O que o ‘lápis cor de pele’ pode ensinar sobre microagressões e racismo na escola
Estudo revela a dificuldade de crianças negras brasileiras colorirem autorretratos e ‘normalizarem’ o uso da cor rosada
Publicado em
O ambiente escolar tem sido lugar de perpetuação de práticas racistas em que alunos e alunas ainda vivenciam uma carência muito grande de identidade.
Desde a mais tenra idade, elas já apresentam uma imagem distorcida de si, é o que aponta estudo do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES).
A pesquisa selecionou uma sala de escola pública, onde a maioria dos alunos era negra e pediu para eles se autorretratarem. O lápis salmão, intitulado como “lápis cor de pele”, foi o mais usado na hora de colorir a cor da pele, usado inclusive entre as crianças negras.
Os pesquisadores explicam que os alunos encontraram dificuldades de se desenhar e principalmente de se colorir. Consciente ou inconscientemente, a utilização do ‘lápis cor de pele’ se apresentou como uma solução, ainda que a atividade fosse para se retratarem como são. Muitos estudantes acharam feio colorir com lápis marrom e quando não se utilizava o lápis cor de pele, preferia outra cor como o rosa.
Ainda que não seja intencional, tais concepções indicam a naturalização de conceitos racistas ao evidenciar um padrão e uma tentativa de se adequar a esse padrão.
“Mas eu não gosto [de pintar meu autorretrato]. Nenhum desenho que faço gosto de pintar a pele, nunca sei que cor pinto. Se uso a cor de pele fica muito claro, se uso esse (mostrou um lápis marrom) fica muito feio, então prefiro não pintar”, afirmou uma das alunas negras que participaram do estudo.
A naturalização do ‘lápis cor da pele’ é um exemplo de microagressão racial que as crianças negras sofrem desde que pisam no ambiente escolar. A dificuldade de manifestar a própria identidade e considerar “feio” a cor que mais se aproxima da sua própria cor de pele é a evidência mais concreta do racismo estrutural em sua formação inicial.
“A escola não é um campo neutro, pelo contrário nela se reproduzem e se intensificam conflitos sociais, por isso é inaceitável que professores se posicionem de forma neutra no cotidiano escolar, é necessário que haja intervenção em práticas que tentam hegemonizar o alunado”, afirmou o estudo.
Microagressão racial tem efeitos devastadores
Derald Wing Sue, professor da Universidade Columbia que estuda a psicologia do racismo e do antirracismo, resumiu as microagressões raciais como “os insultos, as indignidades e as mensagens humilhantes passadas às pessoas não brancas” por indivíduos que não têm consciência da natureza ofensiva de suas palavras ou ações.
A principal característica da microagressão, que não deixa de ser uma atitude racista, é permanência cotidiana e insistente em toda a rotina da vítima, a despeito da intencionalidade de quem comete o ato. Desde o ‘lápis cor da pele’, até a falta de atenção do docente, a presunção de incapacidade e/ou dificuldade, a discriminação dos colegas, a questão do cabelo, o brincar sozinho e até a falta de compreensão da brutal desigualdade social que acompanha a questão racial.
O Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard compilou estudos documentando como a vivência cotidiana do racismo estrutural impacta “o aprendizado, o comportamento, a saúde física e mental” infantil. E elencou quatro pontos:
- Corpo em estado de alerta constante
- Mais chance de doenças crônicas ao longo da vida
- Disparidades na saúde e na educação
- Cuidadores mais fragilizados e ‘racismo indireto’
No Brasil, essa realidade também pode ser medida pelo medo da evasão escolar. Análise feita pelo Plano CDE revelou que famílias de alunos negros têm 63% mais risco de ter medo da evasão escolar de seus filhos do que pais de estudantes brancos. Isso acontece porque além das dificuldades oriundas das crises econômicas e sanitária, há o cenário de um ambiente hostil para estudantes negros e negras.
Em maio do ano passado, o medo da desistência de alunos negros nas suas famílias era de 35%. O número subiu para 43% no final de setembro. Entre os pais de estudantes brancos, não chegou a 40%. Quando o recorte também inclui a condição social, o cenário fica ainda pior: entre os alunos negros de famílias com renda de até dois salários mínimos, o medo de desistência chegou a 50%.
“A escola é um ambiente em que as crianças socializam e estabelecem relações com os demais, sendo importante para a construção da identidade de cada uma delas […] Logo elas devem ter um suporte também da escola, pois podem se tratar das primeiras vivências com as práticas racistas das crianças”, concluiu o estudo do IFES.