Lula abre reunião de chefes de Estado da AL e propõe reorganização da UNASUL

Presidente destacou que bloco continental, criado em 2008, consolidou os laços entre os países da região. “O que nos reúne hoje em Brasília é o sentimento de urgência de voltar a olhar coletivamente para a nossa região”, disse Lula

Ricardo Stuckert

Lula em reunião com presidentes de países da América do Sul, em Brasília

Com um discurso em defesa da retomada da integração da América do Sul, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu, nesta terça-feira (30), a reunião de chefes de Estado da região, realizada no Palácio Itamaraty, em Brasília. A pauta inclui questões comuns nas áreas de saúde, infraestrutura, energia, meio ambiente e combate ao crime organizado. Em sua fala, Lula propôs a reorganização da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), criada em 2008, durante seu segundo mandato como presidente, sublinhando que os interesses que unem os países “estão acima de divergências ideológicas”.

“O que nos reúne hoje em Brasília é o sentimento de urgência de voltar a olhar coletivamente para a nossa região. É a determinação de redefinir uma visão comum e relançar ações concretas para o desenvolvimento sustentável, a paz e o bem-estar de nossas populações”, disse Lula, após agradecer aos colegas por terem aceitado o convite do governo brasileiro para a reunião.

Participam do encontro os presidentes Alberto Fernández (Argentina), Luís Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Guillermo Lasso (Equador), Irfaan Ali (Guiana), Mário Abdo Benítez (Paraguai), Chan Santokhi (Suriname), Luís Lacalle Pou (Uruguai) e Nicolás Maduro (Venezuela). A atual presidenta do Peru, Dina Boluarte, impossibilitada de comparecer, será representada pelo presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola.

No discurso, o presidente brasileiro destacou que a integração regional está relacionada à redemocratização do Brasil e é prevista na Constituição de 1988, que define que o país deve buscar “a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

Lula afirmou que “a integração sul-americana é essencial para o fortalecimento da unidade da América Latina e do Caribe” e que “uma América do Sul forte, confiante e politicamente organizada amplia as possibilidades de afirmar, no plano internacional, uma verdadeira identidade latino-americana e caribenha“.

O mandatário fez um retrospecto de uma série de iniciativas adotadas a partir do final do século XX que favoreceram a articulação de ações em âmbito sub-regional, como, por exemplo, a Comunidade Andina de Nações, o Tratado de Cooperação Amazônica, o MERCOSUL, a UNASUL e a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA). Ele lembrou do papel dos ex-presidentes José Sarney, do Brasil, e Raúl Alfonsín, da Argentina, que “entenderam a importância da integração para a consolidação das nossas democracias”.

Ao defender o legado da UNASUL, o presidente brasileiro afirmou que, por mais de dez anos, o bloco “permitiu que nos conhecêssemos melhor”. “Consolidamos nossos laços por meio de amplo diálogo político que acomodava diferenças e permitia identificar denominadores comuns. Implementamos iniciativas de cooperação em áreas como saúde, infraestrutura e defesa”, frisou. “Essa integração também contribuiu para ganhos comerciais importantes. Formamos uma robusta área de livre-comércio, cujas cifras alcançaram valor recorde de 124 bilhões de dólares em 2011”.

Lula acrescentou que “o perfil do nosso intercâmbio é mais diversificado se comparado ao nosso comércio extrarregional”, por incluir produtos e serviços de maior valor agregado e intensivos em tecnologia. Além disso, segundo ele, os países do continente souberam conjugar crescimento econômico com distribuição de renda. “Reduzimos nossas históricas desigualdades e logramos avanços palpáveis no combate à pobreza. Segundo a FAO, a América do Sul reduziu, em duas décadas, de 15% para 5% de sua população vitimada pela fome”, detalhou.

“A UNASUL foi efetiva como foro de solução de controvérsias entre países da região, notadamente na crise entre Colômbia e Equador e no conflito separatista boliviano. Obtivemos resultados expressivos na redução do desmatamento e dos ilícitos transnacionais. Estimulamos o diálogo e a cooperação para fazer chegar a milhões de sul-americanos, de forma efetiva, os benefícios da cidadania”, continuou o chefe do governo brasileiro, lembrando que “as reuniões de cúpula com os países árabes e com os países africanos ajudaram a definir um perfil de relacionamento externo da América do Sul”.

Lula ressaltou que esses feitos foram “formidáveis para uma região herdeira do colonialismo e marcada por graves formas de violência, discriminação de gênero e racismo”, e observou que “não resolvemos todos os nossos problemas, mas nos dispusemos a enfrentá-los, em vez de ignorá-los”.

Retrocessos com Bolsonaro

Ao destacar que a América do Sul deixou de ser apenas uma referência geográfica e se tornou uma realidade política, o presidente lamentou que, “Infelizmente, esses avanços foram interrompidos nos últimos anos”. Ele se referiu aos retrocessos da política externa brasileira e o isolamento diplomático do país durante o governo Bolsonaro.

“No Brasil, um governo negacionista atentou contra os direitos da sua própria população, rompeu com os princípios que regem a nossa política externa e fechou nossas portas a parceiros históricos. Nosso país optou pelo isolamento do mundo e do seu entorno. Essa postura foi decisiva para o descolamento do país dos grandes temas que marcaram o cotidiano dos nossos vizinhos”, disse Lula. “Na região, deixamos que as ideologias nos dividissem e interrompessem o esforço da integração. Abandonamos canais de diálogo e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos”.

Lula defendeu que os países da região precisam reavivar o compromisso com a integração. Disse que, a partir do momento em que assumiu a presidência, em janeiro deste ano ,“a América do Sul voltou ao centro da atuação diplomática brasileira”.

“Os elementos que nos unem estão acima de divergências de ordem ideológica. Da Patagônia e do Atacama à Amazônia, do Cerrado e dos Andes ao Caribe, somos um vasto continente banhado por dois oceanos. Somos uma entidade humana, histórica, cultural, econômica e comercial, com necessidades e esperanças comuns”, disse o chefe do governo brasileiro.

Ele destacou que as recentes eleições na Colômbia, Chile, Bolívia, Brasil e Paraguai demonstraram o vigor da democracia na região, com expressiva participação popular e ampla liberdade de expressão. “A integração da América do Sul depende desse sentimento de pertencer a uma mesma comunidade”, disse. “Temos uma história de resistência, forjada nas lutas de independência e no combate às ditaduras. Compartilhamos uma cultura vibrante e expressões artísticas que vão da música à literatura”.

Segundo Lula, “a candidatura conjunta de Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina para sediar a Copa do Mundo de 2030 talvez seja a expressão mais acabada dessa identidade sul-americana em construção, e de nossa capacidade de cooperar para além do campo de futebol e de nossas próprias fronteiras”.

Governança global

O presidente aproveitou o encontro para reiterar as críticas que tem feito à atuação dos foros de governança global, que, segundo ele, “enfrentam severas dificuldades em oferecer respostas justas e eficazes aos problemas da atualidade”.

“Se hoje damos os primeiros passos para retomar o diálogo enquanto região, o contexto que enfrentamos é ainda mais desafiador do que foi no passado”, disse, citando entre os exemplos a pandemia da Covid-19, cujas “mortes, o sofrimento humano e o custo econômico deixaram marcas profundas” e escancararam “antigas desigualdades” e “novas injustiças”. O presidente também citou evidências científicas segundo as quais “o ritmo atual de emissões nos levará a uma crise climática sem precedentes e o planeta todo já sente seus impactos”. Segundo ele, “a falta de ação coletiva afeta nossa capacidade de conter o aumento da temperatura global”.

“Sabemos que o que ocorre na Amazônia tem efeito sobre a Bacia do Prata. Com o esvaziamento da Organização Mundial do Comércio, o multilateralismo retrocede e crescem as posturas protecionistas nos países ricos, limitando nossas opções”, afirmou o presidente brasileiro. “Todos sofremos as consequências da guerra. O conflito na Ucrânia desestabilizou o mercado de energia e de fertilizantes e provocou a volatilidade dos preços dos alimentos, deteriorando nossas condições de vida”.

“Quando as cadeias de suprimento globais foram afetadas por esse conjunto de fatores, nossas carências em infraestrutura e nossas vulnerabilidades externas foram expostas”, declarou Lula. “A região parou de crescer, o desemprego aumentou e a inflação subiu. Alguns dos principais avanços sociais logrados na década passada foram perdidos em pouco tempo”.

Extremismo

O governante também citou recentes ataques a instituições democráticas, no Brasil e em outros países, “inclusive às sedes dos poderes constitucionais”, que, segundo ele, “nos ofereceram uma trágica síntese da violência de grupos extremistas, que se valem de plataformas digitais para promover campanhas de desinformação e discursos de ódio”. Nesse contexto, pontuou Lula, “nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade. É apenas atuando unidos que conseguiremos superá-las”.

PIB continental

O presidente destacou que a América do Sul possui trunfos sólidos para fazer face a esse mundo em transição, detalhando que “o PIB somado de nossos países neste ano deverá chegar a 4 trilhões de dólares”.

“Juntos somos a quinta economia global. Com uma população de quase 450 milhões de habitantes, constituímos importante mercado de consumo. Possuímos o maior e mais variado potencial energético do mundo, se levarmos em conta as reservas de petróleo e gás, hidroeletricidade, biocombustíveis, energia nuclear, eólica e solar e o hidrogênio verde. Somos grandes e diversificados provedores de alimentos”, frisou.

O presidente também lembrou que “contamos com mais de um 1/3 das reservas de água doce do mundo e uma biodiversidade riquíssima, pouco conhecida” e que “em nosso solo se encontra rico e variado conjunto de minérios, incluídos aqueles que, como o nióbio, lítio e cobalto, são essenciais para projetos industriais de última geração”. Além disso, ressaltou que “somos uma região de paz, sem armas de destruição em massa, e na qual os litígios são resolvidos pela via diplomática”.

O presidente brasileiro afirmou que, nos próximos anos, o continente vai sediar eventos dos principais foros de governança global, como a reunião do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, no Peru, a Cúpula do G20, a reunião dos BRICS e a COP 30, do clima, no Brasil. “Precisamos chegar a esses espaços unidos, como interlocutores confiáveis e buscados por todos”, disse.

Lula declarou que a América do Sul tem diante de si, mais uma vez, a oportunidade de trilhar o caminho da união e que não é preciso começar do zero. “A UNASUL é um patrimônio coletivo. Lembremos que ela está em vigor. Sete países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de construção”, disse.

“Mas ao fazê-lo, é essencial avaliar criticamente o que não funcionou e levar em conta essas lições. Precisamos de mecanismos de coordenação flexíveis, que confiram agilidade e eficácia na execução de iniciativas. Nossas decisões só terão legitimidade se tomadas e implementadas democraticamente”, disse.

Ao final do discurso, Lula apresentou uma série de propostas para serem discutidas ao longo da reunião:

– colocar a poupança regional a serviço do desenvolvimento econômico e social, mobilizando os bancos de desenvolvimento como a CAF, o Fonplata, o Banco do Sul e o BNDES;

– aprofundar nossa identidade sul-americana também na área monetária, mediante mecanismo de compensação mais eficientes e a criação de uma unidade de referência comum para o comércio, reduzindo a dependência de moedas extrarregionais;

– implementar iniciativas de convergência regulatória, facilitando trâmites e desburocratizando procedimentos de exportação e importação de bens;

– ampliar os mecanismos de cooperação de última geração, que envolva serviços, investimentos, comércio eletrônico e política de concorrência;

– atualizar a carteira de projetos do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), reforçando a multimodalidade e priorizando os de alto impacto para a integração física e digital, especialmente nas regiões de fronteira;

– desenvolver ações coordenadas para o enfrentamento da mudança do clima;

– reativar o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, que nos permitirá adotar medidas para ampliar a cobertura vacinal;

– fortalecer nosso complexo industrial da saúde e expandir o atendimento a populações carentes e povos indígenas;

– lançar a discussão sobre a constituição de um mercado sul-americano de energia, que assegure o suprimento, a eficiência do uso de nossos recursos, a estabilidade jurídica, preços justos e a sustentabilidade social e ambiental;

– criar programa de mobilidade regional para estudantes, pesquisadores e professores no ensino superior, algo que foi tão importante na consolidação da União Europeia; e

– retomar a cooperação na área de defesa com vistas a dotar a região de maior capacidade de formação e treinamento, intercâmbio de experiências e conhecimentos em matéria de indústria militar, de doutrina e políticas de defesa.

Grupo continuará o trabalho

Lula também propôs a criação de um Grupo de Alto Nível, a ser integrado por representantes pessoais de cada presidente, para dar seguimento ao trabalho de reflexão sobre os destinos do continente. “Com base no que decidamos hoje, esse Grupo terá 120 dias para apresentar um mapa do caminho para a integração da América do Sul”, disse.

O presidente acrescentou estar “pessoalmente convencido da necessidade de um foro que nos permita discutir com fluidez e regularidade e orientar a atuação de nossos países para o fortalecimento da integração em várias de suas dimensões”. Segundo ele, “enquanto estivermos desunidos, não faremos da América do Sul um continente desenvolvido em todo o seu potencial. A integração deve ser objetivo permanente de todos nós. Precisamos deixar raízes fortes para as próximas gerações. Permitir que as divergências se imponham teria um custo elevado, além de desperdiçar o muito que já construímos conjuntamente”.

Durante a reunião, os demais presidentes também discursaram e apresentaram suas propostas para o fortalecimento do continente.

Da Redação

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