Fernandez pode representar um equilíbrio na América Latina contra EUA

Juan Grabois, dirigente popular da Argentina, analisa a conjuntura e as perspectivas para o governo de Alberto Fernández

Alejandro Pagni (AFP)

Alberto Fernandez

A eleição presidencial da Argentina, no último domingo (27), que deu a vitória a Alberto Fernández, da Frente de Todos, foi considerada uma derrota expressiva do neoliberalismo na América Latina, representado nacionalmente pelo atual presidente do país, Mauricio Macri, derrotado nesse pleito. O resultado, que leva à vice-presidência Cristina Fernández de Kirchner – presidenta de 2007 a 2015 –, desperta para o retorno de um ciclo progressista na região.

O Brasil de Fato conversou com Juan Grabois, dirigente social do Movimento de Trabalhadores Excluídos (MTE) e da Frente Pátria Grande, direto de Buenos Aires, para compreender os antecedentes desta eleição de 2019. O militante analisa a ascensão ao governo de Macri em 2015, e as perspectivas para o futuro no país.

Na avaliação do líder político, a falta de um candidato forte de esquerda contribuiu para a eleição de Mauricio Macri, em 2015, junto com o “canto da sereia do neoliberalismo”, que conquistou os setores médios do país. Para ele, a gestão macrista cumpriu “aquilo para o que foi eleito”: “Precarizou a vida dos argentinos, colocou na pobreza – que já existia e era grave – mais 4 milhões de pessoas”.

Juan Grabois

Macri encerrará seu mandato no dia 10 dezembro e deixará como legado um país com altos índices de pobreza e inflação, resultado de uma política subordinada ao Fundo Monetário Internacional (FMI), responsável pelo empréstimo US$ 57 bilhões ao país. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos da Argentina (Indec), o número de pobres na Argentina alcançou 35,4% da população, o maior número em 10 anos, e deve chegar a 39% até o final de 2019, após anos de desvalorização do peso durante a gestão macrista.

Apesar de considerar que o último governo colocou o país em “uma situação econômica lamentável”, Grabois é esperançoso em relação ao futuro da Argentina, pois o novo “pensará mais nos interesses do povo do que no mercado”. Para ele, o governo de Fernández e de Kirchner também representa uma esperança para a América Latina, porque romperá “com a subordinação aos interesses estadunidenses e do Fundo Monetário Internacional e dos organismos internacionais” e retomará “os sonhos da unidade latino-americana”.

Leia a entrevista completa:

Brasil de Fato: Quais os antecedentes da eleição deste ano, ou melhor, o que levou Macri a ser eleito em 2015 e não em 2019?

Juan Grabois: Em 2015, um pouco pela operação das grandes corporações de meios de comunicação, por uma intervenção dos EUA e também pelo desgaste após três governos de [Néstor e Cristina] Kirchner e pela bronca de muita gente por causa de corrupção que aconteceu – e que foi terrível –, Macri foi eleito. Esses elementos se combinaram à manipulação da direita e os erros do campo popular e democrático para perdermos a eleição.

Na eleição de 2015, não tínhamos um bom candidato e era preciso fazer uma autocrítica do porquê, em 12 anos, não conseguimos construir um candidato que representasse as aspirações do movimento nacional popular. E o canto da sereia do neoliberalismo conseguiu convencer um setor da população de que Macri poderia ser um bom presidente.

E Macri, para aquilo que foi eleito, precarizou a vida dos argentinos, colocou na pobreza – que já existia e era grave – mais 4 milhões de pessoas. Hoje temos cerca de 40% da população do país na pobreza. Metade dos trabalhadores está abaixo da linha de pobreza. O salário mínimo beira a indigência. Isto é, têm mais pobres e os mais pobres estão mais pobres do que antes. E um trabalhador do setor privado, com um salário e carteira registrada, não tem dinheiro para chegar no fim do mês.

Isso sem falar da dívida externa, que está quase em 95% do PIB, uma situação catastrófica do ponto de vista financeiro. E a desvalorização e a inflação, alcançaram picos inéditos. Ou seja, todos os indicadores mostram uma catástrofe, um desastre, um modelo que nos fez chegar a uma situação econômica lamentável.

No entanto, apesar da Frente de Todos ter conseguido unir quase toda a oposição, graças à renúncia de Cristina a uma candidatura própria para construir uma unidade, não ganharam as eleições com uma grande margem de vantagem como esperávamos. Ganharam por sete pontos de diferença. Macri se consolidou como chefe da oposição. E uma oposição muito mais à direita do que era em 2015, uma oposição de direita com traços bolsonaristas. Uma direita com um discurso cada vez mais próximo do fascismo, de criminalizar a oposição, a esquerda, os movimentos populares.

Como você analisa a luta contra o neoliberalismo na América Latina neste momento?

São lutas culturais, são lutas culturais profundas, porque o populismo de direita oferece aos setores da classe média uma ideia muito tentadora, de que a culpa de seus problemas é daqueles que estão piores do que você. Os que estão abaixo de você. Que você se esforçou pelo que tem, que é seu mérito individual e a sociedade não tem nada a ver com isso. A política não tem nada a ver com isso. E se você não está melhor, é por causa das pessoas que estão abaixo de você. Os pobres, os migrantes, os excluídos, os favelados, os catadores.

Essa ideologia da crueldade é uma ideologia tentadora porque toca em lugares muito sensíveis do ser humano. E temos que fazer uma batalha cultural.

Agora a Argentina tem um governo popular – porque nossa coalizão é heterogênea, temos diferentes tendências políticas e diferentes setores sociais e econômicos – fizemos esse ato de fé, pensando que [o novo governo] pensará mais nos interesses do povo do que no mercado. E temos a oportunidade de reverter essa ideia que o capital instaurou, de que tudo que é nacional, popular, latino-americano, todos os movimentos sociais, são delinquentes. Temos que fazê-lo bem e para isso precisamos ter muita firmeza contra a corrupção, contra qualquer extravagância de poder e de dinheiro, que nos fizeram muito mal no período anterior. E aprofundar a distribuição da riqueza.

Temos que mostrar que a fissura na nossa sociedade não é 50% de um lado e 50% de outro, é 99% de um lado e 1% do outro, que são os únicos que ganharam durante o macrismo: as grandes corporações multinacionais, os 2 mil latifundiários da Argentina e, principalmente, o Fundo Monetário Internacional, que é o principal responsável pela catástrofe social da Argentina, do Equador e de outros países do mundo, e são os verdadeiros inimigos do povo.

Os problemas sociais e econômicos da Argentina são muito graves, alguns deles são estruturais e não conjunturais, não são resultantes do neoliberalismo macrista, mas vêm do golpe de 1976 – pelo menos–, desde a irrupção do neoliberalismo com [o ex-presidente dos EUA Ronald] Reagan e [a primeiro-ministra do Reino Unido Margaret] Tatcher, que se aprofundou depois da queda do muro de Berlim, que daqui a pouco vai cumprir 30 anos. Então não podemos culpar Macri, por exemplo, de que 35% da classe trabalhadora argentina esteja excluída do mercado de trabalho assalariado.

Aí é onde entra a economia popular, que é um sistema que os trabalhadores inventaram para não acabar na indigência total. E aí estão os catadores, os vendedores ambulantes, a pequena produção têxtil, a produção artesanal, a agricultura familiar. Na economia popular, os movimentos populares organizam todas essas atividades de subsistência, para dar maior dignidade a essas trabalhadores e brigar pelos direitos daqueles que não têm terra, direito e trabalho, porque o mercado não dá diretamente ou porque dá em quantidade e qualidade insuficiente.

Quais são as expectativas sobre o novo governo?

Nesse sentido, esperamos que, no novo governo, possamos gestionar – de forma compartilhada – políticas públicas para cumprir alguns objetivos bem concretos, a urbanização de 4.490 favelas e assentamentos que não tem nem água, nem luz, nem rede de esgoto. Nossos companheiros podem trabalhar para que essas famílias tenham isso. Para a construção de 500 mil lotes com moradias populares, a regulamentação de 1500 comunidades de povos originários que estão registradas na Argentina e o fortalecimento da agricultura familiar. São esses objetivos que queremos cumprir, somando a um mecanismo de alimentação saudável, de compra estatal, como faz o Movimento Sem Terra no Brasil, com as merendas das escolas.

E outro elemento é a dignificação da economia popular, com um programa de profundas reformas sociais, de profunda distribuição da riqueza. Isso não é fácil de ser realizado, exige compromisso e orçamento e envolverá disputas contra os interesses dos ricos. Mas esse programa é o que estamos propondo a Alberto [Fernández]. Eu tenho confiança no Alberto, acredito nele, acredito que é uma boa pessoa e fará o melhor que pode, mas a orientação do governo, em muitos aspectos, vai depender da correlação de forças.

E tem um tema no qual acredito que ele começará com o pé certo, que é o tema da política internacional. Acredito que o Alberto vai romper com a política de Mauricio Macri, que é romper com a política do eixo Macri (Argentina), Bolsonaro (Brasil) Lenín Moreno (Equador) e Piñera (Chile). Acredito que vai romper com a subordinação aos interesses estadunidenses e ao Fundo Monetário Internacional e organismos internacionais.

Acredito que ele vai romper com a política do Grupo de Lima, de isolar e bater no Evo Morales [reeleito presidente da Bolívia], que vai rechaçar qualquer intervenção na Venezuela sem que isso implique deixar de reconhecer a grave e crítica situação desse nosso país irmão. E acredito que vai voltar a impulsionar as políticas da Pátria Grande, políticas de união latino-americana, que é uma das grandes tarefas estratégicas da nossa militância e das forças populares.

Nossa grande tarefa é voltar a retomar os sonhos da unidade latino-americana da Pátria Grande, que Lula, Evo Morales, [Rafael] Correa, [José Pepe] Mujica e [Hugo] Chávez trabalharam com tanta sistematização e empenho para conseguir consolidar, com instituições como a Unasul [União de Nações Sul-Americanas], e que, por falta de tempo e também por falta de vontade em alguns casos, não se consolidou. A unidade latino-americana não se consolidou com grandes projetos de infraestrutura, com bancos de investimento para desenvolvimento industrial, com programas de estudos compatíveis, nem sequer com um passaporte comum.

Espero que Alberto volte a empreender esse caminho e uma das coisas que mais me dá esperança é que haverá um contrapeso e um novo equilíbrio na região para enfrentar a ofensiva dos EUA que têm como objetivo nos dividir e nos dominar.

Por Brasil de Fato

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