Carta ao 7º Congresso Nacional do PT “Lula Livre” (22/11/2019)

Carta da Secretaria Agrária Nacional do PT ao 7º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores – “Lula Livre”. São Paulo, 22 de novembro de 2019

São Paulo, 22 de novembro de 2019

A Secretaria Agrária Nacional do PT e o seu Coletivo Nacional Ampliado saúdam a todos os delegados, delegadas e militantes petistas presentes no 7º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores – “Lula Livre”, na expectativa de dar passos incisivos na construção partidária frente aos desafios que ora enfrentamos.

Urge realizar uma profunda revisão do modelo de desenvolvimento do rural brasileiro, considerando suas origens e todos os avanços forjados pelos governos petistas em consonância com os diálogos com a sociedade civil nos espaços públicos de gestão das políticas, ora destituídas pelo fascismo bolsonarista. Em sintonia com elaborações dos movimentos populares rurais, o PT deve apresentar à sociedade brasileira um projeto inclusivo, capaz de promover a igualdade de direitos e oportunidades, visando a superação de distorções e injustiças sociais históricas na democratização do acesso e uso da terra por meio de uma reforma agrária que cumpra efetivamente seu caráter redistributivo com condições de produzir riquezas e alimentos saudáveis para o povo brasileiro. Um modelo que preconize a exploração sustentável das riquezas naturais do campo, das florestas e das águas nos diversos biomas brasileiros, em equilíbrio com a preservação do meio ambiente e respeito aos direitos dos povos e comunidades que a eles se integram.

Este novo modelo deve considerar assim as várias formas de vida – humana e natureza – a partir de uma perspectiva integrada, ao mesmo tempo em que combina diferentes formas de conhecimento – científico, popular e tradicional – na caminhada rumo ao desenvolvimento sustentável. Para tanto, faz-se necessária a defesa incondicional da soberania nacional, que, como bem explica o presidente Lula, nada mais é do que a defesa do povo brasileiro: “a qualidade de vida do povo, a qualidade de educação do povo, a qualidade da alimentação, a qualidade de produção, o conhecimento científico e tecnológico dessa nação”.

As lutas dos movimentos sociais rurais brasileiros estão enraizadas na história do PT. É no local que essa relação intrínseca se manifesta fortemente, mantendo o brilho da estrela, mesmo em condições adversas como as que a atual conjuntura nos remete. Presentes nas marchas locais, estaduais e nacionais desde a construção do Partido até a chegada à presidência de república e na condução das políticas de desenvolvimento rural, desde a resistência ao golpe até a campanha Lula Livre. Presentes nas instâncias partidárias nos esforços para fortalecer a relação campo-cidade e suas estratégias para conquistar vitórias nos embates políticos e eleitorais.

Das conquistas importantes para a agricultura familiar, como o Pronaf e a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ainda no governo FHC, a eleição do presidente Lula em 2002 significou um salto significativo na instituição e consolidação de políticas públicas para a agricultura familiar e a reforma agrária, dentre as quais podemos destacar: PAA, PNAE, PNATER, P1MC e P1+2, Pronera, Proinf, PNAPO, entre tantas outras.

Entretanto, este salto não ocorreu livre das contradições inerentes à opção petista por um caminho pactuado com as elites nacionais – urbanas e agrárias – e com o capital internacional. É preciso reconhecer que a derrota destes setores nas urnas não os impediu de impor limites ao projeto democrático e popular e conquistar aliados dentro das coalizões dos governos petistas, para não dizer dentro do próprio PT, impedindo o avanço no enfrentamento de dividas sociais históricas, como a reforma agrária e a superação do modelo concentrador e predatório do grande agronegócio.

O ambiente de fragilidade ganhou corpo com extinção do MDA pelo governo golpista de Temer, dando início ao desmonte das políticas para a agricultura familiar e reforma agrária, com o esvaziamento de recursos e a edição de medidas em benefício da grilagem e da reconcentração de terras. Soma-se a isso destruição de direitos trabalhistas tão caros aos trabalhadores rurais, que compõe um dos setores sociais mais vulneráveis à superexploração e ao trabalho escravo. Uma nova escalada da violência no campo levou a situação dos conflitos agrários no Brasil retroceder aos patamares da década de 1990, com novas chacinas e massacres no campo.

Por fim, a farsa judicial que prendeu Lula e o tirou das eleições que claramente venceria em 2018, abriu o caminho para a instalação de um governo fascista no Brasil, sob a liderança de um presidente que tem o PT e os movimentos sociais rurais como inimigos declarados. Este governo radicalizou os ataques de Temer, devolvendo a condução das políticas para a agricultura familiar e reforma agrária aos ruralistas no Ministério da Agricultura, recuperando o velho discurso de que no Brasil há apenas uma agricultura. Enquanto a ministra da pasta declara, com todas as letras, o fim da “agricultura familiar”, retirando qualquer menção à categoria do Plano Plurianual e comprometendo a continuidade do que restou de políticas para o setor, o presidente licenciado da UDR, Nabhan Garcia, assume a Secretaria de Assuntos Fundiários com o objetivo declarado de acabar com a reforma agrária e amparar a titulação de terras griladas.

Junto com estas medidas, avançam no Congresso Nacional projetos em favor da concentração de terras, a exemplo da PEC proposta pelo senador Flávio Bolsonaro para esvaziar a propriedade rural de sua função social, que se aprovada promoverá o retrocesso a um regime de propriedade superado no Brasil desde a promulgação do Estatuto da Terra, em 1964. Ao mesmo tempo avança na Câmara o projeto de lei que flexibiliza a regulamentação da venda de terras para estrangeiros, agredindo a soberania nacional em favor da especulação fundiária. Até mesmo a reforma da previdência de Bolsonaro foi particularmente cruel com os trabalhadores rurais e agricultores familiares, destruindo direitos recentemente conquistados, fragilizando suas organizações sindicais e promovendo nova precarização da vida no campo.

Também não há dúvidas de que a liberação desenfreada de novos agrotóxicos, a destruição das florestas pelo aumento exponencial do desmatamento e dos incêndios criminosos na Amazônia, assim como a inexplicável negligência diante do crime ambiental de dimensões catastróficas que atinge o litoral nordestino com manchas de óleo, são consequências intrínsecas do projeto destrutivo do governo Bolsonaro. O desmonte das estruturas de fiscalização dos crimes ambientais coaduna com seu discurso inconsequente e política destrutiva das riquezas naturais e do ecossistema – patrimônio nacional e de toda a humanidade –, atingindo, sobremaneira, os povos da floresta, do campo e das águas.

Tão grave quanto estas medidas é o avanço da criminalização dos movimentos rurais, com propostas de aplicação de leis antiterrorismo contra suas organizações e lideranças, e a promoção da violência e da morte no campo, com a ampliação do porte de armas nas áreas rurais e a “permissão para matar” prometida para proprietários rurais, autorizados a atirar contra manifestantes em conflitos fundiários.

Resistindo a tudo isso, os movimentos sociais rurais têm enfrentado corajosa e cotidianamente os ataques aos direitos e conquistas da classe trabalhadora. Estão à frente das principais mobilizações de massa que ocorrem no país, desde o enfrentamento ao golpe de 2016 até liderança inabalável da Vigília Lula Livre em Curitiba nos 580 dias da prisão injusta de Lula.

É por estas razões que a Secretaria Agrária Nacional se dirige ao 7º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores – “Lula Livre”, para convocar o PT a tomar frente no enfrentamento da conjuntura crítica em que se encontra a questão agrária no Brasil hoje.

Essa responsabilidade precisa se expressar em duas frentes:

1. Na atuação partidária em articulação com os movimentos sociais tanto no enfrentamento das lutas sociais no campo como na capacidade de reflexão crítica e formulação política. Para isso acreditamos que o PT precisa reposicionar a questão agrária na sua agenda partidária, tanto nos debates internos como na retomada de uma estrutura adequada para o funcionamento da Secretaria Agrárias do partido e suas instâncias locais, estaduais e nacional.

2. Na expressão do programa político do partido, através da reflexão e revisão crítica, em diálogo com os movimentos sociais, do modelo de desenvolvimento agrário conduzido pelos nossos governos nos períodos anteriores, e da construção de uma nova plataforma para o campo brasileiro. Este programa deve repercutir já nos planos a serem apresentados pelas candidaturas petistas nas eleições municipais de 2020, mas para além da agenda eleitoral, precisa se expressar com destaque no projeto político do PT para o Brasil.

Confiantes de que o Partido dos Trabalhadores seguirá avançando em seus compromissos históricos com a luta dos trabalhadores rurais no campo, nas florestas e nas águas, a Secretaria Agrária Nacional e o Coletivo Agrário Nacional do PT se somam ao conjunto de delegados e delegadas para a realização de um excelente Congresso.

Patrus Ananias
Secretário Agrário Nacional do PT
Coletivo Agrário Nacional do PT

O PT e o enfrentamento dos desafios históricos da Questão Agrária no Brasil

A realização do 7º Congresso Nacional do PT representa a renovação dos compromissos históricos do Partido com a luta democrática da classe trabalhadora por um Brasil mais justo e igualitário, mas é também o momento oportuno para propor uma avaliação, revisão e atualização do seu programa político.

No esforço de cumprir com sua responsabilidade política, a Secretaria Agrária Nacional do PT e o seu Coletivo Agrário Nacional se propõem, neste documento, a contribuir com este momento, apresentando questões que julga serem imprescindíveis para que o Partido renove também os seus compromissos com o enfrentamento dos desafios históricos da questão agrária no Brasil.

Este documento recupera algumas das reflexões recentes realizadas pela Secretaria Agrária acerca do modelo de desenvolvimento rural implementado no Brasil ao longo das últimas décadas, e aponta sobretudo para a necessidade do Partido dos Trabalhadores se reconectar com as pautas da questão agrária e com a luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, das florestas e das águas, e assumir a tarefa de construção, em conjunto com as suas organizações, de um projeto de desenvolvimento rural para o país.

O documento também resgata, ainda, reflexões acerca dos desafios do partido para as eleições municipais a partir do debate sobre a ruralidade nos municípios brasileiros e a representatividade da classe trabalhadora rural na arena política local.

Não se trata, no entanto, de um documento conclusivo, e certamente possui lacunas. Em especial falta se aprofundar em um debate necessário a respeito de uma estratégia de enfrentamento ao fascismo e resistência a um governo que promove a destruição das instituições e prega a violência contra as organizações sociais e a luta popular. Trata-se, neste sentido, de uma tarefa que deverá ser objeto e resultado do debate proposto ao partido para o próximo período.

I. Revisão do programa petista para o Desenvolvimento Rural

Tido muitas vezes como um partido essencialmente urbano, é necessário dizer que a história do PT também se confunde com a trajetória recente das lutas sociais e políticas dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, das florestas e das águas no Brasil. De Chico Mendes a Adão Pretto, desde a sua fundação o PT esteve sempre inserido nos principais movimentos e organizações sociais rurais, no debate e formulação de suas demandas e projetos, e na sua luta popular cotidiana.

Esta luta resultou na conquista das primeiras políticas para a agricultura familiar e de ferramentas para o desenvolvimento da reforma agrária no Brasil, mesmo antes do PT chegar ao Governo Federal. Destacamos, neste sentido, a própria criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) – primeira política pública que reconhece a categoria da agricultura familiar no país – uma vitória conquistada a partir da mobilização popular e dos acúmulos de formulação das organizações da classe trabalhadora rural. No mesmo período, a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) – fruto do sangue derramado pelos trabalhadores rurais em Corumbiara e Eldorado dos Carajás – representou a conquista de uma estrutura institucional própria, independente do Ministério da Agricultura, que historicamente esteve e continua subordinado a interesses ruralistas contrários às demandas da classe trabalhadora rural.

A partir da eleição do presidente Lula, em 2002, essas conquistas avançaram com uma abertura inédita do Estado à presença dos movimentos sociais na definição de políticas públicas, dando origem à construção de algumas das experiências mais vitoriosas de desenvolvimento rural no país. A criação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome representou uma mudança de paradigmas da política de desenvolvimento rural, articulando o fortalecimento da agricultura familiar a uma política de soberania alimentar e nutricional e enfrentamento da fome e da miséria. Cabe destacar também a criação do Ministério da Pesca e Aquicultura e o fortalecimento da Fundação Cultural Palmares, responsáveis por colocar pescadores artesanais, ribeirinhos, comunidades quilombolas e várias outras comunidades tradicionais em evidência na agenda governamental, promovendo uma expansão significativa de políticas públicas para estes segmentos.

A Lei da Agricultura Familiar (lei nº 11.326/2006), por sua vez, consolidou parâmetros de reconhecimento da categoria e seus diversos segmentos – incluindo os assentados da reforma agrária, a diversidade dos povos e comunidades tradicionais, mulheres e juventude rural, que passaram a contar com políticas direcionadas às suas especificidades.

Grande parte destas políticas foram desenvolvidas e implementadas em articulação com as organizações populares, fortalecendo uma perspectiva de apropriação da política pública pelas comunidades e sua compreensão enquanto direito conquistado e não um favor presenteado por governos e políticos. Vale destacar, neste sentido, conquistas como:

  • a criação do Plano Safra da Agricultura Familiar, formalizando uma rotina anual de negociação entre Governo Federal e as organizações da agricultura familiar para a construção do plano de políticas para cada ano-safra;
  • o fortalecimento do Pronaf, com ampliação exponencial tanto em volume como em número de contratos, através da diversificação de linhas de crédito e melhor distribuição do acesso entre as regiões do país;
  • a retomada de uma Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER e PRONATER), que recupera a perspectiva de uma ATER pública, universal e gratuita para a para a agricultura familiar e reforma agrária, expandindo e diversificando parcerias com entidades prestadoras na sociedade civil, inclusive na perspectiva agroecológica;
  • a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que, juntamente com a ampliação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) revolucionou a política de compras institucionais do Governo Federal, tornando-se o principal instrumento de articulação entre as políticas para a agricultura familiar e segurança alimentar e nutricional;
  • a estratégia de desenvolvimento territorial, implementada através do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (Pronat) e do Programa Territórios da Cidadania (PTC), promovendo desenvolvimento e fortalecimento da infraestrutura rural amparados nas características próprias de cada território, através de colegiados formados a partir da participação popular;
  • o Programa Um Milhão de Cisternas e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1MC e P1+2), que revolucionou a política de acesso à água no semiárido nordestino a partir de uma perspectiva de convivência com a seca, superando concepções ultrapassadas de “combate” a este fenômeno climático característico da região;
  • iniciativas de apoio e incentivo à produção de alimentos orgânicos e à transição agroecológica, articuladas em torno da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e dos Planos Nacionais de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO I e II);
  • a construção do II Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA, com reestruturação e aumento substancial do orçamento do INCRA e com reposição do quadro através da retomada de concursos públicos;
  • consolidação e expansão do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), tanto na extensão de assentados da reforma agrária atendidos como na qualidade e diversidade dos cursos, com destaque para o ensino superior, desde as áreas mais tradicionais, como direito e agronomia, até inovações em áreas como ciências da natureza e agroecologia ou licenciatura em educação no campo;
  • a reformulação do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), que se consolidou como instrumento importante de promoção do acesso à terra, juntamente com o Programa Cadastro de Terras e Regularização Fundiária;
  • reestruturação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), incorporando a diversidade de segmentos sociais da agricultura familiar, como povos e comunidades tradicionais, mulheres rurais e a juventude rural, a construção das Conferencias Nacionais de Desenvolvimento Rural e de ATER, além da construção e gestão do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PNDRSS);
  • a retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que teve papel fundamental na construção do PAA, além de promover as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN) e gerir o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN);
  • a política de promoção e fortalecimento do cooperativismo, associativismo e economia solidária, com papel fundamental no apoio a formação e consolidação de redes de produção de agricultores familiares e assentados da reforma agrária, além do apoio e qualificação da capacidade de gestão das unidades e redes produtivas;
  • cabe também mencionar ainda um conjunto de políticas voltadas para a proteção e valorização da produção da agricultura familiar, como o Programa Garantia Safra, o Seguro da Agricultura Familiar (SEAF), o Programa de Garantia de Preço da Agricultura Familiar (PGPAF), o Selo da Agricultura Familiar (SIPAF) entre tantas outras;
  • e por fim, uma série de políticas de promoção do acesso a direitos fundamentais às populações do campo, das florestas e das águas, com destaque para:
  • as políticas de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, com papel fundamental no enfrentamento da pobreza e da miséria rural;
  • o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR), que significou acesso à cidadania para milhares de mulheres rurais que, sem documentos, eram privadas do acesso a políticas públicas, desde o Bolsa Família ao Documento de Acesso ao Pronaf (DAP);
  • o programa Luz para Todos, que não apenas tirou comunidades inteiras do escuro, como possibilitou a chegada desde aparelhos elétricos e eletrônicos, como geladeira e as tecnologias de informação e comunicação, até maquinas essenciais para o suporte da produção ou o beneficiamento de produtos;
  • o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), posteriormente integrado ao Programa Minha Casa Minha Vida, que promoveu o acesso à moradia digna para agricultores, assentados da reforma agrária de todo o Brasil;

É importante ressaltar também que diversas destas políticas contaram com direcionamentos transversais para mulheres e para a juventude rural, além dos diversos segmentos específicos contemplados pela categoria da agricultura familiar, como povos indígenas, quilombolas, seringueiros, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos e uma lista sempre crescente de comunidades tradicionais.

A agenda implementada no Brasil ao longo deste período foi decisiva para que o Brasil superasse a condição humilhante de compor o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas, segundo o relatório da FAO publicado em 2014. Assim, repercussão internacional desta agenda contribuiu para o reconhecimento global do papel da agricultura familiar para a promoção da segurança alimentar e para a erradicação da pobreza no mundo – o que resultou na celebração, por inciativa da ONU, do Ano Internacional da Agricultura Familiar em 2014, e, mais recentemente, da Década da Agricultura Familiar, celebrada no decênio 2019-2028.

Esgotamento das políticas e limites impostos por barreiras políticas e institucionais

Em resumo, é inquestionável a importância da expansão e consolidação de um verdadeiro sistema de políticas públicas para a agricultura familiar e reforma agrária para o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e povos do campo, das florestas e das águas durante os governos petistas. Porém, sem abrir mão de celebrar estas conquistas, é também fundamental avaliar as suas limitações e reconhecer os sinais de esgotamento no seu modelo de implementação.

Um dos destaques, neste quesito, recai sobre o próprio Pronaf, cujo padrão de organização da produção privilegiado pelas entidades financeiras, responsáveis pela concessão do crédito, manteve-se preso a uma lógica mercadológica, setorial e produtivista. Apesar da diversidade de linhas de crédito ou do esforço de gestores em direcionar o programa para as regiões mais pobres, os maiores volumes de crédito foram concentrados em públicos capazes de apresentar maiores garantias e nos setores produtivos avaliados com menor risco, a exemplo da soja e do milho. Por esse motivo, a operacionalização do programa acabou impondo limitações objetivas para a diversificação econômica do público contemplado, sobretudo para a disseminação de modelos produtivos alternativos, a exemplo dos sistemas agroecológicos e agroflorestais, de produção orgânica etc.

Por outro lado, programas com potencial extraordinário para o fortalecimento da capacidade produtiva de agricultores familiares e assentamentos da reforma agrária pela via do escoamento e distribuição da produção, como o PAA e o PNAE, esbarraram nas limitações impostas pela burocracia estatal e mesmo na perseguição política por instituições e agentes institucionais, intolerantes no trato com as organizações populares. O esclarecimento dos fatos mostraram posteriormente que a judicialização das políticas e criminalização das organizações e lideranças promovida pela Operação Agro-Fantasma, deflagrada pela Polícia Federal sob orientação do ex-juiz Sérgio Moro entre 2009 e 2013, teve origem em obstáculos burocráticos dos programas, e contraditoriamente teve como resultado, além da prisão injusta de agricultores inocentes com prejuízos irreparáveis para suas vidas e sua capacidade produtiva, uma burocratização ainda maior do programa, comprometendo muito do seu potencial de execução. É preciso avaliar, neste sentido, que nossos governos não souberam enfrentar a intolerância, a perseguição e a falta de permeabilidade de instituições do Estado em relação à participação das organizações sociais na implementação de políticas públicas.

É na reforma agrária, no entanto, que se encontra talvez o grande “calcanhar de Aquiles” da política de desenvolvimento rural dos governos petistas.

Se é verdade que multiplicaram-se experiências extraordinárias no desenvolvimento de assentamentos junto aos movimentos sociais – com centros de referência na produção agroecológica, fortalecimento de cooperativas de produção, agroindústria e beneficiamento, comercialização, centros de formação educacional, técnica e política, com papel fundamental no fortalecimento de movimentos e organizações sociais rurais, entre outros tantos exemplos – é muito grave o fato de que a política de desapropriação e assentamento de famílias propriamente dita, em particular para famílias acampadas que aguardam por anos debaixo da lona preta por seu pedaço de chão, tenha alcançado resultados pífios na maior parte dos anos, a exceção de um breve período de bons resultados no primeiro governo Lula. Como enfatizam alguns companheiros, “para se fazer uma boa feijoada, são necessários muitos ingredientes; mas sem feijão não tem feijoada”. Da mesma forma, sem desapropriação e famílias assentadas, não há reforma agrária.

São inúmeros os fatores que podem ser elencados para explicar um desempenho tão insatisfatório na política de reforma agrária dos governos petistas – a começar pela falta de recursos disponibilizados para a obtenção de terras. Mas é patente também a derrota da reforma agrária dentro das nossas coalizões de governo, sobretudo no enfrentamento das pressões ruralistas contra a adoção de medidas previstas na Constituição Federal – desde a atualização dos índices de produtividade para cumprimento da função social da propriedade rural e a instituição de um imposto territorial rural compatível com o cumprimento de sua função social, até desapropriação confiscatória (sem pagamento de indenização) em propriedades flagradas com exploração de trabalho em condições análogas à escravidão e a desapropriação de terras de grandes devedores da união.

O que é preciso ressaltar aqui, portanto, é a necessidade urgente de o partido reconhecer sua dívida com a reforma agrária, e assumir o desafio de encará-la em seu projeto político, assumindo compromissos com a formulação de estratégias para superar os limites do modelo implementado nos governos passados.

Correlação de forças com o agronegócio nas coalizões de governo

Apesar dos inquestionáveis avanços no fortalecimento e consolidação de um sistema de políticas públicas para a agricultura familiar e reforma agrária, os governos petistas não escaparam de coalizões de governo com correlações de forças favoráveis às elites agrárias nacionais, que foram capazes de garantir a manutenção de um modelo de desenvolvimento concentrador, socialmente injusto e ambientalmente degradante. Um modelo ancorado na produção de commodities com grande parte da produção exportada in natura, sem valor agregado pela nossa agroindústria, financiado com juros altamente subsidiados por uma política de crédito agrícola de volumes astronômicos quando comparado aos recursos disponibilizados para a agricultura familiar. Para uma rápida ilustração, se por um lado o crédito disponibilizado para a agricultura familiar evoluiu significativamente, saltando de 2,4 bilhões na safra 2002/2003 para 30 bilhões na safra 2016/2017, o crédito disponibilizado para o agronegócio na safra 2016/2017 já estava no patamar de R$ 187,7 bilhões – ou seja, mais de 625% maior!

Trata-se do superfinanciamento de um modelo de agricultura que expulsa camponeses, comunidades tradicionais e povos indígenas e quilombolas de suas terras para abrir caminho ao avanço da monocultura, da grande pecuária e da especulação fundiária; um modelo que não esconde apego ao uso indiscriminado de agrotóxicos e insumos químicos, fomentados por incentivos e isenções fiscais injustificáveis, que envenena o prato de comida dos trabalhadores, polui o solo, rios e mananciais, além do cultivo de transgênicos, com patentes monopolizadas pelas grandes corporações multinacionais, que contribuem para eliminar a biodiversidade dos produtos locais.

Esta política é recorrentemente justificada pelo peso da exportação de commodities no saldo da balança comercial. Porém, com baixa de geração de emprego e alta exploração de mais-valia, a riqueza produzida por este modelo é concentrada nas mãos de poucos proprietários, empresários, multinacionais e banqueiros. É importante destacar ainda que médios e mesmo parte dos grandes produtores rurais são muitas vezes submetidos a essa lógica perversa dos pacotes de veneno, de sementes e demais insumos, obtendo em contrapartida um retorno cada vez menor, já que a maior parte da renda gerada é remetida às grandes multinacionais do sistema agroalimentar e às redes de supermercados.

Censo Agropecuário de 2017

Recentemente foi publicado o resultado do Censo Agropecuário 2017, que deveria ser uma importante ferramenta para se analisar os resultados das políticas de desenvolvimento rural implementadas nas últimas décadas. No entanto, algumas das primeiras tentativas de análise sobre os dados publicados apontam sérios questionamentos em relação a questões metodológicas que comprometem a integridade dos resultados, particularmente em relação aos indicadores relacionados à comparação entre o desempenho da agricultura familiar e da agricultura patronal.

Entre os questionamentos mais graves estão justamente as mudanças nos critérios de enquadramento dos estabelecimentos da agricultura familiar em decorrência da aplicação equivocada de medidas adotadas pelo governo Temer na regulamentação da Lei da Agricultura Familiar, sobretudo no tocante ao critério de predomínio da renda vinda do estabelecimento agropecuário. Em muitos casos este critério exclui da categoria camponeses pobres que precisam vender a força de trabalho em outras atividades para completar a renda familiar, já que não é incomum, por exemplo, que mesmo um emprego mal remunerado – em torno de um salário mínimo – supere a renda familiar mensal obtida na produção, a depender da safra. É exatamente por isso que, para efeitos de emissão de DAP, por exemplo, é permitido um rebate de 10 mil – algo que o Censo não teria levado em consideração. Como resultado, centenas de milhares de estabelecimentos pobres teriam deixado de ser classificados como unidades familiares, sobretudo no nordeste e Minas Gerais. Além disso são apontadas mudanças em relação à redução do questionário aplicado e à formulação das perguntas e mesmo sobre as unidades de grandeza utilizadas como referência para medir a produção.

Essas questões apontam em primeiro lugar para a necessidade de uma leitura ainda bastante cautelosa sobre o significado dos dados publicados em relação ao impacto das políticas públicas sobre a categoria, e a realização de estudos e debates aprofundados junto a companheiros das organizações sociais, institutos de pesquisa e academia, para que as questões levantadas sejam averiguadas.

Em segundo lugar, trazem à tona questões sobre a instrumentalização do Censo Agropecuário por um projeto político que tem por objetivo extinguir a categoria da agricultura familiar, distorcendo indicadores para questionar sua importância para a produção de alimentos e na geração de emprego e renda, além da sua participação na produção de riquezas para o país.

No entanto, ainda que feitas essas ressalvas, um esforço inicial de análise crítica sobre os dados coletados aponta tendências que no mínimo reforçam a percepção de que o modelo de desenvolvimento implementado no Brasil ao longo das últimas décadas levou a um crescimento do agronegócio vertiginosamente superior ao desenvolvimento da agricultura familiar.

Isso não significa que isoladamente as políticas para a agricultura familiar e reforma agrária não tiveram acertos importantes. No entanto as tendências apontadas no censo corroboram para a crítica de que, apesar dos muitos acertos, o ciclo dos governos petistas na esfera federal deixa como herança o aprofundamento do desequilíbrio na correlação de forças a favor dos setores ruralistas, tornando nossas coalisões de governo cada vez mais reféns de um setor que jamais engoliu a necessidade de compor com um governo de trabalhadores.

Neste sentido, se por um lado a subordinação a uma aliança necessária com os setores ruralistas foi aceita pelos nossos governos como condição necessária para governar o país, por outro lado fica patente que falhamos em construir uma estratégia para reverter ou ao menos equilibrar esta correlação de forças.

Sem alimentar o cinismo hipócrita da autocrítica reacionária exigida ao PT pela mídia golpista e pela direita conservadora – que tentam fazer do PT o bode expiatório de todos os males da sociedade brasileira –, é preciso ter clareza de que este caminho também contribuiu para o rearranjo das forças políticas responsável pelo golpe de 2016 e posterior eleição do governo Bolsonaro. Nesse aspecto se faz necessário concordar com alertas de companheiros do campo popular quando alertam que uma esquerda incapaz de enxergar os limites e falhas na condução de seu projeto terá dificuldades em apontar caminhos para superá-los no futuro.

 

II. Governo Bolsonaro:
terra arrasada para a agricultura familiar e a reforma agrária

Apesar da política conciliatória promovida pelos governos do PT, o desfecho do golpe de 2016 deixou claro que mesmo os mais tímidos avanços sociais são intoleráveis para os setores mais poderosos e conservadores da elite nacional. A extinção do MDA no primeiro ato do governo golpista deu início ao desmonte das políticas para a agricultura familiar e reforma agrária, à destruição de direitos trabalhistas e a uma nova escalada da violência no campo. Não dúvidas de que os mesmos setores ruralistas que fizeram parte de nossas coalizões de governo tomaram parte ativa na liderança deste “grande acordo nacional, com supremo com tudo”, que se apoderou das principais instituições do Estado Brasileiro para neutralizar quaisquer ameaças ao seu projeto de poder – a começar pelo presidente Lula.

Estes setores encontraram no populismo fascista de Bolsonaro os meios para a implementação de um programa de destruição do Estado de direito brasileiro que a direita tradicional brasileira não foi capaz de conduzir. Ao trazerem de volta para o Ministério da Agricultura as estruturas remanescentes da condução das políticas para a agricultura familiar e reforma agrária, incluindo a subordinação do Incra, os ruralistas voltaram a controlar todos os órgãos de condução da política agrícola e agrária do Governo Federal, obtendo os meios para implementar um projeto que decreta o fim da agricultura familiar e da reforma agrária no Brasil.

Um governo que quer “acabar com a Agricultura Familiar”

O Plano Safra 2019/2020 anunciado pelo governo Bolsonaro veio para confirmar o projeto já declarado nos discursos da Ministra Tereza Cristina de acabar com a categoria da agricultura familiar[1], sob o pretexto de que “só existe uma agricultura”. A extinção do Plano Safra da Agricultura Familiar, específico para a categoria, não é mera formalidade: ao ampliar ainda mais o limite de enquadramento da renda do Pronaf, chegando a R$ 415 mil anuais, a política originalmente desenhada com condições diferenciadas para atender pequenos agricultores é cada vez mais redirecionada para contemplar segmentos da agricultura patronal de médio porte, em detrimento dos segmentos mais vulneráveis da agricultura familiar. Da mesma forma o Plano anuncia triunfante o montante de 1 bilhão de reais em subvenções para o seguro agrícola patronal, para o qual transferiu, no entanto, quase R$ 300 milhões retirados do Garantia Safra, que atende justamente aos agricultores familiares. A Ater pública gratuita para a agricultura familiar desaparece do plano, sendo apresentada como mais uma linha de financiamento do Pronaf, o que inclusive descumpre a Lei Agrícola Nacional e a Lei de Ater, que garantem a oferta pública e gratuita para a categoria[2].

Na mesma linha, na proposta de Plano Plurianual 2020-2023 de Bolsonaro não existem as expressões “agricultura familiar” e “reforma agrária”, simplesmente desaparecendo programas temáticos como “Fortalecimento e Dinamização da Agricultura Familiar” e “Reforma Agrária e Governança Fundiária” – que abrangiam o conjunto de objetivos, metas e iniciativas para o setor no Plano anterior. O PPA como um todo apresenta uma peça absolutamente genérica, sem metas físicas detalhadas ou indicadores mensuráveis, o que lhe rendeu um acordão do TCU acusando que as falhas na sua elaboração impedem que o mesmo seja um instrumento efetivo de planejamento orçamentário.

A política implementada pelo governo Bolsonaro ataca assim um legado brasileiro amplamente reconhecido em todo o mundo – a começar pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) – na promoção de políticas para a agricultura familiar, e coloca o Brasil justamente na contramão da Década da Agricultura Familiar no decênio 2019-2028.

A UDR à frente da política fundiária: tentativa de assassinato da Reforma Agrária

Ao nomear como Secretário de Assuntos Fundiários o presidente licenciado da UDR, o governo Bolsonaro assume não só o objetivo declarado de enterrar a reforma agrária no Brasil, como o compromisso com a devassa da grilagem de terras públicas, sobretudo na região amazônica.

Esse objetivo se manifesta claramente no mais completo esvaziamento orçamentário do INCRA que se tem notícia: um corte de mais de 70% no orçamento para obtenção de terras, caindo dos já irrisórios R$ 42 milhões da LOA 2019 para míseros R$ 12.3 milhões na PLOA 2020. As políticas públicas para assentados também foram paralisadas, com cortes da ordem de 63% na política de promoção da Educação do Campo e de Assistência Técnica e Extensão Rural para Reforma Agrária, enquanto as ações de Monitoramento de Conflitos Agrários e Pacificação no Campo sofreram cortes de quase 40%.

Como se não bastasse, o Secretário de Assuntos Fundiários anunciou o cancelamento de processos de desapropriações de terras para reforma agrária, ameaçando devolver terras desapropriadas para antigos donos, o que afetará situações consolidadas há muito tempo, gerando insegurança jurídica para milhares de famílias assentadas[3].

Cabe ressaltar ainda a ênfase do Incra na ação de “Consolidação de Assentamentos Rurais”, que tem por objetivo a titulação e “emancipação” de assentamentos, o que na prática significa, por um lado, eximir o Incra de responsabilidades pela assistência aos assentados, e por outro, coloca-los a mercê do mercado de terras, sob forte pressão reconcentradora. A “cereja do bolo” em termos de titulação, por fim, é a proposta de “regularização fundiária em massa” proposta pelo Secretário de Assuntos Fundiários uderrista, baseada na “titulação por autodeclararão” – que não esconde o objetivo claro de promover a legalização de terras griladas. A proposta pretende titular em torno de 600 mil propriedades de até 2.500 hectares na Amazônia Legal, com a intenção de ocupar o que o governo vê como “vazios demográficos”, recuperando a lógica da integração nacional do regime militar.

Ao mesmo tempo, o Senador Flávio Bolsonaro apresentou ao Congresso Nacional uma PEC para remover da Constituição critérios para o cumprimento da função social da propriedade sobre imóveis urbanos ou rurais, além de dificultar a atuação do poder público na execução de desapropriação em casos de descumprimento, exigindo prévia autorização do poder legislativo ou de decisão judicial. Ao tratar a propriedade privada sobre terras e imóveis como “direito sagrado” superior a direitos fundamenteis, como a dignidade humana, o acesso terra e à moradia ou mesmo a soberania alimentar da nação, a proposta do senador Bolsonaro ataca frontalmente os princípios constitucionais consagrados em 1988, apontando para o retrocesso a um regime de propriedade superado no Brasil desde a promulgação do Estatuto da Terra, em 1964.

Estrangeirização de terras e ataque à soberania nacional

Por fim, tramita no congresso o Projeto de Lei 2963/2019, que “regulamenta a aquisição, posse e o cadastro de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira” – uma grave ameaça à soberania nacional em favor da especulação fundiária, aprofundando a pressão concentradora sobre o mercado de terras brasileiro. Entre as principais mudanças propostas pelo projeto é a dispensa de autorização ou licença para a compra posse por estrangeiros sobre imóveis com áreas de até quinze módulos fiscais – critério que corresponde a mais de 95% das propriedades rurais no Brasil.

A política do envenenamento da nação

Em junho de 2019 o Projeto de Lei 6299/02, conhecido como “Pacote do Veneno”, foi aprovado em comissão especial da Câmara dos Deputados, avalizando uma política sem precedentes na liberação desenfreada e irresponsável do uso de novos produtos agrotóxicos, em sua maioria vetados em grande parte dos países europeus por terem efeitos danosos comprovados sobre a saúde de consumidores e agricultores que os manuseiam.

Além de colocar o Brasil na contramão da tendência mundial de reduzir o uso de veneno na agricultura, esta política ignora a epidemia de intoxicação por agrotóxico que se agrava no país, cujas notificações dobraram entre 2009 e 2018, saltando de 7 mil casos para mais de 14.600, segundo dados do Ministério da Saúde. Além disso, estudos de instituições renomadas, como a American Heart Association apontam que contato frequente com agrotóxicos pode estar associado ao desenvolvimento de doenças graves como câncer, mal de Parkinson e asma, além de depressão, ansiedade e transtorno de déficit de atenção.

Até outubro, foram liberados 410 novos tipos de veneno apenas em 2019 – número recorde para o período dos 10 primeiros meses do ano e superior ao total de substâncias liberadas em todos os anos anteriores – à exceção justamente do ano de 2018, quando foram liberados o uso de 450 novas substâncias.

A título de comparação, entre 2005 e 2015 a média de registros por ano foi de 139 produtos – número que já era alvo de campanhas da sociedade civil contra os agrotóxicos e que deram origem à construção, no governo Dilma, da proposta para o Programa Nacional para a Redução do uso de Agrotóxicos – PRONARA, e ao PL 6670/2016, atualmente em trâmite no Congresso, que visa instituir em lei a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos – PNARA.

 

III. Um Projeto de Desenvolvimento Rural para o PT

Em diálogo com as reflexões apontadas acima, a Secretaria Agrária Nacional do PT propõe ao Partido a realização de um profundo debate, com vistas a construir um programa agrário para enfrentar os desafios históricos da questão agrária no Brasil, recuperando o legado positivo das políticas e experiências vitoriosas ao longo das últimas décadas, mas capaz de avançar sobre os limites e contradições do modelo implementado por nossos governos no passado, e superar os retrocessos e ameaças apresentadas pelo atual governo.

Este debate não deve estar restrito ao espaço setorial da Secretarias e Coletivos Agrários Nacional e Estaduais do PT, mas envolver o partido como um todo, nossa militância e nossos dirigentes. Também precisa contemplar a articulação com os movimentos sociais do campo, das florestas e das águas, contemplando a representação da diversidade de povos e comunidades tradicionais organizados em torno desse debate, além de pesquisadores e especialistas da academia e instituições de pesquisa da sociedade civil.

A Secretaria Agrária Nacional se propõe assim a iniciar imediatamente um diálogo com o novo Diretório Nacional eleito neste 7º Congresso, para a construção, em conjunto com a Fundação Perseu Abramo e outras entidades e organizações parceiras, de um ciclo de seminário a começar ainda no início de 2020, no esforço de reconectar o partido com a pauta e a luta dos trabalhadores e trabalhadoras no campo, nas florestas e nas águas e construir um projeto de desenvolvimento rural para o Partido.

Ao mesmo tempo, o debate sobre a questão agrária e um modelo de desenvolvimento rural para o país não está descolado do debate mais amplo sobre o modelo de desenvolvimento econômico e social para o país, assim como sobre a questão ambiental e a sustentabilidade do uso das nossas riquezas naturais. Assim sendo, num segundo momento, em articulação com outras secretarias setoriais do partido, é necessário ainda dar um passo adiante em relação ao modelo de desenvolvimento que o partido propõe para o Brasil.

Durante o processo eleitoral de 2018, houve um esforço interessante de provocação e diálogo da coordenação da campanha Lula/Haddad/ Manuela com as secretarias setoriais que, mesmo sob limites impostos pelo calendário eleitoral, produziu resultados importantes. Destacamos aqui o eixo de “transição ecológica para a nova sociedade do século XXI”, que apontou caminhos interessantes para um projeto que articule as questões agrária e ambiental, assim como a integração entre o campo e a cidade. Neste sentido, a Secretaria Agrária se propõe também a buscar outras secretarias setoriais do partido para contemplar debates e reflexões que aprofundem a perspectiva de um projeto petista de transição ecológica para o Brasil.

Por fim, é importante ressaltar que, tendo em vista do calendário político de 2020, estes debates devem se propor também a apresentar um programa para as candidaturas petistas nas eleições municipais para prefeitos e vereadores em todo o Brasil. Nesse aspecto os debates precisam se debruçar sobre a questão da ruralidade dos municípios brasileiros e da integração entre o campo e a cidade. Mais adiante, apresentamos considerações específicas em relação às eleições municipais.

Considerações iniciais para um Programa Agrário do PT

Com base em algumas das questões apresentadas aqui, antecipamos neste documento elementos para um programa agrário do PT, levando em consideração três ordens de questões:

  1. Questão agrária e agricultura;
  2. Direitos dos povos do campo, das florestas e das águas;
  3. Campo e cidade e a agenda de desenvolvimento nacional, enquanto síntese das duas primeiras.

Questão agrária e agricultura

As transformações ocorridas no rural brasileiro nos últimos anos exigem novas formulações políticas e de políticas públicas. O debate sobre a ruralidade dos municípios com menos de menos de 50 mil habitantes, – que corresponde a 90% do total – coloca em xeque a visão corrente (sustentada inclusive pelo IBGE) de que o Brasil é um país urbano e cada vez mais urbano, já que na maioria dos casos a realidade destas localidades guarda relações mais fortes com o universo rural do que com a vida dos centros urbanos.

A luta pela terra e a questão agrária permanecem no centro das agendas social e política brasileira. Um dos desafios a serem assumidos pelo programa político petista é, portanto, colocar em prática o preceito constitucional da função social da propriedade e encarar a concentração da terra no Brasil (1% das propriedades concentram 45% da área rural) com políticas de i) reforma agrária; e ii) regularização fundiária.

Da mesma forma, a concepção petista sobre a política agrícola deve ser reorientada. Por um lado, por uma maior priorização na promoção da segurança e soberania alimentar, isto é, pela oferta de alimentos saudáveis e com preço justo para o consumo interno. Por outro, pelo estímulo à agregação de valor na produção de commodities, em detrimento da exportação in natura.

Por fim, a centralidade da perspectiva agroecológica precisa se consolidar no projeto petista como modelo para um desenvolvimento rural orientado para a soberania e segurança alimentar, para uma relação saudável com a natureza e com os bens comuns e para a geração de qualidade de vida aos milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros. Assim, defendemos a promoção de um debate amplo na sociedade sobre o modelo de agricultura que queremos e que o Brasil precisa, para alimentar nossa população com comida saudável e à preços acessíveis.

Para dar suporte a estas políticas, lembramos que o Brasil possui uma série de estruturas e instituições voltadas à promoção do desenvolvimento agrário, dentre as quais destacam-se a Embrapa, a Conab, a Anater, o Incra e a Funai, além dos órgãos de proteção ambiental, Ibama e ICMBio. Estas instituições precisam ser defendidas contra os ataques destrutivos do governo Bolsonaro e preservadas enquanto instrumentos de promoção do desenvolvimento rural sustentável e solidário.

Ao mesmo tempo, o projeto petista precisa repensar a estrutura do Estado como um todo, com vistas a romper com a dinâmica de dominação, exploração e conservadorismo que marca a história brasileira e a formação da questão agrária no país. Qual Estado queremos? Qual Estado precisamos para o que queremos? Nesse sentido, cabe a reflexão acerca da sustentação popular deste projeto. Quais ações e políticas estimulam a formação política da população? Como vamos fomentar a organização popular voltada para a emancipação e articular com a formação política na defesa da soberania e da democracia?

Direitos das populações do campo, das florestas e das águas

No que diz respeito aos direitos das populações do campo, das florestas e das águas, ressaltamos que os Governos Lula/Dilma institucionalizaram diversas leis e decretos de reconhecimento dessas populações. A partir do reconhecimento, foram criados espaços de participação política e social no âmbito das Conferências, dos Conselhos e dos Colegiados Territoriais. Aos poucos, vimos o processo de afirmação dos diversos sujeitos do campo, em especial, das mulheres, das juventudes e dos povos e comunidades tradicionais (PCTs). Para estes segmentos foram propostas e implementadas políticas públicas, mas ainda de forma tímida. O desmonte golpista seguido pela política de destruição das instituições estatais implementadas por Bolsonaro eliminou ou deturpou completamente as estruturas do Estado voltadas às juventudes, às mulheres e ao combate ao racismo e valorização dos PCTs. O projeto petista precisa não apenas recuperar estes instrumentos, mas reavaliar o seu papel e potencial enquanto espaço de proposição, e gestão das políticas no processo de construção social e legitimação popular de um modelo de desenvolvimento rural para o país.

Outro aspecto que devemos enfrentar é a formulação de políticas públicas específicas para as realidades dos PCTs em toda a sua diversidade: povos indígenas, comunidades quilombolas, extrativistas, ribeirinhos e tantos outros. Destaca-se principalmente as singularidades da região Norte do país, que demanda estratégias específicas para a garantia de direitos e condições de geração de renda e vida digna. Ainda sobre os PCTs, lembramos a importância dessas populações na preservação da natureza e das riquezas naturais, no processo de combate ao desmatamento e à pilhagem da biodiversidade.

As relações de trabalho no campo também merecem atenção especial, sobretudo após a aprovação da contrarreforma trabalhista e previdenciária, cujos impactos são particularmente perversos sobre a classe trabalhadora rural, com destaque para a categoria dos assalariados rurais, historicamente vulnerável à superexploração e ao trabalho escravo e negligenciada nos nossos governos. Neste sentido, é preciso não apenas revogar as reformas trabalhista e previdenciária, como superar desigualdades na garantia de acesso à proteção social e aos direitos de cidadania pelo conjunto das categorias de trabalhadores e trabalhadoras rurais, além de recuperar e fortalecer a capacidade organizativa das suas entidades sindicais.

Campo e cidade e a agenda de desenvolvimento nacional

A necessidade de uma nova postura diante das questões fundiárias deve caminhar junto à uma agenda de desenvolvimento ligada à garantia da soberania popular nacional, dos direitos sociais e de uma nova relação com a natureza. Uma boa inspiração é a concepção de bem viver (buen vivir), formulada no contexto latinoamericano do século XXI, particularmente na Bolívia e no Equador. Um aspecto fundamental desta nova agenda de desenvolvimento tem a ver com a relação rural-urbana, que não se restringe à questão da segurança e soberania alimentar (Se o campo não está de pé, a cidade não toma café. Se o campo não roça, a cidade não almoça. Se o campo não planta, a cidade não janta). A indissociabilidade entre o campo e a cidade envolve as formas de uso e ocupação do solo; os modos de produção; as relações de trabalho; a distribuição da produção e das riquezas geradas; a relação com a natureza; as dinâmicas demográficas, particularmente as migrações; o acesso a bens e serviços públicos; e a produção de conhecimento e de tecnologias, considerando a relação entre conhecimentos científicos e saberes tradicionais.

IV. A ruralidade e organização política nos municípios:
um debate para eleições de 2020

 As eleições municipais de 2020 apresentam grandes desafios para o Partido dos Trabalhadores. O contexto político adverso e em particular a ascensão do fascismo que ganhou força nos últimos anos, com a crescente perseguição e criminalização dos movimentos sociais, do PT e da esquerda de um modo geral, atingiu este ano um patamar sem precedentes. No entanto, a crise política que culminou no golpe contra a presidenta Dilma em 2016 e na eleição de Bolsonaro em 2018 teve início antes mesmo do término das eleições de 2014, quando ainda no primeiro turno foi eleito o Congresso Nacional mais conservador dos últimos 50 anos, superado apenas pelo atual, eleito em 2018. Este cenário expõe a fragilidade da estratégia eleitoral do campo progressista e das forças políticas que defendem os interesses da classe trabalhadora na disputa pela representação parlamentar.

Presença da classe trabalhadora rural nos espaços legislativos

Esta fragilidade é ainda mais profunda no que se refere aos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Na arena política nacional, a representatividade do rural brasileiro se concentra nos setores que representam os interesses dos grandes latifundiários e empresários do agronegócio, em detrimento da imensa maioria da população rural do campo e das florestas, formada pela agricultura familiar, os acampados/as e assentados/as da reforma agrária, as mulheres e jovens rurais, os assalariados/as do campo e os povos e comunidades tradicionais.

Diante deste cenário e da proximidade das eleições municipais deste ano, é importante refletir sobre alguns dos aspectos que demarcam estas fragilidades. São questão cruciais para as disputas que se avizinham porque são espaços que possibilitam maior interação entre candidaturas e eleitorado.

A Ruralidade no Brasil

Quando se fala no rural brasileiro, é necessário entender melhor sua configuração. De acordo com o censo realizado em 2010, apenas 16% da população brasileira vive na zona rural. Porém, segundo um estudo realizado pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério do Planejamento e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), publicado em 2015, o rural brasileiro representa 36% da população, 89% do número de municípios e 90% da área geográfica do país[4].

O que demarca essas diferentes percepções é a leitura do rural enquanto forma territorial de vida social, abrangendo as dinâmicas dos espaços locais. Se considerarmos que a maioria dos municípios brasileiros possuem menos de 20 mil habitantes, e que a economia destes locais gira em torno das atividades rurais agrícolas e não agrícolas, a leitura fria dos dados da população segundo o local de moradia, não representa o verdadeiro tamanho do rural.

Tradicionalmente, o contexto político brasileiro tem enorme dificuldade em abordar as demandas advindas da vida no campo. Esta condição reflete as facilidades organizativas e de comunicação que concedem à população urbana larga vantagem na expressão de suas necessidades e na manifestação de lideranças. A realidade dos homens e mulheres da agricultura familiar, dos povos e comunidades tradicionais e da reforma agrária se depara com um conjunto de dificuldades que, sobrepostas, se tornam um obstáculo a uma abordagem global de suas especificidades culturais e territoriais. Soma-se a isso o fato de ainda ser forte a visão do rural como o lugar do atraso, em contraponto às cidades como expressão do progresso.

Organização político-partidária

Esta realidade se reproduz também na organização partidária. O modelo organizativo dos partidos políticos ainda favorece os setores mais organizados e melhores conectados em um mundo que mescla a realidade dos espaços públicos físicos e virtuais. As lideranças do rural que se destacam neste cenário são aquelas que conseguem manter uma posição diferenciada nesses espaços ou travar verdadeiras batalhas para superar um acesso limitado a estes recursos.

Em que pese termos galgado avanços no conjunto das políticas públicas para a agricultura familiar, sobretudo nos aportes estruturantes, técnicos e políticos para a produção de alimentos saudáveis e termos demarcado a efetividade das políticas de desenvolvimento territorial, as estruturas partidárias do campo progressista permanecem frágeis no diálogo com a população rural.

É preciso reconhecer que mesmo com grandes esforços realizados por esse campo progressista da política brasileira, a histórica desigualdade econômica e política que favorece as oligarquias rurais no Brasil ainda é um obstáculo para o enfrentamento de uma estrutura fundiária secular, concentradora e injusta, que mantém as relações sociais e políticas opressoras com os camponeses e povos e comunidades tradicionais brasileiros.

Neste contexto, a descentralização política proposta pelo pacto federativo muitas vezes dá lugar a um processo desestruturado de ”prefeiturização”, onde uma apropriação personalista das políticas públicas pelos governantes locais inibe a percepção da comunidade sobre o caráter público destes instrumentos e a presença do Estado brasileiro nestas ações.

Neste sentido, no âmbito da organização partidária, é preciso fomentar debates que avancem na leitura da realidade local dos municípios brasileiros, com foco na percepção das especificidades culturais, sociais, territoriais e econômicas dos sujeitos diversificados do campo, bem como do significado da presença do estado e das políticas públicas em suas vidas. Um debate que busque reconectar o partido e nossos candidatos à nossa histórica base social no campo e nas florestas, evidenciando a importância de ocupar os espaços de representação política nos poderes legislativo e executivo para disputar a aplicação dos instrumentos e recursos públicos na implementação e gestão das políticas públicas e na conquista e ampliação dos direitos socais da classe trabalhadora.

A missão do militante petista, e assim dos mandatos petistas, é fazer o debate e a luta ideológica em cada tarefa realizada e assim fortalecer a identidade da classe trabalhadora na prática cotidiana, reafirmando a prática como critério da verdade.

Papel das eleições municipais para o projeto político do Partido

O projeto político que defendemos depende da institucionalidade e da luta social. Portanto, mais do que nunca qualificar nossas candidaturas é essencial tanto para garantir os direitos conquistados como para o necessário repensar permanente do nosso projeto.

As eleições municipais guardam em si maior proximidade entre candidatos e eleitorado. É no local onde as relações sociais se constroem, é onde a população se identifica com as propostas e com os postulantes. No entanto, os resultados das urnas raramente conseguem refletir a diversidade do campo, reforçando uma classe política centrada no poder econômico. Somente um enfrentamento desta realidade pelas lideranças socais do PT em uma conexão mais profunda com suas bases no partido e nos movimentos sociais pode dar sustentação à sua capilaridade e interiorização. Para tanto, é fundamental recuperar os instrumentos e propostas de organização participativa tanto da estrutura partidária como dos mandatos e gestões conquistadas nas urnas.

A defesa do projeto democrático e popular no campo

As conquistas realizadas nos 13 anos de governos petistas pelas lutas dos movimentos sociais do campo, das florestas e das águas foram importantes e significativas e trouxeram melhorias na vida da população rural.

As candidaturas rurais de prefeitos e vereadores do PT devem incorporar como pauta prioritária informar e orientar a sua base política a respeito destas conquistas e ressaltar a importância de sua defesa diante dos ataques e desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro. A começar pelas diretrizes da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais estabelecidas pela Lei 11.326 de 2006, de como acessar as políticas públicas desenvolvidas para sua melhoria de vida. Na realidade do campo, muitas famílias deixam de se beneficiar das políticas públicas a que têm direito por falta de informações ou dificuldade de acesso, como por exemplo a distância dos cartórios para regularização documental ou a falta de conexão com a internet nas comunidades para preenchimentos de documentos disponíveis online.

Não se pode subestimar ainda a capacidade dos municípios de enfrentar a política de desmonte do governo federal através da formulação e implementação de uma agenda própria, mesmo que “contra a correnteza” da conjuntura nacional. Um exemplo notável neste sentido é a iniciativa implementada na cidade de Florianópolis em 2019, que transforma a cidade em Zona Livre de Agrotóxicos, por meio da aprovação de uma lei municipal que proíbe o uso e a venda destes produtos no município.

Em suma, os nossos mandatos legislativos e executivos precisam assumir como tarefa subsidiar a formação e informação de todos os segmentos da agricultura familiar, para o acesso as políticas públicas que foram desenvolvidas nos governos democráticos e populares do nosso campo.

Acima de tudo, os mandatos petistas rurais devem tratar as pautas de formação do povo do campo, das florestas e das águas de forma politizada e emancipatória, para que as transformações no mundo rural brasileiro possam se dar na sua estrutura social e não apenas no acesso a bens de consumo.

Consonante com os princípios partidários, a participação social precisa voltar a ser a essência do modo petista de governar e legislar através, inclusive, do resgate e da construção nos municípios, da Política Nacional de Participação Social (PNPS). Instituir reuniões comunitárias permanentes, fóruns, audiências públicas, espaços abertos de avaliação e proposição de agendas e monitoramento dos mandatos, fortalecer os conselhos municipais, fomentar a realização de conferencias e fortalecer os movimentos e organizações devem ser método permanente. Orientar nossas lideranças e núcleos partidários rurais a buscar a interação com as Escolas Famílias Agrícolas e Escolas Técnicas Agrícolas, buscando a inserção dos jovens rurais nos mandatos do legislativo e executivo, construindo a formação de uma cultura de educação política na sociedade rural de cada local. Em resumo, o partido precisa adotar uma linha de ação concreta para fortalecer e instrumentalizar a construção de candidaturas através de processos participativos, em sintonia com os espaços de participação já existentes e comprometidas com a construção e consolidação dos novos espaços de participação.

Pautas propostas para o fortalecimento das candidaturas petistas no meio rural

Do ponto de vista estratégico e programático, apresenta-se a seguir um conjunto de questões importantes para serem debatidas e aprofundadas nas disputas eleitorais nos municípios:

Estratégia Política e Eleitoral

  • Definir uma estratégia de atuação territorial do Partido nas eleições municipais para fortalecer as candidaturas em cada um dos municípios que compõem determinado território rural, estabelecendo uma pauta mínima para as propostas de interesse do público rural a serem defendidas por candidatos ao legislativo e executivo municipais.
  • Ampliar espaços de diálogos políticos nos territórios rurais envolvendo os movimentos sociais representativos das cidades e do campo nesses ambientes rurais.
  • Discutir programas de governo para as gestões municipais, considerando as potencialidades do território rural, a cooperação entre os municípios e a integração entre campo e cidade.
  • Discutir plataformas para ação legislativa com os públicos da agricultura familiar, visando assumir compromissos partidários pela superação da sub-representação.
  • Aprofundar os debates sobre os desafios do pacto federativo e as atribuições, responsabilidades e limites da esfera municipal e sua relação com os demais níveis da federação.
  • Apresentar propostas que visem ampliar a participação do público rural nas instâncias políticas do PT, bem como nas câmaras legislativas e nas prefeituras.
  • Abordar a questão do financiamento das campanhas, em particular o fim do financiamento empresarial e as implicações na estratégia eleitoral, além do novo calendário eleitoral.
  • Associar a construção das políticas públicas para a agricultura familiar ao projeto político do PT, evidenciando as formas de acesso e as mudanças nas vidas das pessoas beneficiadas.

Pauta Programática

  • Orientação para a obtenção de DAP de pessoas físicas e jurídicas. A universalização da DAP não é um fato, os futuros mandatos petistas podem ter como pauta a universalização da DAP nas suas áreas de atuação.
  • Controle Social e gestão participativa das políticas governamentais – propor monitoramento e democratização das políticas e recursos repassados aos municípios pelo governo federal6.
  • PAA e PNAE na pauta dos mandatos rurais de vereadores/as do PT – batalhar junto à administração pública municipal para garantir, via PNAE, que 30% das compras públicas para merenda escolar sejam oriundas da produção da agricultura familiar, assim como lutar por recursos do PAA para o município.
  • Apoio para organização de cooperativas e associações da agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais – orientação para a obtenção do SIPAF; Promover o acesso aos Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) como instrumento de consulta.
  • Informar os agricultores familiares sobre os procedimentos com relação a proteção de seus conhecimentos tradicionais associados a produção agroflorestal familiar.
  • Promover o debate e fomentar a formação e capacitação dos agricultores familiares em relação ao significado, importância e os benefícios da transição agroecológica, do controle e soberania sobre o patrimônio genético das sementes.
  • Promover debates para advertir agricultores e cidadãos sobre os perigos do uso desenfreado de agrotóxicos e transgênicos e promover políticas municipais de redução ou mesmo banimento do uso de agrotóxicos nos seus municípios.
  • Orientação para a realização do Cadastro Ambiental Rural, para que as posses e propriedades da agricultura familiar estejam ambientalmente adequadas ao Novo Código Florestal.
  • Promover o debate sobre as políticas e instrumentos de democratização do acesso à terra e reorganização fundiária nos municípios e territórios rurais de atuação, como o Programa Nacional de Reforma Agrária, o Programa Nacional de Crédito Fundiário e o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural.
  • Promover debates e apoiar a organização de jovens, mulheres e povos e comunidades tradicionais, fortalecendo a visibilidade e a construção de políticas locais para estes segmentos na maioria das vezes excluídos das políticas públicas em âmbito local.

Para concluir, é indispensável atuar incisivamente no enfrentamento às pautas conservadoras recolocadas na atual conjuntura política do país. É importante continuar denunciando todos os retrocessos engendrados pela associação de segmentos golpistas presentes nos três poderes, e defender o legado dos governos democráticos e populares do PT na luta por um campo livre de todo tipo de opressão, do trabalho escravo à homofobia, o machismo e a violência de gênero.

[1] “(…) e pra a agricultura familiar, nós vamos ter que acabar com esse nome. Nós vamos ter ‘Agricultura’. Os pequenos, os médios e os grandes produtores” – foram as palavras da Ministra da Agricultura, Tereza Cristina, em cerimônia de posse do presidente da ANATER, em 29 de abril de 2019. A frase pode ser ouvida em vídeo disponível no canal da Anater no Youtube, no minuto 1:07. Disponível em: https://youtu.be/LE_Rsktbp5I.

[2] A Lei Agrícola Nacional  (Lei nº 8.171/1991) em seu artigo 17 estabelece que “o Poder Público manterá serviço oficial de assistência técnica e extensão rural, sem paralelismo na área governamental ou privada, de caráter educativo, garantindo atendimento gratuito aos pequenos produtores e suas formas associativas”. Da mesma forma, o artigo 3º, inciso II da Lei de Ater (Lei nº 12.188/2010), estabelece que são princípios da Pnater a “gratuidade, qualidade e acessibilidade aos serviços de assistência técnica e extensão rural”;

[3] A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF) reagiu a estas medidas, determinando que o órgão revogue as medidas, denunciando tanto o descaso com o recurso público já investido nestes processos como a temeridade quanto a promoção conflitos agrários e violência no campo com a decisão (Recomendação nº 10/2019/PFDC/MPF). Porém o INCRA reafirmou a intenção em manter as medidas, revelando desrespeito com as instituições e descompromisso com suas atribuições originárias.

[4] Sobre essa questão, vide “População rural do Brasil é maior que a apurada pelo IBGE, diz pesquisa”. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-03/pesquisa-diz-que-populacao-rural-do-brasil-e-maior-que-apurada-pelo-ibge

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