Professores estrangeiros exaltam Paulo Freire, atacado pelo governo
Formados em raízes freirianas, educadores lembram da universidade do pedagogo brasileiro e da importância do ensino livre
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Quem é, quem foi Paulo Reglus Neves Freire? Esta é uma pergunta que parece difícil de ser respondida por integrantes e simpatizantes do atual governo, que tentaram, inclusive, retirar do educador o título de Patrono da Educação Brasileira. Em uma sucessão de textos obscuros nas redes sociais, houve até quem criticasse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ter “indicado” Paulo Freire para seu governo, algo impossível de acontecer, já que o professor morreu em 1997, aos 75 anos, e o primeiro mandato de Lula começou em 2003.
“Paulo Freire em tempos de fake news” é justamente o tema de curso on-line oferecido pelo instituto que leva o nome do educador, que será realizado de 2 de maio a 24 de junho, com 18 docentes, do Brasil e do exterior. Serão 16 videoaulas, de até 30 minutos cada. Uma oportunidade para quem não conhece a obra e o pensamento de Freire, quem em 1994, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, disse que, em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado do Brasil com ou sem ele, mas faltou decisão política.
“A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista”, afirmou na ocasião. Para ele, o discurso da classe dominante mudou, mas “ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”. Forçado a sair do país em 1964, Paulo Freire teve seu método chamado de “subversivo”, justamente por unir educação à percepção, pelos alunos, de suas condições de vida.
No retorno ao Brasil, o educador – nascido em 19 de setembro de 1921 no bairro Casa Amarela, em Recife – deu aulas na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e foi secretário municipal de Educação, na gestão da prefeita Luiza Erundina. Ganhou dezenas de títulos honoris causa e reconhecimento internacional por seu trabalho no campo da educação. O atual presidente da República já falou em usar um “lança-chamas” no Ministério da Educação “para tirar o Paulo Freire de lá”.
Freire era um “democrata radical”, na definição do professor Moacir Gadotti, responsável pelo instituto. Em entrevista, Ana Maria (Nita) Freire, viúva de Paulo, afirmou que ele nunca foi “comunista” e que nenhum dos Bolsonaro tinha conhecimento sobre o educador e sua obra para poder criticar.
Educação e justiça
Fora do Brasil, profissionais da educação se espantam com os ataques dirigidos a Paulo Freire. Mas têm explicações para o fenômeno. “Freire e a educação popular trabalham numa perspectiva de justiça social, com e pelos pobres. O atual governo brasileiro atua contra a justiça social e contra os pobres, é simples assim”, resume, por exemplo, o italiano Alessio Surian, professor associado da Universidade de Pádua, uma das mais antigas daquele país, e um dos docentes participantes do curso on-line.
Para Surian, o brasileiro “tem importância fundamental e fundamentalmente poética”, impossível de resumir em poucas palavras. “É preciso ler a sua obra e as obras que ajudam esta leitura. Penso nos trabalho feitos por (Carlos Rodrigues) Brandão, (Sonia) Couto, Gadotti, (Oscar) Jara, (Daniel) Shugurenky e tantos outros. Para mim, foi importante ler Freire e sobretudo a sua abordagem no trabalho com grupos, com círculos de cultura, em “Educação como Prática da Liberdade” em conexão com o trabalho do Orlando Fals Borda (professor colombiano). A educação precisa da atenção do Freire e do Fals Borda pela dimensão evolutiva da cultura, pelo papel da educação popular, pela práxis, as vivencias individuais e coletivas, a transformação da realidade gerada pela capacidade coletiva de ler, ao mesmo tempo, a palavra e o mundo.”
Professor aposentado da Universidade de Cabo Verde, Florenço Mendes Varela considera Freire, de certa forma,um dos patronos da educação mundial. E diz ver “com profunda angústia” o ataque ao educador. “Enquanto freiriano, interpreto esses falsos juízos sobre o que representa a herança de Paulo Freire como um atentado à educação no mundo global. As ideias pedagógicas de Paulo Freire se inscrevem na paisagem educacional global”, afirma, citando as referência ao brasileiro no cenário mundial.
“Mas convém observar de onde vem as críticas a Paulo Freire”, acrescenta Varela. “Seguramente, de pessoas adeptas de ‘educação baseada em conteúdo’, na trilha do imediatismo, portanto contrário à perspetiva freiriana de uma educação enquanto processo em construção permanente onde as pessoas se educam mutuamente, baseada numa educação como espaço de diálogo, que encara a escola como a ‘boniteza de um sonho’ que lida com ser humano e com sua transformação.” Segundo ele, vive-se a falta de pensamento crítico, “num contexto da pós verdade em que as pessoas aceitam com facilidade as informações sem análise crítica, sem a pedagogia dialógica ao invés de despertar a esperança e buscar o equilíbrio na escola”.
Doutor em Ciências da Educação e integrante do Fórum Mundial de Educação, Surian participava de evento na Espanha, em 1985, e estava hospedado na casa do diretor teatral Raymond Aldecosía, onde encontrou dois livros que chamaram a sua atenção: Educação como prática da liberdade (publicado originalmente em 1967) e Educação Libertadora (com Ernani Fiori e José Luis Fiori). “Na hora da despedida, o Raymond, que tinha reparado na minha atenção, quis que eu levasse os livros de presentes e foi me contando como as ideias do Freire foram ajudando o trabalho educativo dele na Guatemala. Muitas vezes na minha vida, encontrando educadores inspirados por Paulo Freire, fui marcado pela mesma generosidade humana, cultural, profissional que vivenciei com Raymond.”
Segundo o professor italiano, foram livros “inspiradores para trabalhar com grupos, seja nas lutas pelo direito a moradia, pela paz, de alfabetização de adultos”. Em julho de 1986, ele pôde conhecer Freire pessoalmente, em Assis, na Itália, “na época que ele também estava assessorando a educação popular na Nicarágua e com os Misquitos (povo indígena daquele país)”. “Um encontro que marca uma vida”, recorda.
Varela conta que teve “o privilégio” de trabalhar com o Instituto de Ação Cultural (Idac) entre os final dos anos 1970 e o início dos 1980, como coordenador nacional de alfabetização. “Como sabe, Paulo Freire esteve exilado durante 16 anos pelo regime ditatorial brasileiro, sendo 10 anos em Genebra, na Suíça, como membro do Departamento da Educação no Conselho Mundial das Igrejas. O Conselho Mundial das Igrejas foi relevante para fortificar e internacionalizar seu pensamento, através de conferências, pesquisas e escritos. Nesse contexto, Paulo Freire esteve em Cabo Verde em 1977 e 1979 dirigindo o seminário de formação dos educadores de adultos”, lembra o professor, acrescentando que o Idac, fundado por Freire, “servia de ponte para divulgar e debater suas ideias pedagógicas, com destaque para a África e em outras partes do mundo”.
“Paulo Freire foi o educador que lançou as bases para uma educação libertadora que contribuiu para formar a consciência crítica e estimular a participação responsável do indivíduo nos processos culturais, sociais, políticos e econômicos”, prossegue o educador cabo-verdiano. “Se Amílcar Cabral (político e escritor, assassinado em 1973) foi para Paulo Freire a expressão da teoria articulada à prática revolucionária, Paulo Freire foi para Cabo Verde a possibilidade de uma prática educacional reflexiva monitorada, portanto, teoricamente assistida. As ideias pedagógicas de Paulo Freire se inscrevem na nossa paisagem educacional.”
Sem partido?
Também chama a atenção o Escola sem Partido, movimento que prega um ensino “sem ideologia” e o cerceamento à atividade do professor. Não é um fenômeno apenas brasileiro. “As ciências da educação mostram claramente a vacuidade e a posição ideológica de quem fala de um ensino sem ‘ideologia’, diz Alessio Surian. “Precisamos encontrar formas coletivas e solidarias frente a estas ameaças a uma educação de qualidade, uma educação dialógica.”
Ele cita episódio na Alemanha, “onde o partido radical AfD convidou os alunos para fazer denúncias de professores que não mantenham ‘neutralidade política’, lançando um site onde estudantes poderiam enviar denúncias”. O resultado foi que milhares de docentes resolveram se “auto-denunciar” e escreveram uma carta aberta, na qual se lê: “Da história, sabemos que o que começa com denúncia e intimidação termina com a detenção de dissidentes em campos. Por todas essas razões, e porque não estamos intimidados, ficaríamos honrados se você pudesse colocar nossos nomes em sua lista de denúncias”.
Para o professor Varela, de Cabo Verde, a campanha contra Freire busca, na essência, “dissuadir as políticas públicas que têm educação como expoente”. Ele considera a Escola sem Partido uma invenção de conservadores. “Paulo Freire dizia é necessário ter a consciência de que toda educação é ideológica, e que a força dessa ideologia é ainda mais intensa quando ela fica oculta sob a máscara da neutralidade.”
Por fim, as notícias falsas, ponto de partida do curso. Surian conta que a Itália também enfrenta problemas, “muito graves”, com as chamadas fake news. “Também a forma que o ministro do Interior italiano utiliza as redes sociais se parece muito com a forma do presidente do Brasil de trabalhar com elas.”
O problema é mundial, observa o professor Varela, e Cabo Verde não foge à regra. “O conhecimento se tornou muito importante e principal fator de produção. Se por um lado temos uma conectividade planetária como imensa oportunidade, vale lembrar que apenas cinco grupos dominam o mundo digital através do chamado denominador Gafam: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. Curiosamente, todas norte-americanas e que controlam todas as mensagens, se apropriam da privacidade das pessoas e instituições e vendem esse privilégio em forma de publicidade para sistema de segurança e, naturalmente, para políticos que usam e abusam dessa imunidade.”