Maria do Rosário: AI-5, que nunca se esqueça, que nunca mais aconteça’

Em artigo publicado originalmente na Carta Capital, deputada relembra o contexto da instituição do AI-5 e as arbitrariedades permitidas pelo ato

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Em 13 de Dezembro de 1968 a ditadura civil militar iniciada em 1964 assumiu explicita condição de regime de terror. Essa é a data em que entrou em vigor o Ato Institucional número 5 (AI-5), que completa 50 anos nesta quinta-feira.

Mesmo os piores regimes têm a necessidade de formalizar normas nas quais escudem suas práticas, inventando fórmulas legais. Esquecem que uma norma do estado não é feita de autores, palavras e diário oficial, mas de “legitimidade”.

O AI-5 autorizou o Estado a cometer as piores violências contra seus cidadãos. É considerado o mais duro golpe na democracia e um instrumento para violação explícita dos direitos humanos dos imponentes do regime. É um símbolo do estado de exceção que a ditadura implementou e, por isso mesmo, marcado pela ilegitimidade. Redigido pelo então ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, o AI-5 entrou em vigor durante o governo do ditador-presidente Artur da Costa e Silva.

O discurso contundente de um parlamentar na Câmara dos Deputados denunciando as violações de garantias fundamentais no Brasil e o crescimento do movimento estudantil definiram o momento em que a ditadura foi recrudescida. O deputado Márcio Moreira Alves, do MDB da Guanabara, denunciou da tribuna os abusos praticados pelos órgãos de repressão. Pedia que os pais não permitissem que seus filhos desfilassem no Sete de Setembro ao lado de militares “carrascos” e que as moças não dançassem com cadetes no baile da Independência.

O contexto desse pronunciamento histórico merece ser lembrado.

Em 28 de março daquele ano, por volta das 18h, a PM dispersou uma manifestação que pretendia alcançar o prédio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Os estudantes se abrigaram dentro do restaurante. Às 18h30, o tenente Aloísio Raposo comandou a invasão. Deu ordens para “quebrar tudo” e atirou à queima-roupa no peito de Edson Luís. Os jovens reagiram com paus e pedras, fazendo a polícia recuar.

Para impedir que a PM desaparecesse com o corpo no Instituto Médico Legal, os estudantes o carregaram nos braços até a Assembleia, onde dois médicos realizaram a autópsia. Coberto com a bandeira do Brasil e com cartazes de protesto, o corpo de Edson Luís foi velado no saguão do prédio. No fim da tarde de 29 de março, cerca de 50 mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre até o cemitério em Botafogo, onde Edson Luís foi enterrado ao som do Hino Nacional e aos brados de “Mataram um estudante. Podia ser seu filho”. Naquele dia, houve manifestações de protesto contra a ditadura e greve geral de estudantes em todo o país.

Em 20 de junho, centenas de estudantes se reuniram no Teatro de Arena da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e obrigaram o reitor e o Conselho Universitário a debater com eles a situação do ensino superior. Ao saírem de lá, os jovens são violentamente reprimidos com golpes de cassetete e tiros. Mais de 300 foram presos e levados ao campo do Botafogo, onde sofreram espancamentos e humilhações.

Na manhã do dia 21, sexta-feira, nova passeata em protesto contra a repressão paralisa o centro do Rio. Os estudantes reagem às investidas da polícia, enfrentando a cavalaria com rolhas e bolas de gude, que fazem os cavalos tombar. A população apoiou os jovens e também atacou a polícia com pedras. Do alto dos prédios, objetos foram atirados sobre os soldados. A polícia reagiu com tiros. Bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas de helicópteros. Durante o fim da manhã e toda a tarde, o conflito se espalhou por uma extensa área do centro. Nesse dia 28 pessoas morreram e a data ficou conhecida como sexta-feira sangrenta.

Em 26 de junho estudantes, artistas, religiosos e intelectuais se concentram nas ruas do centro do Rio de Janeiro. Às 14h, iniciam uma passeata com cerca de 50 mil pessoas. Uma hora depois esse número já havia dobrado e os manifestantes ocuparam toda a Avenida Rio Branco. O ato, que ficaria conhecido como a Passeata dos Cem Mil, foi a maior manifestação de protesto desde o golpe de 1964.

Em 2 de agosto o presidente da União Metropolitana dos Estudantes (UME) e líder da passeata dos 100 mil, Vladimir Palmeira, é preso em Copacabana, no Rio, e levado para a 13ª Delegacia de Polícia. Foi transferido em seguida para o Dops, onde permaneceu incomunicável. Mais de mil estudantes saíram às ruas do bairro para protestar contra a prisão de Palmeira. A PM espancou e dispersou os manifestantes. Pelo menos 15 estudantes foram presos e levados para a Polícia Central.

Em 29 de agosto a UnB sofre a sua terceira invasão. Cerca de 3 mil estudantes reúnem-se na Universidade de Brasília (UnB) para protestar contra a ordem de prisão de sete colegas, entre eles Honestino Guimarães, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Policiais militares, agentes do Dops e soldados do Exército detiveram mais de 500 manifestantes numa quadra de basquete. Um estudante foi baleado na cabeça e 60 pessoas presas.

O AI-5 deu poderes para a ditadura dar recesso ao Poder Legislativo e assumir suas funções; para intervir nos estados sem precisar respeitar as limitações constitucionais; deu poder para o Presidente da República suspender direitos políticos de qualquer cidadão e cassar mandatos de deputados federais, estaduais e vereadores; proibia manifestações populares; suspendeu o “habeas corpus” e estabeleceu censura prévia para jornais, revistas, peças de teatro e música. Portanto, o AI-5, mais do que uma resposta a um discurso incisivo de um deputado foi um instrumento de sobrevivência de uma ditadura através da supressão de direitos do povo brasileiro.

O AI-5 foi, efetivamente, uma “licença para matar” dada aos porões da ditadura. Em sua vigência a tortura, os estupros, os assassinatos, as perseguições, os sumiços, o desaparecimento dos corpos, atingiram o nível da barbárie que caracterizou o regime militar- autoritário brasileiro. Os direitos fundamentais foram suprimidos e substituídos pelo medo e pelo terror de Estado.

É no sentido de garantir que estes terríveis crimes contra a humanidade jamais voltem a acontecer que apresentei nesta quarta-feira (13) votos favoráveis a dois Projetos de Lei que tratam do tema da memória, verdade e justiça, e dos quais sou relatora. O Projeto de Lei 6240/13, do então Senador Vital do Rêgo, garante a imprescritibilidade ao crime de desaparecimento forçado de qualquer pessoa que for praticado por agente do estado, de suas instituições ou de grupo armado ou paramilitar. Ou seja, a qualquer tempo em que o crime seja descoberto, jamais contará com a impunidade da prescrição, fato comum a vários casos presenciados ao longo de nossa história.

Também apresentei parecer favorável ao Projeto de Lei 573/11, de autoria da minha querida amiga e companheira de lutas, Luiza Erundina, que prevê a revisão da Lei de Anistia. Trata-se de matéria fundamental, principalmente em um período marcado pela exaltação aos torturadores e a ditadura militar que castigou com autoritarismo, violência, censura e concentração de renda este país. Acredito que medidas como estas são indispensáveis para que o Brasil se reencontre consigo mesmo, e que possa se libertar, de uma vez por todas, dos fantasmas que assombram nossa liberdade e a nossa democracia.

Lembremos hoje o AI-5 para que ele não se repita amanhã e nunca mais.

Por Maria do Rosário, deputada federal (PT-RS), na Carta Capital

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