Trump quer monopólio de vacina que deve ser coletiva e gratuita
Casa Branca gasta US$ 1,95 bilhão para se apoderar da produção de dois laboratórios. Para Alexandre Padilha, ato mostra “o quanto a combinação do monopólio de quem registra um produto de saúde e o poder de compra de um império pode ser nocivo”. Projeto dele que prevê licenciamento compulsório de insumos aguarda votação na Câmara
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Se no fim de junho o Yunus Centre lançou abaixo-assinado subscrito por 105 personalidades globais, entre eles o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para que uma futura vacina contra o coronavírus seja distribuída gratuitamente a todos os seres humanos, o governo norte-americano anunciou um acordo de US$ 1,95 bilhão (R$ 9,9 bilhões) com dois laboratórios pelo monopólico de cem milhões de doses de um dos imunizantes de vanguarda para o tratamento da Covid-19.
Apesar de Francis Collins, chefe do Instituto Nacional de Saúde (NIH), ter afirmado que o apoio à ideia de uma vacina contra a Covid-19 é “bem público global”, Donald Trump, que despreza qualquer ideia do tipo, apelou ao egoísmo latente da cultura ianque para garantir que a americana Pfizer e a alemã BioNTech entregassem aos Estados Unidos todo o suprimento de 2020 da vacina BNT162, uma das duas candidatas desenvolvidas pelas companhias.
Algumas horas depois, as farmacêuticas explicaram que a compra se refere a 2020 e a 2021 e que, nesse período, devem ser fabricadas ao todo 1,3 bilhão de doses. “O governo americano fez um pedido inicial de 100 milhões de doses por US$ 1,95 bilhão e pode comprar até 500 milhões de doses adicionais”, disseram as duas empresas. Em resumo, de qualquer forma o Tio Sam ficará com quase metade da produção – com menos de 5% da população mundial.
“Medicamentos e vacinas que surgirem contra a Covid-19 devem ser bens públicos, são mecanismos não só de proteção individual, mas coletiva. Quanto mais gente tiver acesso, a vida e a recuperação econômica estarão protegidas”
Esse foi mais um movimento da já não tão secreta assim ‘Operation Warp Speed’ (‘Operação Velocidade Superior à da Luz’), que inclui investimentos em várias companhias para impulsionar o desenvolvimento e a produção em larga escala de medicamentos, mas apenas para o abastecimento dos Estados Unidos.
Bilhões de dólares foram para as farmacêuticas Moderna, Johnson & Johnson e AstraZeneca – a última, parceira da Universidade de Oxford. A AstraZeneca anunciou que 300 milhões de doses da vacina já serão dos Estados Unidos, enquanto o velho aliado Reino Unido vai ficar com outros cem milhões. O Brasil, desgovernado pelo presidente que “ama” o “irmão” Trump, não foi mencionado no acerto.
Em 7 de julho, a Casa Branca anunciou que pagaria US$ 1,6 bilhão (cerca de R$ 8,1 bilhões) à Novavax para financiar seu projeto de vacina. Em caso de sucesso, os Estados Unidos terão prioridade no acesso a 100 milhões de doses.
“Estamos criando uma carteira de vacinas, para aumentar as chances de os americanos terem pelo menos uma vacina segura e eficaz até o fim do ano”, comentou o secretário de saúde, Alex Azar.
No caso da Pfizer e da BioNTech, o acordo prevê que o pagamento só sairá se a vacina demonstrar eficácia e for autorizada pela Food and Drug Administration (FDA), o equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil.
Os testes se mostraram promissores em sua fase inicial. Um artigo publicado nesta segunda (20) como prévia apontou que a substância é segura e capaz de induzir resposta imunológica. Os resultados ainda têm que ser validados por outros pesquisadores antes de serem publicados em uma revista científica.
O mais recente balanço da Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que 166 vacinas estão em desenvolvimento em todo o mundo. Até terça (21), ao menos 24 delas foram registradas em fase clínica, que é a etapa de teste em humanos. Segundo a agência, de todas as vacinas em desenvolvimento, cinco já estão em sua terceira e última fase de estudo. É somente depois desta prova, em um número maior de participantes, que uma vacina pode ou não ser licenciada e liberada para a comercialização.
Egoísmo galopante
Trump, que em abril botou a diplomacia ianque para trabalhar na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) contra um acordo de cooperação internacional para garantir o acesso global a medicamentos, vacinas e equipamentos médicos, e no fim de maio rompeu com a Organização Mundial da Saúde (OMS), tem demonstrado competitividade incomum e canalha na questão.
Os Estados Unidos já haviam garantido a compra de toda a produção até setembro de remdesivir, que teria a capacidade de reduzir o tempo de internação por Covid-19. Em abril, carregamentos de máscaras e respiradores encomendados por outros países (inclusive estados brasileiros) foram interceptados em aeroportos por meio de vários subterfúgios.
O ministro do Interior alemão, Andreas Geisel, chamou o ato ianque de “pirataria moderna”. Ao que Trump respondeu que não queria “outros países conseguindo máscaras”.
“A pandemia vai, seguramente, infelizmente, piorar antes de melhorar. Não gosto muito de o dizer, mas é como é”, disse Trump nesta terça (21), em Washington, antes de apelar a “toda a gente” para usar uma máscara quando não é possível o distanciamento físico e “implorar” aos jovens para “evitar os bares lotados”.
Já a China, que tem atuado firmemente por uma ação solidária no âmbito das Nações Unidas, concederá crédito de US$ 1 bilhão (R$ 5,38 bilhões) para países da América Latina e Caribe comprarem vacinas. O anúncio foi feito pelo chanceler chinês, Wang Yi, em uma videoconferência com seus homólogos da região, nesta quinta (23).
Brasil ignora reunião com China
O encontro, presidido por Wang e pelo ministro das Relações Exteriores do México, Marcelo Ebrard, teve a participação de representantes de Argentina, Barbados, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Panamá, Peru, Trinidad e Tobago e Uruguai. O Brasil, do chanceler aloprado Ernesto Araújo, não fez parte.
“Em específico, o chanceler chinês destacou que a vacina desenvolvida em seu país será um bem público de acesso universal e que a China destina um financiamento de US$ 1 bilhão para apoiar o acesso de nações da região à vacina”, salienta a declaração conjunta dos países.
O presidente da China, Xi Jinping, já havia anunciado em maio, na Assembleia Mundial da Saúde, que seu país concederá US$ 2 bilhões (R$ 10,2 bilhões) ao longo de dois anos para apoiar a resposta contra o coronavírus e o desenvolvimento socioeconômico dos países afetados, especialmente aqueles em desenvolvimento.
No feudo de Pazuello, reina a inação
Depois do acordo americano, o ministro interino-permanente da Saúde, general Eduardo Pazuello, disse que a Pfizer está no “radar” brasileiro. “Nós vamos observar isso daí, com a possibilidade também de entrar em algum tipo de acordo de cooperação para comprar essa vacina com a Pfizer”, afirmou.
Para a vacina da AstraZeneca e de Oxford, já em testes de fase 3 no Brasil, foi anunciada uma parceria com compra de lotes e transferência de tecnologia para que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) produza o imunizante. Mas essa cooperação, anunciada há quase um mês, sequer foi fechada. Além da vacina inglesa, apenas outra concorrente chinesa já chegou tão longe nas pesquisas. Ambas são testadas no Brasil.
A respeito das ações de Trump, o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), médico que foi Ministro da Coordenação Política de Lula e da Saúde de Dilma Rousseff, afirmou em artigo que “em um dia, ficou claro o quanto a combinação do monopólio de quem registra um produto de saúde e o poder de compra de um império pode ser nocivo”.
“Medicamentos e vacinas que surgirem contra a Covid-19 devem ser bens públicos, são mecanismos não só de proteção individual, mas coletiva. Quanto mais gente tiver acesso, a vida e a recuperação econômica estarão protegidas”, apregoa Padilha. Para ele, “vida e saúde não são mercadorias e não são matéria de venda e lucro”.
O deputado federal ressaltou que não está defendendo a não remuneração de um investimento privado de descoberta de uma vacina. “A questão é o monopólio nas mãos da empresa que registra um produto e leva a restrição do acesso, em uma ganância absurda”, argumentou.
Projeto prevê licença compulsória
Segundo Padilha, o Brasil é um país propício para avaliar vacinas e medicamentos para a Covid-19, pois tem uma explosão de casos, um sistema público e instituições de pesquisas reconhecidas internacionalmente. Além disso, no continente americano, apenas Brasil e Estados Unidos possuem capacidade de produção de vacina em larga escala.
“E isso só é possível graças a uma política que desenvolvemos no Ministério da Saúde que, ao incorporar um produto ao sistema público de saúde, exige a transferência da tecnologia aberta da empresa privada que detinha a sua patente para um laboratório público, o que dá a garantia ao Brasil da soberania na produção. Foi assim na pandemia da H1N1, quando o Brasil se tornou, em 2010, o país do mundo que mais vacinou pessoas em um sistema público”, exemplificou.
“O Brasil participa de três projetos de desenvolvimento de vacinas, com atuação firme de instituições públicas do SUS como a Fiocruz, o Butantan, além da Unifesp e do governo do estado da Bahia. Sim, corremos o risco de participar dos testes e não vermos as doses ou para tê-las, sermos obrigados a direcionar um montante absurdo de recursos do contribuinte de impostos para matar a sede da ganância incalculável de alguns poucos” alertou o deputado federal.
“A pandemia de Covid-19 confirmou ao mundo o que os defensores da saúde pública sempre evidenciaram: só sistemas de saúde públicos e gratuitos podem reduzir os danos causados pela maior tragédia humana já registrada. O SUS, mesmo fragilizado por Bolsonaro, tem sido decisivo para reduzir mortes e o sofrimento. Mas só com um SUS mais forte, com mais qualidade, podemos superar a pandemia e os demais problemas de saúde que surgiram ou cujo atendimento foi represado neste momento”, concluiu.
Padilha é autor do Projeto de Lei (PL) 1462/20, co-assinado por vários parlamentares de oposição, que estabelece a licença compulsória automática de patentes de medicamentos, vacinas e outros insumos em períodos de emergência de saúde pública, como a pandemia. Caso se torne lei, permitirá o acesso universal de toda a população brasileira a remédios e vacinas cuja eficácia seja comprovada no futuro próximo.
A Internacional de Serviços Públicos (ISP), federação sindical global que representa 30 milhões de trabalhadoras e trabalhadores em 154 países, lançou campanha mundial de apoio à proposta. Ela já foi aprovada na comissão externa para o enfrentamento da Covid-19 na Câmara dos Deputados e agora aguarda a “vontade política” do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM/DF), para ser colocada na pauta de votações em plenário.
As organizações sindicais entendem que não pode haver monopólios de empresas privadas sobre tecnologias médicas úteis para combater a crise de saúde causada pela Covid-19. As entidades destacam que o licenciamento obrigatório nesses casos, medida aprovada na Assembleia Mundial da OMS em maio, é fundamental para garantir a proteção de profissionais de serviços essenciais, em particular os de saúde.