Haddad: Cristofobia
Em artigo, o ex-prefeito de São Paulo chama Bolsonaro de mentiroso, ao apontar, na ONU, que as queimadas no Brasil são resultado da ação de índios e quilombolas. “Vale notar que as queimadas na Amazônia não raramente aparecem no discurso de Bolsonaro como dupla afirmação nacionalista. Para dentro, perante as ‘nações’ indígenas; para fora, perante as nações soberanas”, destaca
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Fernando Haddad
A relação da igreja com o poder secular sempre foi controversa, desde a origem do cristianismo. A célebre frase de Jesus sobre o tema teria gerado insatisfação entre os oprimidos e lhe custado a vida, em tempos de justiça plebiscitária.
Talvez por incompreensão de uma doutrina sempre em disputa, o Estado laico tenha se tornado realidade há muito pouco tempo. A luta anticolonial na América do Norte deu vida ao primeiro Estado nacional separado da religião.
Esse acontecimento teve um alcance tremendo. Essa concepção de Estado reafirmou o primado cristão da sociedade como fraternidade de pessoas iguais entre si. A tolerância se estabeleceu como princípio das constituições modernas, restrita de início aos homens brancos.
Genocídio dos povos originários, colonialismo, escravidão dos negros, opressão contra mulheres etc. mantiveram-se como práticas corriqueiras dos liberais apoiados pela religião, em manifesta contradição com os ensinamentos de Jesus.
Ninguém há de ter medo de um homem que pregou o amor e a igualdade. Mas ninguém pode desconsiderar a violência que já foi e é praticada em seu nome.
No mesmo discurso em que citou a cristofobia, Bolsonaro acusou os indígenas e caboclos pelas queimadas florestais na Amazônia e no Pantanal. O que a dupla mentira revela? Sabemos que a intolerância religiosa no Brasil tem como alvo as religiões de matriz africana, majoritariamente. A Polícia Federal, da sua parte, já reuniu provas que considera suficientes para indiciar os fazendeiros responsáveis pelos incêndios.
O elemento subjacente às duas inverdades é justamente aquilo que afronta de maneira decisiva a essência do cristianismo, qual seja, o racialismo ou a negação da igualdade entre as pessoas. No primeiro caso, por deslocar a atenção dos verdadeiros alvos da intolerância religiosa; no segundo, por apontar o dedo para as vítimas do crime ambiental.
Vale notar que as queimadas na Amazônia não raramente aparecem no discurso de Bolsonaro como dupla afirmação nacionalista. Para dentro, perante as “nações” indígenas; para fora, perante as nações soberanas.
O que muitas vezes se deixa escapar é que o recorte racial das afirmações de Bolsonaro tem uma contrapartida no plano externo. Da mesma maneira que seu discurso nega a igualdade entre as pessoas, o nacionalismo de Bolsonaro é compatível com uma visão internacional naturalmente hierárquica. Ele busca ocupar, na sua relação com Trump, a mesma posição que, na sua opinião, o caboclo deveria almejar em relação ao fazendeiro.
Nada mais anticristão que uma “irmandade” de desiguais.
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 26 de setembro