Microagressões: as mulheres negras não têm um segundo de paz

Sutil, permanente e dolorosa: as “pequenas violências”, geralmente não intencionais, são cotidianas e afetam saúde mental de mulheres negras

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Passar a mão no braço alheio e dizer “nossa, eu queria tanto ter a sua cor, tomo sol, mas nunca consigo”. Entrar em um ambiente corporativo e presumir que a mulher negra não ocupa cargos de liderança ou, pior, dirigir-se apenas a ela para pedir “traz um café, por favor”. Espantar-se ao descobrir que a interlocutora gosta de rock, não sabe sambar e não é fã de funk, nem de axé. Dizer “nossa, você parece com [personalidade negra]”, sendo que na verdade nem são parecidas, exceto pela cor da pele e/ou pelo tipo de cabelo.

Esses são alguns dos muitos exemplos de microagressões raciais e de gênero que acompanham a vida da mulher negra, ao longo de toda sua trajetória na Terra.

Derald Wing Sue, professor da Universidade Columbia que estuda a psicologia do racismo e do antirracismo, resumiu as microagressões raciais como “os insultos, as indignidades e as mensagens humilhantes passadas às pessoas não brancas” por indivíduos que não têm consciência da natureza ofensiva de suas palavras ou ações.

A principal característica da microagressão, que não deixa de ser uma atitude racista, é permanência cotidiana e insistente em toda a rotina da vítima, a despeito da intencionalidade de quem comete o ato: é a herança escravista intimidando permanentemente a existência das mulheres negras — no círculo social, no mercado, na loja de roupa, no transporte público, na hora de arrumar um emprego, dentro do emprego, na ascensão da carreira, na escola das crianças, no atendimento de saúde, nas amizades, na família, na hora de arrumar o cabelo, de se relacionar afetivamente. É a violência cotidiana e “sutil”, até de quem quer elogiar o cabelo ou a roupa para “dizer nas entrelinhas que não é racista”.

A fatura desse cotidiano exaustivo chega depressa. A pesquisa da Universidade Federal do Ceará “O efeito das microagressões raciais de gênero na saúde mental de mulheres negras” revelou que essas microagressões raciais de gênero predizem piores níveis de saúde mental e autoestima das mulheres negras.

“A autoestima parece mediar a relação entre microagressões e saúde geral, apresentando-se enquanto fator protetor da saúde mental; e a identidade parece moderar essa relação, de modo que alta identificação enquanto mulher negra apresentam menores níveis de saúde mental quando se deparam com uma alta frequência de eventos discriminatórios”, aponta o estudo.

No Brasil, as mulheres negras morrem mais que as mulheres brancas por homicídios, suicídios e mortes mal definidas, segundo dados do Ministério da Saúde. Em relação à ocorrência de transtornos mentais comuns (TMC) em função de características sociodemográficas, pesquisadores observaram maior prevalência de TMC entre as mulheres que eram negras ou pardas, tinham baixo nível de escolaridade, não moravam mais com os seus companheiros, que tinham renda média de até um salário mínimo, tinham filhos e eram chefes de família.

Experiências de cunho racista, por exemplo, estão relacionadas ao uso abusivo de substâncias, à baixa autoestima, a transtornos mentais e a sintomas depressivos de um modo geral. Estudos também têm apontado os efeitos do racismo na saúde mental e, por consequência, na saúde física, indicando correlações elevadas com o estresse e depressão, e com o declínio da saúde física, com maior prevalência de doenças cardiovasculares e obesidade.

 

Microagressões raciais de gênero:  como as mulheres negras se diferenciam de homens negros

A pesquisa da UFC avança nos estudos sobre gênero e raça, pois a maior parte dos estudos sobre microagressões trata das identidades singulares de um indivíduo, ser mulher ou ser negro, de forma separada, em vez de entender como as intersecções das múltiplas identidades podem afetar as experiências discriminatórias, como ser mulher e negra.

Segundo o estudo, as vivências de discriminação das mulheres negras se diferenciam daquelas vivenciadas por homens negros e mulheres brancas, pois são fruto de um fenômeno híbrido resultante da combinação do racismo e do sexismo.

“Incluem os processos de marginalização, silenciamento e objetificação vivenciado pelas mulheres negras, e podem gerar um impacto nas relações interpessoais, levando a uma supressão das emoções e vivência de efeitos negativos em sua saúde mental que diferem daqueles experienciados por mulheres brancas”, aponta pesquisa.

A exposição a determinados tipos de discriminação pode variar de acordo com o gênero. A pesquisa cita como exemplo os homens negros serem frequentemente associados à criminalidade, estando mais propensos a sofrerem agressões físicas e verbais de policiais. Já as mulheres negras estão mais suscetíveis a estupros e violência doméstica, além de sofrerem uma apatia dos policiais no que se refere a sua proteção individual e de suas respectivas comunidade

Parte dos esforços em combater essa realidade está no enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, à aplicação mais rigorosas das leis antirracistas, a processos de conscientização social, elaboração de políticas públicas inclusivas e afirmativas, incorporando, segundo aponta o estudo, processos psicológicos gerais na compreensão dos vínculos entre discriminação e sofrimento psíquico entre pessoas de grupos socialmente marginalizados.

Ana Clara Ferrari, Agência Todas

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