Governo quer entregar única fábrica de chips e semicondutores da América Latina
Estatal gaúcha é a única empresa da América Latina a fabricar chips e semicondutores. Parlamentares petistas apresentaram na Câmara e no Senado projetos de decreto legislativo sustando a medida. Para os trabalhadores, fechamento da companhia vai custar mais caro do que mantê-la funcionando
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As bancadas do Partido dos Trabalhadores no Congresso Nacional lançaram uma ofensiva para deter os efeitos do decreto presidencial nº 10.578/2020, publicado na terça (15), que autoriza a “dissolução societária” do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). Vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), a estatal é a única empresa da América Latina a atuar na fabricação de chips e semicondutores, utilizados na fabricação de componentes eletrônicos.
Hoje, poucos países dispõem de capacidade tecnológica no setor. Entre eles, Estados Unidos, China e Coreia do Sul, onde a área é apoiada fortemente pelos respectivos governos. Para os petistas, a decisão do desgoverno Bolsonaro, tomada sem autorização do Congresso Nacional, é um retrocesso e um crime contra o futuro do Brasil.
Na quarta (16), um grupo de deputados apresentou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para sustar os efeitos do decreto. Assinam a proposta Erika Kokay (DF), Maria do Rosário (RS), Bohn Gass (RS), Henrique Fontana (RS), João Daniel (SE), Marcon (RS), Nilto Tatto (SP), Paulo Pimenta (RS) e Patrus Ananias MG).
Os parlamentares esclarecem que o Ceitec é um programa de Estado e possui produtos de alta tecnologia prontos para atender demandas imediatas da sociedade e do próprio governo em áreas como logística, saúde, agronegócio, segurança e soberania nacional. “Todas elas estratégicas para o desenvolvimento de uma nação independente e forte economicamente”, salientam na justificativa à matéria.
Os deputados lembram ainda que o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou irregularidades no processo de liquidação do Ceitec e que há um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) previsto para esta sexta (18). A Corte vai deliberar sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 6241, que questiona o processo sem autorização prévia do Congresso, já que a estatal foi criada por lei específica.
O líder da Minoria na Câmara, José Guimarães (PT-CE), foi outro a protocolar PDL com o mesmo teor. Segundo ele, Bolsonaro quer entregar a ciência e a tecnologia, sobretudo a pesquisa, “ao amigo de muitos deste governo – o mercado”. Para Guimarães, “trata-se de ação inconstitucional e é uma aberração”. Linha idêntica foi adotada pelo senador Jaques Wagner (PT-BA), que também apresentou um PDL para sustar o decreto.
“O Ceitec é resultado de um árduo trabalho que vem sendo feito desde 2000, pelo governo brasileiro, no sentido de incentivar o renascimento da indústria de semicondutores, uma das mais dinâmicas e relevantes da economia mundial. Além de gerar emprego e renda, o setor traz mais independência ao país por proporcionar domínio tecnológico e reforçar questões de segurança nacional e estratégia governamental”, ressaltou Wagner, segundo o qual o setor conta com mais de 42 empresas e instituições distribuídas pelo país.
“Permitir a dissolução é sair do caminho do desenvolvimento tecnológico e econômico e distanciar o Brasil, cada vez mais, dos países mais desenvolvidos”, completou o senador, lembrando que o STF já se posicionou diversas vezes determinando que a venda de ações de empresas públicas, sociedades de economia mista ou de suas subsidiárias ou controladas exige prévia autorização legislativa.
Secretário-geral da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional, o deputado Patrus Ananias (PT-MG) reforçou o movimento protocolando o PDL 557 na Câmara. Segundo ele, a Ceitec fabrica produtos de alta tecnologia para as áreas de logística, saúde, agronegócio, segurança e soberania nacional, como semicondutores, chips, etiquetas eletrônicas e sensores, alavancando a cadeia produtiva de eletrônica do País.
Patrus destaca que indústria de semicondutores mundial tem tido crescimento de 17% ao ano nas últimas duas décadas, movimentando cerca de US$ 1 trilhão (R$ 5 trilhões) anualmente. Afirma ainda que em todos os países onde houve desenvolvimento das indústrias de semicondutores, incluindo os que adotam políticas econômicas liberais como Singapura, Reino Unido, Estados Unidos e Coréia do Sul, a implantação ocorreu com apoio de políticas públicas e investimentos estatais.
Estatal atrai investimentos para o Rio Grande do Sul
A presença da Ceitec no Rio Grande do Sul promoveu a atração de investimentos estrangeiros para o estado e despertou o interesse de investidores coreanos, que levaram a HT Micron para São Leopoldo (RS). A empresa emprega diretamente cerca de 200 profissionais altamente qualificados que estariam, hoje, possivelmente, trabalhando em outros países e contribuindo para outras economias.
Em nota divulgada na quarta, a Associação dos Colaboradores da Ceitec (Acceitec) afirma que os estudos que subsidiaram a elaboração do decreto “são falhos, não são assinados por nenhum técnico que se responsabilize legalmente pelas informações nele contidas e não tem o aval do TCU, que, em sua análise, aponta diversas irregularidades no processo”. Segundo os dirigentes da entidade, “a extinção da Ceitec põe em xeque a autoridade dos Poderes que não foi respeitada”.
A associação vem chamando a atenção para o fato de que o fechamento da empresa vai custar mais caro do que mantê-la funcionando e de que o decreto promove o entreguismo. “Dissolver a Ceitec é retirar o Brasil de um seleto grupo de países que produzem semicondutores, é limitar importantes políticas públicas nacionais e findar com a possibilidade do país se tornar autossuficiente em tecnologia”, afirma a nota.
Para o presidente da Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (CUT-RS), Amarildo Cenci, a decisão do governo mostra o descaso com a pesquisa, a ciência e tecnologia como fatores de desenvolvimento e soberania nacional. “A extinção da Ceitec revela que a política do Bolsanaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, é a destruição da indústria e a transformação do Brasil num grande fazendão”, criticou.
Segundo ele, “amplos setores do mundo acadêmico, empresarial e de organizações da sociedade civil do RS se mobilizaram para impedir que um empreendimento de tamanha envergadura como a Ceitec seja arruinado por um presidente que governa de costas para a soberania do Brasil, enquanto é devorado por águias astutas e sedentas por abocanhar o pouco de independência tecnológica que ainda nos resta”.
Decreto ameaça soberania tecnológica nacional
A recomendação pela extinção foi formalizada pelo conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), sob a alegação de que, apesar de aportes de R$ 800 milhões em duas décadas, a estatal ainda depende de injeções anuais de pelo menos R$ 50 milhões para cobrir a diferença entre receitas e despesas.
Números do próprio PPI projetam, no entanto, que essa diferença deixa de existir até 2028, mesmo no cenário mais pessimista. E essa trajetória pode ser acelerada para um balanço positivo na metade do tempo estimado, segundo os trabalhadores da empresa. Eles chegaram a levar ao governo federal um plano para manter ativa a estatal envolvendo cortes de custos e perspectivas comerciais já em curso.
O projeto da Ceitec ganhou forma em 2000, quando um protocolo de intenções foi firmado entre os governos municipal, estadual e federal, instituições de ensino superior e empresas privadas (incluindo a Motorola).
As atividades do Centro de Design, onde são desenhados os projetos de chips, começaram nos parques tecnológicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), em 2005. No mesmo ano, também começou a construção do prédio.
Em 2008, o governo Lula decidiu encampar o projeto e, por meio de decreto presidencial, foi criada a Ceitec como empresa pública federal. Em 27 de março de 2009, o prédio administrativo e o design center da empresa foram inaugurados. Em 5 de fevereiro de 2010, Luiz Inácio Lula da Silva inaugurou a chamada sala limpa da fábrica.
No governo Dilma Rousseff, a Ceitec esteve focada em um projeto de desenvolvimento de microchips para passaportes. Era algo inovador que serviria de referência para nações estrangeiras e poderia gerar mais de R$ 25 milhões em receita, conforme levantamento da própria empresa. A pesquisa foi abortada após o golpe de 2016 por determinação do usurpador Michel Temer, que deu início ao processo de desmonte da estatal.
Da Redação, com PT na Câmara, PT no Senado e CUT