Haddad: comissão da verdade é alerta para quem ‘namora soluções de força’
Ao apresentar projeto que cria colegiado sob crivo do Executivo para investigar ditadura, prefeito mostrou preocupação com quem se ‘descolou’ da democracia e acalenta o sonho de viver ‘dias duros’
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No ato que marcou a entrega do projeto de lei que propõe a criação da Comissão da Memória e Verdade do município, ontem (20) à noite, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), fez menção a setores que estariam “flertando” com o autoritarismo e que “acalentam o sonho de viver dias duros”, como se o arbítrio fosse solução para os problemas sociais.
Assim, a comissão teria a função de não só investigar crimes de Estado contra a humanidade e homenagear quem se sacrificou pela democracia, mas poderá servir “de alerta para uma parte da sociedade que, em função da distância de 50 anos do golpe militar e da distância dos eventos trágicos que marcaram a história do Brasil, começa a namorar com soluções de força que não vão levar o Brasil a uma sociedade melhor, mais fraterna e com liberdade”.
Sem citar nomes, Haddad chamou a atenção para quem se descolou “da cultura da democracia e da paz” e às vezes flerta com soluções “que contrariam o espírito democrático”. A proposta de comissão da verdade municipal teria dois objetivos básicos. “Não é só para passar a limpo os 50 anos, mas nos comprometer com os próximos 50, 150 anos.”
A comissão da prefeitura visa a investigar casos de servidores perseguidos e demitidos durante a ditadura (1964-1985), averiguar casos de ocultação de cadáveres pelo Serviço Funerário e apurar a cessão de espaços públicos para a prática de tortura. Segundo o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Rogério Sottili, a prefeitura paulistana teve “participação ativa” no período autoritário. “Mais de 20% dos mortos e desaparecidos concentram-se na cidade. Temos muito a apurar.” Para ele, além de uma “resposta” ao golpe de 1964, a comissão abre uma possibilidade “de olhar para dentro da nossa casa”.
Perus
Um caso considerado prioritário é o das ossadas encontradas em vala clandestina do cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em 1990, durante a gestão de Luiza Erundina na prefeitura. Há 1.049 restos mortais, atualmente no Cemitério do Araçá. Sottili afirmou que o município tem “compromisso absoluto de retomar a identificação”, em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Para Amélia Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, o caso pede urgência. “Uma das atividades prioritárias dessa comissão é retomar as investigações sobre as ossadas de Perus. A prefeitura não pode fechar os olhos”, afirmou. “O Brasil precisa criar uma área de antropologia forense.” Ela também cobrou investigação em relação ao Serviço Funerário, “que foi conivente com a ditadura”.
Segundo Amelinha, como é conhecida, São Paulo foi um dos centros de articulação do golpe, onde se originaram a Operação Bandeirante (Oban) e o DOI-Codi, mas também um local de resistência. “Não é por acaso que aqui foi aberta a vala de Perus.” Em mensagem, o presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa, deputado Adriano Diogo (PT), também fez referência às ossadas, também de vítimas de esquadrões da morte e até de epidemia de meningite.
Amelinha Teles apresentou outra reivindicação à futura comissão paulistana: “O primeiro ato é mudar o nome do Elevado Costa e Silva. É uma vergonha”. Inaugurado em 1971, o Minhocão, como é conhecido, leva oficialmente o nome de um dos presidentes da República do período autoritário. Faz parte dos projetos da secretaria encabeçada por Sottili a mudança dos nomes de ruas, avenidas e viadutos que rendam homenagem a figuras relacionadas à cultura autoritária. Ela destacou ainda o que chamou de “feito histórico” obtido na terça-feira (18), quando o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente pedido do Ministério Público e ratificou mudança na certidão de óbito do militante João Batista Drummond, morto em dezembro de 1976 – no documento, agora se informa que ele morreu no DOI-Codi e sob tortura.
Tortura
Presidente da Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, o vereador Gilberto Natalini (PV) informou que há gestões para mudar o nome de 25 logradouros na cidade. Representante do presidente do Legislativo paulistano, José Américo Dias (PT), Natalini recebeu o projeto de Haddad. “Esta será a 11ª comissão da verdade em São Paulo. Quanto mais, melhor.”
O coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, destacou justamente a permanência de vários colegiados para dar sequência ao trabalho da CNV, que tem mandato até o final do ano e entregará o seu relatório final em 10 de dezembro, Dia Internacional da Declaração dos Direitos Humanos. Ele lembrou que, nesta semana, a comissão fez um pedido formal ao Ministério da Defesa para que as próprias Forças Armadas organizem comissões de sindicância em unidades militares onde houve prática de tortura – relatório parcial, entregue à Defesa, lista sete desses locais.
“A finalidade é obter as informações que permitam constatar de maneira mais precisa aquilo que já é sabido, mas não devidamente explicitado”, disse Dallari. Ele salientou que a tortura não foi uma “coisa de psicopata”, mas uma prática planejada e estruturada pela ditadura. Não foi um arroubo, “mas uma construção metódica, burocrática, administrativa”. Não foi ação de um “desvairado que torturava, mas de uma estrutura”.
Dallari afirmou que não há nenhum “sentimento de animosidade” em relação às Forças Armadas, que conta com apreço da sociedade. “É fundamental que as Forças Armadas prestigiem a sociedade brasileira.”
O projeto apresentado ontem prevê que a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo tenha cinco integrantes, com mandato de dois anos, prorrogáveis por mais um. Será vinculada à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania.
(Rede Brasil Atual)