Ministério da Saúde acumula fracassos e vira problema

Falta de comando do governo federal causa corrida de governos estaduais pela compra de respiradores. Modelo matemático comprova cientificamente que quanto mais demora na adoção de medidas, maior é o número de mortes por Covid-19

Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

O ministro da Saúde, Nelson Teich, é alvo de críticas de secretários estaduais de saúde, que o acusam de inépcia e falta de experiência em gestão pública

Ociosidade, indolência, preguiça, desleixo. Falta de diligência em relação à execução dos serviços que lhe estão afetos. Caracterizada por negligência, imperícia ou imprudência. Assim é a desídia trabalhista, que constitui justa causa para rescisão do contrato de trabalho, segundo os dicionários de Direito. Assim também pode ser descrita a atuação criminosamente irresponsável do governo Bolsonaro desde o início da pandemia do coronavírus, e que se reflete nos fracassos em série do Ministério da Saúde.

O mais recente é o primeiro balanço da entrega de respiradores nacionais comprados pelo ministério, que aponta que o país só recebeu 22% dos equipamentos previstos para serem entregues em abril. Hoje o Brasil tem 65 mil respiradores, número considerado insuficiente para o momento de pico de contágio da Covid-19. Nesse quadro, 33% das cidades brasileiras ainda têm no máximo 10 respiradores mecânicos

A entrega de respiradores, a intenção de ampliar a oferta de testes e o aluguel de leitos de UTI eram as ações tratadas como prioritárias pelo ministério na gestão de Luiz Henrique Mandetta. A intenção era fortalecer o sistema público de saúde, mas o governo fracassou nos três pilares do plano.

Após falharem duas tentativas de compra de 15 mil respiradores com uma fabricante chinesa, o Ministério da Saúde montou um cronograma com empresas brasileiras, escalonando a entrega entre maio e julho. A compra foi fechada na gestão de Mandetta. À época, ele afirmou que o valor dos contratos passaria de R$ 1 bilhão. Das 2.240 unidades que deveriam ter sido entregues no mês passado, chegaram apenas 487.

A meta para os testes era fazer 46 milhões de amostras até dezembro, mas pouco mais de 10% dos exames já foram enviados aos estados. No caso do aluguel de leitos, o governo federal só entregou 17,5% dos 2 mil leitos de UTI prometidos, após dois editais suspensos por falta de interessados. Os processos foram cancelados.

Secretário de Saúde da Bahia, Fábio Villas Boas critica falta de estratégia para compra de equipamentos: “Ou o ministério entra no mercado internacional, como temos feito, Bahia e demais estados, e tenta disputar esses respiradores que estão nas mãos de distribuidores que compraram lá atrás, ou não os teremos”

Críticas dos estados

Os dados foram apresentados em audiência com deputados na Comissão Externa de Ações contra o Coronavírus, na quinta (7), pelo ministro da Saúde, Nelson Teich, que não deu detalhes sobre os atrasos. Ele afirmou que continua contando com a fabricação nacional para receber 14,1 mil respiradores, em um investimento de R$ 658 milhões.

A iniciativa recebeu duras críticas do secretário de Saúde da Bahia, Fábio Vilas-Boas. “Essa hipótese, esqueça, não existe. A velocidade que a empresa que vai produzir um respirador extremamente limitado consegue entregar, vai entregar para a pandemia do próximo milênio. Ou o ministério entra no mercado internacional, como temos feito, Bahia e demais estados, e tenta disputar esses respiradores que estão nas mãos de distribuidores que compraram lá atrás, ou não os teremos”, afirmou.

Ele critica a disputa internacional pelos equipamentos médicos chineses e disse que a situação é uma “verdadeira selva”. “Não há mais respeito a contratos. As pessoas vão para dentro do chão da fábrica para disputar os respiradores, assim como na selva se disputa um animal morto”, alerta.

Nesta sexta-feira, descobriu-se que os primeiros 500 respiradores dos 3 mil que o governo de São Paulo comprou da China foram bloqueados no aeroporto de Pequim. O governo chinês explicou que decidiu limitar a 150 o número de itens de cada mercadoria a ser embarcada nos aviões para exportação. A ideia é que outros produtos hospitalares, e não apenas respiradores, possam ser entregues em outros países com velocidade.

Correria por equipamentos

A inércia e a falta de diretrizes claras do governo federal para orientar uma resposta coordenada à pandemia de coronavírus fez com que governadores de Estado e prefeitos se lançassem em uma corrida por equipamentos médicos e hospitalares. Por enquanto, o mais bem-sucedido é o governo maranhense.

Nesta quinta, 7, uma carga com 44 respiradores chegou à capital São Luis, para se juntar a mais 24 que já tinham sido desbloqueados por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), após o estado recorrer na Justiça contra o confisco dos aparelhos pelo ministério.

O governo do Ceará, em parceria com a Prefeitura de Fortaleza, também ganhou na Justiça Federal o direito de receber 94 respiradores em posse da União. A fornecedora do equipamento, com sede em Cotia (SP), deixou de entregar os respiradores por intervenção do Ministério da Saúde. “Essa decisão foi uma grande vitória para o Ceará, e vai nos possibilitar abrir mais 94 leitos em Fortaleza”, celebrou o governador Camilo Santana.

O governador do Piauí, Wellington Dias, diz que busca no mercado da Turquia e de Luxemburgo os respiradores mecânicos. O juiz da 2ª Vara da Justiça Federal no Piauí, Márcio Magalhães Braga, intimou e deu prazo de 48 horas para que as empresas Intemed e Magnamed entreguem 80 respiradores adquiridos pelo governo estadual, mas que também foram confiscados pela União.

O estado recebeu dez leitos de UTIs, mas desequipados. “Recebemos o prometido, só que eles vieram sem os ventiladores. Depois de cinco dias, recebemos equipamentos que não eram estacionários – mais adequados – e reclamamos. Depois o ministério anunciou que vai mandar mais 20 ventiladores para o Piauí, mas não recebemos ainda”, afirma o secretário de Saúde, Florentino Neto.

Falta programa de logística

“Tivemos uma reunião dos secretários de Saúde com o ministro e a reclamação nossa é muito parecida com a dos demais estados. Existe um problema de logística entre a compra e a necessidade dos estados e municípios. Essa reclamação foi unânime”, acrescentou Neto.

Em Recife, só 46,8% dos 1.054 novos leitos anunciados pelo prefeito Geraldo Júlio funcionam, e a prefeitura da capital pernambucana espera atingir 100% da operação apenas no início de junho. A prefeitura diz ter adquirido “mais de 300 respiradores”, mas enfrenta dificuldade para recebê-los e só dispõe de 122 ventiladores mecânicos. Eles estão distribuídos entre UTIs e salas vermelhas, onde pacientes são estabilizadas antes de irem para terapia intensiva.

Os estados do Nordeste anunciaram o cancelamento de uma segunda tentativa de compra de respiradores. O governo da Bahia, que representou a região no acordo, agora tenta reaver R$ 49 milhões pagos antecipadamente a uma empresa sediada nos Estados Unidos. O valor se referia a 80% do preço de um lote de 600 ventiladores pulmonares.

A primeira operação foi frustrada no fim de março, quando um carregamento de 600 respiradores destinados à região ficou retido no aeroporto de Miami (EUA), onde fazia conexão para ser enviado ao Brasil. Suspeitou-se na ocasião de que se tratava de um bloqueio do governo Trump, mas a embaixada dos Estados Unidos no Brasil negou.

O secretário de Saúde da Bahia afirmou que está mantida outra frente de negociação. “Fizemos uma aquisição grande na Inglaterra, que deve estar aqui na próxima semana. Já recebi informação hoje de que está tudo caminhando dentro do previsto. Compra grande para a Bahia, para o Consórcio Nordeste, que deverá ajudar pelo menos 50% da nossa demanda”, disse Fábio Vilas-Boas.

O Brasil tem 65 mil respiradores, número insuficiente para o enfrentar o Covid-19. Nesse quadro, 33% das cidades brasileiras têm no máximo 10 respiradores mecânicos.

Modelo matemático

Para além dos ditames do bom senso e da ética humanitária, as consequências trágicas da inércia de um governo em meio a uma crise como essa já podem ser medidas até pelo método científico. Por meio de uma fórmula matemática, um grupo de pesquisadores propôs um modelo geral para medir o impacto tanto da omissão quanto das intervenções não farmacológicas existentes para evitar mortes por Covid-19.

A metodologia permitiu quantificar uma conclusão já estável de estudos sobre o vírus: a de que agir rapidamente é fator crucial para impedir mortes. As projeções do estudo fazem parte de um modelo que considerou variáveis dinâmicas com a exceção de um eventual tratamento com fármacos — várias drogas estão em testes no momento, mas nenhuma com eficiência já comprovada.

Segundo a pesquisa, uma intervenção drástica (com isolamento social total) adotada até 25 dias desde a primeira morte atestada é capaz de barrar até 80% de novas mortes. No cenário em que essa decisão demora mais dez dias para ser tomada, a eficiência cai para 50%. Na mesma situação, a intervenção menos rigorosa, em que, por exemplo, o isolamento é restrito a casos suspeitos e a aposta é na imunização natural da população, a taxa de eficiência cai de 25% para apenas 10%.

A eficácia tanto da intervenção drástica quanto a da branda é de 100% quando essas medidas são tomadas com antecedência, quando ainda não há mortes. A queda de eficácia ocorre ao longo dos dias em que nada é feito, mesmo com registro de mortes.

No terceiro panorama investigado, em que nenhuma intervenção é feita, fica ilustrada a agressividade do novo coronavírus. A Itália, por exemplo, registrou o primeiro morto em 21 de fevereiro e mais de 400 mortes nos 15 dias seguintes, em que não houve intervenção. Em 9 de março o país optou pelo lockdown (isolamento total). Ainda assim, foram mais de 4 mil mortos no primeiro mês. O país chegou a registrar quase 1 mil mortos por dia no fim de março, número que só caiu após mais de um mês de lockdown (para cerca de 400 por dia).

‘Caminho longo e silencioso’

Segundo o professor do Departamento de Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Giovani Vasconcelos, líder do grupo de pesquisa que elaborou o estudo, a demora beneficia a atuação por “inércia” do vírus. Pelo fato de a infecção muitas vezes ser assintomática, o vírus consegue percorrer um caminho longo em silêncio.

“De modo geral, o que os governos têm que fazer é agir rapidamente para reduzir o número de mortos, porque a janela de oportunidade para isso é muito estreita”, afirma o cientista. “Se esperar muito tempo, tudo que vai conseguir fazer é reduzir um pouco o número de mortos.” Vasconcelos explica que a janela de oportunidades para frear o gráfico de óbitos é mais larga no caso dos países que adotam medidas drásticas cedo, mas bem mais estreita para os que demoram a tomar medidas.

As conclusões da pesquisa foram apresentadas em um artigo enviado para publicação na revista científica PeerJ, assinado por pesquisadores da UFPR, das universidades federais de Pernambuco (UFPE) e de Sergipe (UFS) e da Universidade de Stuttgart (Alemanha). Também foram abordadas na nota técnica “Combate ao coronavírus: a janela para intervenções não farmacológicas é estreita”, publicada nos servidores de pré-impressão Scielo e medRxiv.

A pesquisa ganhou notoriedade após a publicação de reportagem da BBC Brasil. A reportagem, intitulada “Coronavírus: inércia política aumenta número de mortes, indica estudo”, é assinada de Toyohashi, no Japão, pela jornalista Juliana Sayuri, que afirma: “Agir rapidamente é um fator crucial para impedir mortes na pandemia de covid-19”.

A pedido da BBC, os autores aplicaram o modelo matemático para analisar casos na Ásia, na Europa e nas Américas — entre eles, China (primeiro epicentro de Covid-19), Coreia do Sul, Japão, Alemanha, Itália, Reino Unido, Suécia, Suíça, Estados Unidos (atual epicentro) e Brasil (apontado como o próximo epicentro).

O modelo de pesquisa está sendo aplicado ao Nordeste e ao caso de Sergipe, especificamente, segundo o professor Francisco Almeida, do Departamento de Física da UFS. Os pesquisadores estão preocupados com as medidas de relaxamento do isolamento social. “Acredito que o relaxamento no Nordeste pode gerar um forte impacto. Relaxar, mesmo que por curto espaço de tempo, pode provocar um estrago lá na frente”, afirma Francisco Almeida.

Ele reforça a tese de que o tempo é um fator fundamental observado na pesquisa e não pode ser desconsiderado pelos governantes. “A janela temporal é muito estreita. Se demora a intervir a eficiência será bem menor”, adverte o cientista.

Da Redação

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