‘É muito medo das vozes femininas’:

Das Câmaras Municipais ao Senado, mulheres parlamentares têm suas falas constantemente interrompidas.

‘Impedir que uma mulher fale, interrompê-la ou não considerá-la como igual na sua fala são formas de violência política de gênero’, diz pesquisadora

“Não entendo porque tanto medo das vozes femininas aqui”, questionou a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) na sessão de quarta-feira (5) da CPI da Covid no Senado, após senadores governistas se irritarem com o acordo feito para que a bancada feminina pudesse fazer perguntas durante a sessão, mesmo sem integrar oficialmente a comissão de inquérito.

Na véspera, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), havia acordado que as senadoras tivessem prioridade na oitiva de Nelson Teich, ex-ministro da Saúde, já que nenhum dos 18 assentos da CPI é ocupado por uma mulher. Embora não fizesse parte do regimento, o combinado não teve nenhuma oposição dos presentes na sessão de segunda-feira, mas quando Aziz passou a palavra à Gama no dia seguinte, irritou os senadores Ciro Nogueira (PP-PI), Marcos Rogério (DEM-RO) e Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).

“Se foi um erro as lideranças não indicarem as mulheres, a culpa não é nossa”, disse Nogueira. Ao que senadora que estava com a palavra respondeu, dizendo não entender porque o temor das falas femininas na CPI. Os ânimos se exaltaram e Gama não conseguiu concluir sua fala em função das interrupções dos colegas. A sessão chegou a ser suspensa por alguns minutos.

Após ser retomada, o presidente da CPI mais uma vez concedeu a palavra à representante da bancada feminina, que, ao ser interrompida novamente, foi categórica: “Vossa excelência pensa que vai calar a gente? Do jeito que o senhor não admite meu grito, eu também não admito o seu”, disse Gama em resposta a Nogueira. Ela enfim conseguiu concluir suas perguntas ao ex-ministro da saúde.

Para a professora e coordenadora do programa Diversidade da FGV Direito Rio, Ligia Fabris, o episódio na CPI é emblemático. Além de fazer um retrato de como a presença de mulheres nos espaços de poder ainda incomoda, mostra também como as parlamentares têm se posicionado de maneira mais veemente para serem ouvidas.

— O episódio me deu a impressão de que as mulheres estão colocando mais visivelmente a demanda de serem ouvidas nesses espaços. O que, no fundo, é uma demanda por igualdade. Elas estão expressando mais o seu descontentamento quando lhes é negado o direito de participar em igualdade de condições nesses espaços. Isso é muito positivo — afirma a professora, que estuda as desigualdades de gênero na política.

Fabris chama atenção para a fala da senadora Simone Tebet (MDB-MS), líder da bancada feminina no Senado, ao defender a possibilidade de as mulheres falarem argumentando que não se tratava de um privilégio, e sim de algo acordado com os senadores.

— É muito importante que a senadora fale de não estar demandando privilégios de maneira tão eloquente e significativa. A demanda é apenas para fazer uso da sua prerrogativa como parlamentar eleita — diz a professora, relembrando em seguida a fala da senadora Leila Barros (PSB-DF). — Ela ressaltou aos senadores que tinha sido eleita e estava ali pela mesma razão que eles e tinha a legitimidade para falar — lembrou. “Eu entrei aqui pela mesma porta”, disse a senadora.

O episódio também demonstra um problema anterior, explica Fabris. Das 81 cadeiras do Senado Federal, apenas 12 são ocupadas por mulheres. E não há nenhuma senadora entre os 11 titulares e sete suplentes na CPI da Covid.

— É grave. É uma ausência que fala muito. E são dois pontos a serem levados em conta. Primeiro é a relevância política dessa CPI, que é muito grande no jogo de poder. As mulheres estão tradicionalmente fora de onde o poder está colocado— afirma a professora, lembrando também que a pandemia tem impacto especialmente grave sobre as mulheres — Então você vai deliberar sobre isso, mas sem elas. O fato de as mulheres estarem excluídas desse espaço é mais uma forma de perpetuar essa violência. Uma forma de excluir e seguir ignorando os ônus que as mulheres têm carregado no contexto da pandemia — afirma a professora.

Da esfera federal à municipal

Fabris explica que a violência política de gênero acontece em todas as instâncias do poder, desde o mais alto parlamento federal às câmaras municipais, e se manifesta de diversas formas, das mais sutis às mais ostensivas.

— A violência política de gênero revela uma tentativa de impedir que mulheres exerçam seus mandatos com o objetivo de impedir que os interesses que elas representam sejam veiculados e contemplados na esfera política. Muitas vezes, esses interesses são diferentes daqueles tradicionalmente representados na política — afirma a pesquisadora.

Enquanto assistia à discussão em torno do direito de fala da bancada feminina na CPI da Covid, a vereadora Karla Coser (PT) reconheceu algumas das suas próprias vivências na Câmara Municipal de Vitória, capital do Espírito Santo.

Quando aquilo aconteceu no Senado, muitas pessoas vieram falar comigo, dizendo como era parecido com o que acontecia aqui. É igual, independente do espaço que a mulher ocupa. Até uma senadora é vítima desse tipo de violência política”, diz.

Karla está no seu primeiro mandato e conta que, quando começou a publicar seus discursos nas redes sociais, passou a receber comentários de eleitores indignados que os outros vereadores não a deixavam falar e a interrompiam constantemente. Com ajuda de sua equipe, a vereadora então decidiu fazer a conta. Na ponta do lápis, nos primeiros 100 dias de mandato, Karla foi interrompida 135 vezes. Mais de uma interrupção por dia. Entraram no cáculo as vezes em que seus colegas “pediram a parte” (como a questão de ordem, no Congresso) durante seu discurso, ou a interromperam sem pedir licença, atropelando sua fala.

“Passei a perceber que é claramente uma tentativa de interromper meu raciocínio, de me impedir de concluir um pensamento”, desabafa.

Das 15 cadeiras da Câmara Municipal de Vitória, apenas duas são ocupadas por mulheres. Karla conta que seus pares homens não são interrompidos da mesma forma que elas e ainda ressalta que muitas das interrupções são acompanhadas por falas em tom professoral, desqualificando a vereadora como se ela não soubesse do que está falando.

“Muitas vezes, eu sou sabatinada nas minhas falas. Como se quisessem, por eu ser uma mulher jovem e estar em primeiro mandato, comprovar que eu sei do que eu estou falando”, diz.

As essas condutas, de constante interrupção e do tom condescendente, dá-se o nome de mansplaining e manterrupting (ainda não há um termo em português cunhado para ambos). Esses comportamentos experimentados pelas mulheres em diversos ambientes, especialmente o profissional, na política tem um efeito especialmente nefasto:

— Impedir que uma mulher fale, interrompê-la ou não considerá-la como igual na sua fala são formas de violência política de gênero — afirma Fabris.

Karla relembra de um episódio recente em que a violência foi menos sutil e que ela e sua única colega mulher, Camila Valadão (PSol), foram agressivamente interrompidas aos gritos pelo vereador Gilvan da Federal (Patriota) durante uma sessão na câmara. Foi preciso o presidente da casa Davi Esmael (PSD) intervir para garantir o tempo de fala de ambas.

“Tanto no Congresso Federal, quanto nas câmaras municipais, os ânimos se afloram e os parlamentares falam mais alto. Isso é natural. Mas o desrespeito é inaceitável. São comportamentos que superam o dia a dia do parlamento”, conta Karla.

Para Fabris, as mulheres que ocupam espaços na política acabam pagando muito caro por estarem em lugares historicamente masculinizados.

— A violência política de gênero é uma forma de dizer para as mulheres que aquele espaço não as pertence. E elas pagam um preço muito alto por estarem ali. Isso, de alguma maneira, atinge as que estão ali, mas também manda um recado para todas as outras — diz.

Para ela, combater a violência política de gênero é importante para as mulheres, mas também para a democracia:

—  A violência política sofrida pelas mulheres tem na sua raiz a discriminação de gênero. É uma tentativa de afastar um grupo específico do espaço de poder, elevar esse grupo como alvo em razão do gênero. É um ato violento e discriminatório — explica Fabris, e continua — É preciso ter claro que todas as formas desse tipo de violência precisam ser combatidas: as candidaturas laranja, a interrupções, o assédio, a misoginia e as ameaças ou agressões. E esse não é um pleito só das mulheres. O pleito pelo fim dessa violência é um pleito pela igualdade e pelo fortalecimento da democracia.

Conteúdo original e matéria completa: https://oglobo.globo.com/celina/e-muito-medo-das-vozes-femininas-das-camaras-municipais-ao-senado-mulheres-parlamentares-tem-suas-falas-constantemente-interrompidas-25004211

 

Da Redação, Agência Todas.

Tópicos:

LEIA TAMBÉM:

Mais notícias

PT Cast