Artigo: Entulho autoritário, por Eugênio Aragão
“É flagrante a incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional com a atual ordem constitucional do País”, escreve o ex-ministro da Justiça, em artigo
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Recentemente, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que, no atual governo, a instauração de inquéritos policiais baseados na famigerada Lei n.º 7.170, de 1983, conhecida por Lei de Segurança Nacional ou, simplesmente, LSN, tornou-se mais frequente e apontou para uma taxa de crescimento de 285% na sua incidência. Por se tratar de um dos mais severos “entulhos autoritários” advindos da ditadura, não pode deixar de preocupar – e muito – seu manuseio em plena vigência da “Constituição Cidadã” de 1988.
O fato chama atenção especialmente depois de o ministro Alexandre de Moraes, do STF, à frente do controvertido inquérito sobre os “atos antidemocráticos” protagonizados em ataque às instituições e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal e seus magistrados, ter decretado a prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira. O referido parlamentar usou as redes sociais para desferir ameaças e insultos em baixíssimo calão contra os ministros e a Corte, a ponto de gerar comoção política em defesa da credibilidade do Judiciário. Sem querer, aqui, adentrar a discussão sobre se houve ou não flagrante delito, é relevante que a conduta do deputado tenha sido classificada como ameaça à segurança nacional, a permitir sua prisão por crime inafiançável. Depois, a Câmara dos Deputados confirmou a medida constritiva por ampla maioria.
Mal se noticiou a prisão de Silveira, houve manifestações de militares aposentados a sugerir que o mesmo tratamento deveria ser dado ao campo político da esquerda. Subentendia-se que as críticas ao presidente da República, mormente as mais ácidas, relacionadas com a desastrosa gestão da atual crise sanitária, também deveriam ser tratadas no âmbito da LSN.
O que se seguiu foi uma saraivada de inquéritos, alguns por expressa requisição do ministro da Justiça, outros motu proprio, partindo das autoridades policiais, a acusarem professores e servidores públicos, jornalistas, influencers e blogueiros da prática de ofensa contra o chefe de Estado classificável como crime contra a segurança nacional.
O mundo jurídico havia há muito se esquecido da LSN. Não que não tivesse sido invocada depois da promulgação da Constituição de 1988. Há sobre ela, só no STF, 28 decisões e acórdãos no período pós-constitucional. A questão da constitucionalidade da lei, ou melhor, de sua recepção pela nova lei fundamental, só ocupou a Suprema Corte lateralmente, numa decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso, quando se afirmou a compatibilidade entre o “entulho autoritário” e a ordem constitucional vigente. No mais, o conhecimento e o julgamento de diversos recursos ordinários em prol de condenados pela LSN obedeceram à rotina burocrática.
Com a nova profusão de inquéritos para persecução de crimes contra a segurança nacional, os partidos políticos começaram a se movimentar para provocar o exame da constitucionalidade da LSN no STF. O PTB, sob a liderança estridente de Roberto Jefferson, propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade contra toda a lei. O PSB limitou-se, em sua iniciativa de controle concentrado, a artigos que confrontam o direito fundamental à liberdade de expressão. Outros partidos, como o PT e o PSOL, anunciaram ações nessa linha.
A grande perplexidade política que se estabeleceu com essa discussão está na dúvida sobre o que fazer com os discursos de ódio, ora muito frequentes no campo da extrema-direita, contra a credibilidade das instituições do Estado Democrático de Direito e de seus agentes. Os ataques vis desferidos por agitadores nas redes sociais, e até por alguns parlamentares, têm corroído a legitimidade do poder estabelecido, com graves consequências para o convívio pacífico entre os campos políticos. São fatos que não podem deixar de receber alguma censura legal, com sanções adequadas contra seus autores. Por outro lado, não deixa de ser constrangedor manusear-se um texto legal construído para a perseguição de oponentes da ditadura.
É certo que a sociedade se distraiu. Achou-se que a nossa democracia estava suficientemente consolidada, a ponto de não ter urgência em mecanismos que pudessem pôr cobro à atuação de potenciais detratores. A discussão sobre uma lei de defesa do Estado Democrático de Direito alongou-se por demais e não encontrou, até hoje, solo fértil no Parlamento. Há, sim, projetos de lei propostos, mas sua tramitação mal começou. Agora, para evitar um vácuo legislativo, busca-se habilitar a LSN como instrumento de salvaguarda da democracia, escoimando, no máximo, alguns artigos de disposições mais agudas contra as liberdades fundamentais.
Reabilitar a LSN é tão danoso para a democracia quanto o foi permitir que estruturas repressivas da ditadura fossem absorvidas pela nova ordem constitucional sem qualquer tratamento de seu passado arbitrário e violento. A polícia brasileira, notória por sua violência, julga-se combatente de inimigos internos variados em vez de prestadora de serviços à cidadania. O resultado da distorção são os baixos padrões de observância da proibição da tortura e os alarmantes índices de letalidade policial.
A incompatibilidade da LSN com a atual ordem constitucional é flagrante, baseada que é numa doutrina de guerra interna à “subversão” da ordem, no contexto da Guerra Fria, então diagnosticado de modo corrompido. Por muito menos o STF declarou a antiga Lei de Imprensa não recebida, em sua integralidade, pela Constituição de 1988. A retirada da lei ditatorial do universo jurídico tem seu custo. Estaremos expostos a ataques de forças antidemocráticas sem conseguirmos defender adequadamente nossas instituições. Mas cabe ao Parlamento, não ao Judiciário, encontrar a saída política para essa debilidade. Se agir com a presteza e rapidez que a situação política atual exige, conseguirá trazer um novo marco de salvaguarda antes da palavra final do STF. Tudo é uma questão de prioridades.
Eugênio Aragão é ex-ministro da Justiça
Da revista CartaCapital