RJ: 22 crianças foram baleadas em 2020; oito morreram, todas eram negras

Na sexta-feira, duas primas de 7 e 4 anos foram mortas quando brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias. Crianças e adolescentes em comunidades de vulnerabilidade social são as principais vítimas de ‘bala perdida’.

Da Redação, Elas Por Elas

Mais de 200 pessoas acompanharam o enterro, no último sábado, das primas Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7 anos, e Emilly Victoria da Silva Moreira Santos, de 4. O evento foi marcado por grande comoção e indignação. Elas brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, quando aconteceu o suposto ‘tiroteio’.

Estava chegando do trabalho, por volta das 20h30, e quando desci do ônibus começaram os disparos.A rua estava cheia de crianças e pessoas chegando do serviço. Tinha uma viatura Blazer da PM parada em frente à rua e fizeram uns dez disparos de fuzil. Quando os policiais foram embora, atravessei e vi a Emilly atingida na cabeça, já sem vida. Depois minha nora veio gritando dizendo que tinham matado a Rebecca também. A mesma bala que pegou a Emilly atingiu o coração da Rebecca. Ela deu uns passos e caiu no quintal. Quando vi que ainda estava respirando, corri para a UPA de Sarapuí, mas já era tarde.“, contou a avó de Rebecca e tia de Emily ao jornal Extra.

Ela conta que viu os policiais atirarem com fuzis em direção à rua e que não houve confronto com criminosos. Em nota, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar nega que os policiais tenham feito disparos. O caso foi encaminhado para a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF). Segundo a Polícia Civil, a investigação está em andamento.

Esse não é um caso isolado. O estado do Rio de Janeiro vem registrando um aumento considerável no número de crianças mortas por bala perdida. Apesar do “perdida”, o alvo não é tão aleatório assim. Levantamento da plataforma Fogo Cruzado revela que as crianças mortas são sobretudo negras e de comunidades de vulnerabilidade social.

As estatísticas da ONG Rio de Paz também mostram que nos últimos cinco anos houve uma mudança de padrão na curva de mortes de  crianças baleadas . De 2007 até 2014, a média era de três óbitos por ano. Em 2015, o índice atingiu pela primeira vez a marca de sete casos. De 2016 a 2018, foram dez casos a cada ano. Em 2019, o indicador voltou a cair para sete. O ano de 2020, no entanto, já se tornou o mais letal para crianças vítimas de armas de fogo.

Um ponto importante em relação a essa violência armada que viola os direitos de crianças e adolescentes, apontado pela Justiça Global, é que a denominação “balas perdidas”, usada popularmente pelo senso comum e meios de comunicação, não constitui conceito jurídico. Ou seja, isso impede uma padronização nas ocorrências que envolvem essa categoria, o que resulta na ausência de estatísticas oficiais para esse tipo de morte, mascarando a participação do Estado na produção de conflitos e mortes em favelas, periferias e outras áreas empobrecidas no Rio de Janeiro. 

A maioria das contagens são feitas pela imprensa ou por organizações da sociedade civil com base em notícias, logo estão sujeitas à subnotificação.

 

Além de ceifar o futuro das crianças e adolescentes, a maioria dos casos sequer tem uma investigação a contento e permanece sem resposta — com notas frias de assessoria de imprensa da PM, sem respeito algum às versões dos fatos, principalmente quando envolve moradores e familiares, e uma rápida comoção na mídia, mas sem consequências práticas que envolvam proteção e responsabilização dos culpados.

“Temos casos de expressão da mídia como a morte da Ágatha, que estava em uma kombi com a família; e o caso de João Pedro, que brincava no quintal de casa e teve seu corpo alvejado e retirado pela PM sem o consentimento da família. E percebam que, mesmo com tanta visibilidade, ainda não há uma solução concreta e uma responsabilização. Imaginem quantas crianças e adolescentes, principalmente negros e negras, seguem expostos à violência e sem direito a um futuro por conta dessa prática genocida estimulada pelo atual presidente e seus seguidores nas mais diversas instâncias estaduais e municipais”, denuncia Anne Moura, secretária nacional de Mulheres do PT.

Em setembro desse ano, a organização Justiça Global enviou um ofício para a Relatora Especial Sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias Ou Arbitrárias das Nações Unidas, Agnes Callamard, evidenciando o quadro de extrema gravidade de violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro contra a população negra e/ou moradora das favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro, em especial contra crianças e adolescentes vítimas de violência armada.

No documento, eles apontam os dados desagregados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro sobre “Homicídios Decorrentes de Intervenção Policial” ocorridos no primeiro trimestre de 2020 no Rio de Janeiro. Das 435 vítimas, 75,4% eram pretas e pardas. Esse número que já evidencia o caráter racial da letalidade policial pode ser muito mais agudo, já que, em 60 casos o campo da classificação étnico-racial estava “sem informação ou ignorada”, o que equivale a cerca de 13,8% das mortes, superando inclusive o número de pessoas brancas vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial, que é de 10,8%.

Criança e adolescente 

Em 58,86% dos casos contra criança e adolescente, o que representa 256 pessoas, mais da metade das vítimas, não havia registro nos campos data de nascimento ou idade, o que nos impede, mais uma vez, de olharmos com mais precisão os impactos da violência policial na infância e juventude. Segundo ofício da Justiça Global, a falta de dados públicos representa um problema para a identificação e adoção de políticas públicas de enfrentamento à violência.

Das vítimas de homicídio em decorrência de intervenção policial, com informação do campo idade, 30 tinham entre 14 e 18 anos, destas 76% são pretas e pardas.

 

Levantamento de dados realizado pela organização sobre violência letal contra crianças e adolescentes no estado do Rio de Janeiro, entre janeiro e junho de 2020, indica que ao menos 23 crianças e adolescentes foram atingidas por armas de fogo, sendo 8 baleadas e 15 mortes registradas.

Seguem abaixo as informações referentes aos óbitos, apresentando os nomes somente por suas iniciais em respeito às normativas internas de identificação de crianças e adolescentes.

 1. A.C.S.N: 8 anos, negra, morreu depois de ser atingida na cabeça por uma “bala perdida” no sofá de sua casa, no bairro Parque Esperança, em Belford Roxo, Baixada Fluminense, na madrugada do dia 10/01/2020. Segundo a polícia não havia operação na região e agentes policiais foram abordados por moradores quando passavam por uma avenida próxima à casa da menina e em seguida o pai apareceu carregando-a nos braços e a polícia a levou até o hospital. A família informou à corporação que disparos foram ouvidos pouco antes de a menina ser atingida. De acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, que monitora os tiroteios no Rio de Janeiro, Anna Carolina teria sido a primeira criança vítima de bala perdida em 2020. Ainda segundo o aplicativo, em 2019 foram 112 jovens até 12 anos baleados no Grande Rio. Destes, 60 morreram.10

  1. Adolescente não identificado: Um adolescente não identificado morreu no dia 20/01/2020, segundo a polícia, ao atacar a base da Unidade de Polícia Pacificadora Nova Brasília, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O caso aconteceu durante a troca de turno da base Alvorada da UPP. De acordo com a Polícia Militar, os agentes reagiram ao ataque, ferindo o adolescente. A PM disse que encontrou com o adolescente uma pistola, drogas e uma moto. O caso foi registrado na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC). 
  2. J.V.M.S: de 14 anos, negro, faleceu após ser atingido por um tiro de “bala perdida”, quando voltava do aniversário de uma prima no dia 31/01/2020, na Vila Kosmos, na zona norte do Rio de Janeiro. O jovem chegou a ser levado para onde ficou internado em estado de saúde gravíssimo por cinco dias e não resistiu aos ferimentos e morreu. Em nota, a PM informou que não havia operação no momento em que o adolescente foi baleado e que a equipe do 41º BPM (Irajá) foi acionada para uma ocorrência no Hospital Getúlio Vargas, na Penha, para verificar a entrada de uma pessoa com ferimento provocado por projétil de arma de fogo. 
  3. L.A.J.F.S: de 14 anos, negro, morreu após ser atingido na perna por uma “bala perdida” na comunidade Vila Ruth, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense no dia 06/02/2020. Ele foi internado após ser baleado no momento em que saía de uma consulta com o psicólogo e estava acompanhado da mãe adotiva, que informou que a Polícia Militar negou socorro ao adolescente. Segundo a assessoria do hospital ele deu entrada em estado muito grave e passou por uma cirurgia de emergência. Chegou a ser levado para o CTI (Centro de Tratamento Intensivo), porém não resistiu aos ferimentos e morreu. De acordo com a imprensa local, o garoto estava em processo de adoção. 
  4. Y.S.J.: 15 anos,negro, faleceu ao ser baleado dentro do carro de sua família: no dia 23/02/2020, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O carro em que estava com seu pai e irmã foi atingido ao entrar na comunidade Rodrigues Alves na madrugada de sábado (22)12.. Seu pai e sua irmã também foram atingidos, mas não morreram. A família estava a caminho de Cabo Frio para passar o Carnaval e parou em frente à casa de uma terceira adolescente para dar carona e enquanto aguardavam dentro do carro pela amiga, por volta das 4h da madrugada, quando foram baleados. 
  5. T.S.S.:17 anos, foi morto durante uma ação da Polícia Militar no Jardim Íris, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, no dia 08/03/2020, quando saia de um baile funk. Um homem de 29 anos também foi morto na operação. Segundo uma testemunha, apenas a PM teria atirado ao entrar na comunidade, e não houve tiroteio. A Polícia Militar afirma que recebeu uma denúncia de baile funk e foi checar a denúncia e “avistaram um grupo de indivíduos armados que, ao perceberem a aproximação dos policiais, efetuaram diversos disparos na direção da guarnição, houve confronto”, diz uma nota da polícia. 
  6. Adolescente não identificada: Uma adolescente de 15 anos foi morta no dia 20/03/2020 no Morro do Chaves, em Barros Filho, Zona Norte do Rio de Janeiro. Segundo a imprensa13, a morte aconteceu durante confronto entre facções criminosas. A Polícia Militar informou que agentes encontraram a vítima em óbito, quando foram verificar uma ocorrência. A área foi isolada e a perícia acionada. A Delegacia de Homicídios instaurou inquérito para apurar a morte da jovem e a Polícia Civil informou que diligências estão em andamento. 
  7. M.E.P.C.: 8 anos, e outra criança de 10 anos, s foram vítimas de “bala perdida” no dia 23/03/2020, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. M.E. P.C, foi atingida no tórax, não resistiu aos ferimentos e morreu. A outra, de 10, foi atingida na perna direita. A Polícia Militar disse que não fazia operação no momento dos disparos. O caso é investigado pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF). 
  8. E.F.S.: 17 anos, e mais quatro pessoas (Pedro Henrique Félix Pinto, de 22 anos; Jhonatan da Costa Gonçalves, de 28 anos; Gabriel Marques Cavalcante, de 22 e Vitor Matheus) foram mortas durante operação da Polícia Militar na Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, na madrugada de 27/04/2020. De acordo com a Polícia Militar, a ação em que ocorreram as mortes começou no domingo à noite e foi feita para impedir a realização de um evento não autorizado. Durante as diligências na localidade conhecida como Manilha, as equipes teriam sido recebidas a tiros, gerando confronto.com os jovens. A ocorrência foi registrada na 35a. Delegacia de Polícia. 
  9. J.P.M.P.: 14 anos, negro, foi baleado e morto durante uma operação da Polícia Federal, com apoio da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), na Praia da Luz, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de janeiro, na noite de 18/05/2020, enquanto brincava dentro de casa com amigos e primos. De acordo com relatos de parentes, a polícia invadiu a casa atirando e matou o menino. Supostamente socorrido por um helicóptero do Corpo de Bombeiros, o jovem desapareceu por horas e foi encontrado apenas na manhã do dia 19 de maio pela família no Instituto Médico Legal de Tribobó, na mesma cidade15.Defensores Públicos apontam diversas irregularidades na operação que resultou na morte do jovem e nas investigações iniciais, como a remoção do corpo da vítima supostamente já morta, a falta de isolamento do local do crime, um depoimento tomado de forma irregular e granadas destruídas após a perícia16. O laudo pericial indicou que J.P foi atingido pelas costas, por um tiro de fuzil, calibre 5,56mm, compatível com o fuzil utilizado por um policial civil que participou da operação.17 . 
  10. J.V.G.R.: de 18 anos, negro, foi baleado e morreu durante uma ação das polícias Militar e Civil na Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro no dia 20 de maio de 2020. Segundo a polícia uma troca de tiros foi registrada no momento em que voluntários da Frente Cidade de Deus (FCDD) finalizavam a entrega de 200 cestas básicas numa ação de solidariedade às famílias de baixa renda que sofrem com os efeitos da pandemia da Covid-19. Segundo testemunhas, ele foi colocado dentro do “caveirão” (veículo blindado da polícia militar) e levado até o hospital, mas não resistiu aos ferimentos e veio a óbito. 
  11. Adolescente não identificado: Segundo a Policia Militar do Rio de Janeiro, um adolescente foi baleado após trocar tiros com policiais da Unidade de Polícia Pacificadora da Nova Brasília, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, no dia 20/05/2020. Ainda de acordo com a polícia, o adolescente usava uma pistola além de munições, drogas e uma motocicleta que foram apreendidas. 
  12. R.L: 10 anos, negra, morta numa chacina ocorrida na madrugada do dia 28 de junho durante uma festa junina em Anchieta, na zona norte do Rio de Janeiro. Além da criança, as outras vítimas foram Yuri Lima Vieira e Yan Lucas Soares Gomes, ambos de 23 anos, Josué de Oliveira Xavier, de 20, que, segundo a Secretaria estadual de Saúde, já chegaram mortos à unidade. Antônio Marcos Barcelos Pereira Júnior, de 22 anos, chegou a ser transferido para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, mas não resistiu aos ferimentos e faleceu. O pai da criança foi atingido nas costas quando tentava salva-la, mas não veio a óbito. A Delegacia de Homicídios (DH) investiga o caso. A polícia já sabe que havia um conflito na região entre as facções que dominam o Complexo do Chapadão, na Pavuna, e as favelas Az de Ouro e Tatão, em Anchieta. Segundo testemunhas informaram aos policiais, os atiradores saíram do Chapadão em direção ao local do crime num Fiat Siena preto. 
  13. I.A: 7 anos, negro, morreu após ser atingido por uma bala ” perdida” em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, na noite do dia 30 de junho de 2020. O menino estaria brincando na porta de casa, na Rua Ceci, no Éden, quando foi atingido por um disparo na cabeça. Ele chegou a ser levado para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro, mas chegou ao local sem vida21. Familiares confirmaram a versão da Polícia Militar de que uma viatura que estava na região foi alvo de disparos.

15. M.A.F.N: 4 anos, negra, foi baleada no dia 30 de junho quando estava em uma festa de aniversário na Ladeira das Palmeiras, em Três Rios – cidade do Sul Fluminense. Ela foi socorrida e internada no Hospital Adão Pereira Nunes, em Duque de Caxias, mas morreu na noite do dia 02 de julho. O ataque que ocorreu em uma festa de aniversário também deixou outra pessoa morta e outras cinco pessoas ficaram feridas, sendo que Polícia Militar informou que alguns eram adolescentes. Segundo a corporação, dois homens passaram em uma moto atirando. A polícia acredita que o crime tenha sido motivado por uma disputa do tráfico de drogas na região

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