil, um país do sul, ouvido pelo norte rico, ouvido por todos.
É uma surpresa que agora sejam reveladas conversas em que Dallagnol cita uma articulação com os “americanos”?
Presidente Trump, como qualquer presidente americano é temporário, tem quatro e talvez oito anos no poder. O Congresso é extremamente importante, uma instituição que conheço muito bem, de muita influência. Envolvimento americano em questões sensíveis puramente domésticas de outros países está rigorosamente proibido por lei, pode resultar em investigações pelo Congresso com consequências negativas para todos.
Como fica a imagem do Brasil com Moro e Bolsonaro?
Obviamente muito negativa pelo mundo.
A política externa atual é favorável a uma integração com os países de língua portuguesa?
Não sei, não posso fazer uma avaliação justa. Dilma também não mostrou muito interesse na CPLP. Lula era extremamente popular na CPLP, como o foi globalmente no mundo. E acho triste, decepcionante, que figuras públicas da CPLP tenham estado indiferentes ao calvário de Lula. Talvez tenha havido algumas iniciativas discretas. Não sei. Lula foi abraçado, ele abraçou todos, na CPLP. Imagino a dor que ele deve sentir por os seus “amigos” da CPLP estarem tão calados.
Como vê a ascensão de discursos autoritários e violentos no mundo, como de Rodrigo Duterte nas Filipinas e de Bolsonaro no Brasil?
Há obviamente uma ascensão da extrema direita em alguns países mas é um fenômeno ocidental, um pouco na América latina, não na África ou Ásia. Mesmo na Europa não exageremos esse fenômeno pois exceções importantes são Portugal, Irlanda, Dinamarca, Holanda, Espanha e a previsão de uma onda da extrema direita em toda a Europa, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, não se verificou. No México, o fenômeno é inverso. A esquerda está no poder. Na Ásia, nada alterou radicalmente em relação ao passado. Duterte é um caso raro, não é a norma na Ásia.
Enquanto ganhador do Nobel da Paz, o senhor acredita que Lula deve ganhar o prêmio?
Sei que Lula foi proposto e a decisão do Comitê Nobel de Oslo será conhecida em outubro. O Comitê Nobel não gosta de lobbies. Eles recebendo as propostas, analisam, fazem mais investigação dos três nomes que constam de uma “short list” e decidem.
Tendo em vista seu papel na resistência no Timor Leste, o que o mundo precisa para obter paz e se ver livre dos discursos de ódio?
Há esforços de muitas instituições e personalidades em todo o mundo na promoção do diálogo, tolerância, respeito mútuo, prevenção e mediação de conflitos. Não acredito que vamos assistir a uma guerra entre os EUA e o Irã, EUA e China, etc. Os EUA não querem perder a hegemonia econômica e financeira mundial. A tecnologia 5G desenvolvida pela China alarmou Washington.
A guerra de tarifas lançada por Trump afeta a economia chinesa mas vai ser salutar para a China pois ela vai investir muito mais para desenvolver os seus próprios sistemas operativos e Google e Apple vão perder o seu maior mercado mundial. A China vai emergir mais forte. O Brasil deveria retomar a política de Lula, construir mais pontes com a África e Ásia, obviamente também com os seus vizinhos, Europa, EUA. Pela história do Brasil, por ser um país afro-europeu, deveria ser o maior proponente mundial de diálogo de povos, religiões, civilizações.