Júlia Martin: Ontem eu fiz 16

“Quem sabe lá eu encontre mais heróis que me estendam a mão e talvez o sol, mesmo que quadrado, entre pela janela”, diz o artigo que faz uma reflexão sobre as condições da redução da maioridade penal

Não senhor, no meu barraco não bate sol. Pela manhã, a umidade da enchente e os ratos que passeiam me lembram que é melhor acordar e ir pra rua. Eu sou negro, pobre e meus pais não receberam a cartilha colorida com as letras. 

Não senhor, hoje não vou pra escola. Lá eu aprendi que meu lugar é “nenhum lugar” e que meu direito é o de ficar calado.

Um dia eu ouvi a vizinha falando que a amizade é um dos sentimentos mais bonitos. Eu tive um amigo. Ele empinava pipa no campinho comigo. Mas ontem, ele foi brincar em outro campo, deitado embaixo de uma cruz com uma bala na testa.

Um dia eu estava sem a pipa, sem a bola, sem comer. Um homem me ofereceu ajuda. Não senhor, não era um doutor, vereador, nem madame. Ele era um herói, respeitado por toda a comunidade, bem vestido e sempre acompanhado. O doutor e a madame querem me colocar na cadeia, senhor, mas eu não quero ir. Meu herói disse que se eu seguir as regras vou ter proteção e até um tênis pra jogar futebol.

Sabe, senhor, eu queria ser jogador profissional. Queria entender das letras todas e andar nos panos por aí, sem fazer mal pra ninguém. Mas disseram que isso não é pra mim, não senhor. Um dia desses colei na padaria e pedi um emprego, mas o dono me chamou de preto vagabundo e me tocou de lá como um cachorro. Na verdade, o cachorro podia entrar e até comer o resto do lanche que ficou na mesa, mas eu não. Mas como eu posso não ser um vagabundo, senhor, se ninguém me deixa trabalhar?

A madame e o doutor dizem que alguém tem que assumir a culpa. Eu só não entendo como essa culpa pode ser minha, se o terror está por toda a parte e eu nunca nem saí da favela. 

Não bate não senhor, vou colaborar. Mas ontem fiz 16 e queria aquele novo celular. Eu sei senhor, você também me quer na cadeia, até minha mãe já desejou que mudasse pra cela.

Quem sabe lá eu encontre mais heróis que me estendam a mão e talvez o sol, mesmo que quadrado, entre pela janela.

Júlia Martin é jornalista e foi secretária da juventude do PT em Taubaté

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