Nilma Lino Gomes: Sem igualdade racial não há democracia
Em entrevista ao projeto Elas por Elas, a ex-ministra fala sobre o Dia da Mulher Negra, desafios e avanços na luta por igualdade racial e de gênero
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O dia 25 de julho marca o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, que teve origem durante o 1º Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas realizado em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992.
Ao longo dos anos, a data vem se consolidando no calendário do movimento negro e tem resgatado a luta e a resistência das mulheres negras, bem como cumprido o papel de denunciar as consequências da dupla opressão do racismo e do machismo.
No Brasil, a presidenta eleita, Dilma Rousseff, instituiu em 2014 o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, também celebrado em 25 de julho.
Tereza de Benguela liderou por mais de 20 anos, no século 18, o Quilombo do Quariterê e desafiou a Coroa e o sistema escravocrata português comandando a maior comunidade de libertação de negros e indígenas da capitania de Mato Grosso
No Vale do Guaporé, Rainha Tereza, como é registrada em documentos históricos, coordenava a estrutura administrativa, econômica e política da comunidade, garantindo a segurança e a sobrevivência de mais de 100 pessoas, entre negros e indígenas. Destacou-se também por instituir uma espécie de parlamento no espaço para as tomadas de decisões.
Com a ofensiva final da Coroa para acabar com o Quilombo, há relatos que dizem que Tereza foi assassinada pelo Exército e outros apontam que ela preferiu se suicidar do que se submeter ao domínio dos brancos.
Para refletir sobre a data, o projeto Elas por Elas, da Secretaria Nacional de Mulheres do PT, entrevistou Nilma Lino Gomes, que foi ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, no governo Dilma Rousseff.
Em abril de 2013, Nilma tornou-se a primeira mulher negra do Brasil a comandar uma universidade federal, ao ser nomeada reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab). Atualmente, ela professora doutora na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Leia a entrevista completa:
Neste dia 25 de julho é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, sendo que aqui no Brasil a data também marca o Dia Nacional Tereza de Benguela, instituído pela presidenta eleita, Dilma, em 2014. Qual é a importância dessas datas para a luta das mulheres negras?
Nilma Lino Gomes: Essa é uma data muito importante porque elas nos faz refletir, denunciar e discutir a situação da mulher negra, não só no Brasil, mas também na América Latina e no Caribe. É uma data que mostra à sociedade um histórico de lutas por direitos que as mulheres negras têm desenvolvido nessas regiões, e em especial no Brasil, há muitos anos.
Ao longo desse tempo, tivemos algumas conquistas de direitos, da visibilidade da questão racial envolvendo as mulheres, mas ainda com muitos desafios na luta, não só contra o racismo, a desigualdade racial e de gênero, mas principalmente naquilo que diz respeito à especificidade do lugar que a mulher negra ainda ocupa, nas relações de poder, nas relações de trabalho, em vários setores da nossa sociedade.
O dia da Tereza de Benguela tem para nós, no Brasil, e para nós mulheres negras brasileiras, uma importância especial, porque construir Tereza de Benguela, a história de Tereza de Benguela, como algo que deve se rememorado nacionalmente, não só por nós mulheres negras, mas por todo o país, é uma forma de transformar a nossa luta em algo que é político, simbólico e cultural.
Tereza de Benguela é um símbolo da luta quilombola, é um símbolo da luta das mulheres quilombolas. E nós, mulheres negras, que lutamos por um Brasil melhor, sem racismo, nos inspiramos nessa luta.
A história muitas vezes omite a participação das mulheres negras. Ainda falta muito para o Brasil conhecer a história de Tereza de Benguela, ela tem que ser contatada e rememorada.
Essa data é um reconhecimento não só a luta de Tereza de Benguela, mas também de tantas outras mulheres que lutaram e resistiram contra a escravidão no Brasil. É o reconhecimento de nós, mulheres negras que estamos hoje no Brasil, e que temos reeducado a sociedade brasileira na superação do racismo e principalmente dessa perversa articulação que há entre racismo e machismo.
Quais as conquistas e avanços para as mulheres negras nos governos petistas e qual tem sido o impacto do golpe nesse sentido?
Durante o governo do PT, as mulheres negras continuaram atuando e lutando muito nas suas próprias formas de organização, nos movimentos, nos partidos, nas ONGs, universidades, nas mais diversas áreas da sociedade, e essa discussão sempre foi de trazer a relevância da questão racial quando nós pensamos a situação da mulher no Brasil.
Tivemos atividades realizadas pela Seppir e Secretaria de Mulheres, produções sobre indicadores em relação à situação da mulher negra, além de mulheres negras integrando os governos de Lula e Dilma. Pode não ter sido a quantidade ideal do ponto de vista da representatividade, mas é extremamente significativa a presença de mulheres negras nos governos petistas.
Se nós compararmos hoje, por exemplo, que estamos no momento do golpe parlamentar, midiático e jurídico, nós não temos nenhuma representatividade negra nesse governo, muito menos de mulheres negras. Temos um governo que tem acabado sistematicamente com as políticas de promoção da igualdade racial.
Não só pelo isolamento e invisibilidade que causa a própria Seppir, mas também por ações do governo golpista, como a lei da terceirização e a reforma trabalhista, que incidem de forma contundente e negativa sobre a população brasileira e trabalhadora de modo geral, mas em especial sobre negros e negras.
Durante esses treze de governo petista, nós podemos dizer que, com lutas também para conseguir um lugar de visibilidade, de uma discussão maior, a questão racial e das mulheres negras foram consideradas como algo importante para se pensar a democracia no Brasil, e isso foi uma marca, sim, do Partido dos Trabalhadores.
“A questão racial e das mulheres negras foram consideradas como algo importante para se pensar a democracia no Brasil, e isso foi uma marca, sim, do Partido dos Trabalhadores.”
Você foi ministra no governo Dilma Rousseff, primeira reitora negra de uma universidade pública brasileira, é pesquisadora e professora universitária. O que significa o exercício dessa representatividade em espaços como esses, onde a presença de mulheres negras ainda é muito baixa?
Ter sido ministra no governo da presidenta Dilma Rousseff, ter sido reitora, foi uma grande honra e um grande desafio. Uma honra porque é um reconhecimento, é o meu trabalho, a minha trajetória. E um desafio porque ainda carecemos de uma maior representatividade de negros e negras nos espaços de poder, nos espaços de decisão, e principalmente de mulheres negras.
Era um desafio também porque todas nós, mulheres negras, que chegamos a esses espaços de representação e de representatividade, não chegamos sozinhas. Nós representamos um coletivo, então, nesses momentos, é uma grande responsabilidade representar esse coletivo, levando para esses espaços de poder a pauta para a superação do racismo e da desigualdade racial e de gênero, juntamente com todas as outras pautas e questões específicas dos cargos que nós ocupemos.
Foram momentos também de muita reflexão, porque apesar da representatividade, o fato ser a primeira reitora negra de uma universidade federal, estar no governo federal, ocupar esse lugar, sendo a única mulher negra naquele momento no conjunto de ministros e ministras, e também na universidade onde eu atuo ocupar determinados cargos e funções pela primeira vez, acaba reforçando uma regra perversa, que é a não presença de negros e negras em função da desigualdade racial e do racismo.
Então, a nossa não presença ou a nossa pouca presença, na minha opinião, sempre será motivo para olharmos para essa pouca ou baixa representatividade e compreendermos o quanto ainda temos que lutar e avançar para superar desigualdades raciais, junto com desigualdade sociais e de gênero, para conseguir, de fato, que essa diversidade racial e étnica que existe na sociedade brasileira possa estar representada nos mais diversos setores.
Isso também serve para nós como um impulso de pensar que precisamos construir condições e direitos cada vez mais iguais para negros e brancos no Brasil, para que tenhamos condições de ocupar esses lugares quando essas oportunidades forem construídas.
Isso significa que nós temos que continuar lutando muito pelas políticas de ações afirmativas, para que possamos garantir acesso e permanência de negras e negros nos mais diversos espaços da sociedade, ou seja, que a gente garanta de fato direitos no Brasil levando em consideração a diversidade cultural, étnica e racial que nós temos.
Quais os caminhos para romper com o racismo institucional?
Eu acho que passa por alguns aspectos: reconhecer a existência do racismo no Brasil e reconhecer que o racismo, quando ele se alia ao machismo, sexismo e à misoginia, ele causa efeitos ainda mais perversos na vida das mulheres e das mulheres negras, sobretudo.
A outra questão é construir políticas de ações afirmativas com recorte de raça e gênero. Nós precisamos, na sociedade brasileira, mapear os espaços, profissões e instituições onde nós, mulheres negras, estamos mais sub-representadas. E aí, tanto o setor público quanto o privado têm o dever cívico, político e ético de construir políticas de ações afirmativas que consigam garantir maior acesso para mulheres negras nos mais diferentes espaços.
Outro ponto que eu acho importante é conhecer e reconhecer a luta por direitos que as mulheres negras têm implementado historicamente na sociedade brasileira. Trazer essas lutas e os avanços que nós temos construído, trazer isso para um campo de análise e reflexão, por exemplo, produzindo mais pesquisas sobre as articulações de raça e gênero nas mais diversas áreas.
Que as crianças, adolescentes e jovens, ao estudarem a história do nosso país, estudem também a história das lutas negras e a história das mulheres negras como protagonistas importantes de mudanças históricas no nosso país. Isso significa também um reconhecimento de que esse racismo institucional existe, de que ele não é uma ficção.
E, se ele existe, todas as instituições têm que fazer uma revisão interna e compreender onde o racismo institucional atua com maior força e maior contundência, e nesses setores, nessas áreas, construir políticas muito mais incisivas para que a presença das mulheres negras seja garantida ali.
Qual é a principal pauta das mulheres negras atualmente no país?
Uma das questões fortes que as mulheres negras têm trazido é a superação da violência, de gênero e racial. Os últimos resultados no Atlas da Violência mostrou o aumento dos homicídios que incidem sobre as mulheres negras. A situação é muito alarmante, porque mostra que tem diminuído a taxa de assassinato de mulheres brancas, mas aumentado quando se trata de mulheres negras. Isso mostra que a violência no Brasil não é apenas socioeconômica, ela é de raça e gênero. As mulheres negras têm denunciado isso insistentemente, o que tem sido atestado pelas pesquisas e pelos levantamentos. Nesse caso, a luta das mulheres negras da superação da violência, tem sido a denúncia.
O feminicídio no Brasil tem recorte racial, ou seja, nós temos o feminicídio negro. As instituições de garantia dos direitos têm que considerar essa questão e pensar alternativas de superação para todas as mulheres, principalmente para as mulheres negras.
O silenciamento sobre a questão da raça no que diz respeito à violência contra as mulheres é extremamente negativo para a sociedade brasileira como um todo, para a luta das mulheres, para um futuro melhor da democracia no Brasil, porque é o silenciamento que oculta uma realidade perversa. Então, se hoje nós estamos celebrando, rememorando as lutas das mulheres negras, temos que considerar que a superação da violência tem que ser uma pauta importante para pensar a situação da mulher negra no Brasil.
“O feminicídio no Brasil tem recorte racial, ou seja, nós temos o feminicídio negro. As instituições de garantia dos direitos têm que considerar essa questão e pensar alternativas de superação para todas as mulheres, principalmente para as mulheres negras.”
O que representa ser mulher negra no Brasil de hoje?
Ser mulher negra no Brasil, de ontem e de hoje, é sempre ser guerreira. É sempre entender que quando nós chegamos nos espaços, com os nosso corpos, com a nossa produção intelectual, com a nossa poesia, com a nossa cultura, com nosso olhar de raça e gênero, nós abalamos esses espaços. Como disse a ativista Angela Davis, nós abalamos as estruturas e construímos algo novo.
Acho que é muito importante refletir que ser mulher negra no Brasil é ser alguém que educa e reeduca a sociedade brasileira o tempo inteiro, no reconhecimento do quão perverso é o racismo para todos nós, não somente para a população negra.
Ser mulher negra no Brasil de hoje significa também nunca perder a visão de que por mais que nós cheguemos a determinados espaços – e ainda somos poucas, principalmente nos espaços de poder e decisão – nós temos sempre que reconhecer que nunca chegamos sozinhas.
Nós representamos um coletivo, nós somos fruto de histórias de lutas, nós somos fruto das lutas das nossas mães, das nossas tias, das nossas avós, das nossas bisavós, nós somos fruto de Tereza de Benguela. Ou seja, nós temos um fio condutor histórico, político e cultural que nos faz fortes, nos faz guerreiras. Por isso, quando chegamos a determinados espaços, não podemos olhar somente para nós mesmas, nós temos que olhar também para o nosso grupo, para o nosso coletivo, e continuar lutando para que mais mulheres negras estejam nesses espaços e para que a sociedade brasileira implemente, de fato, uma democracia com igualdade racial.
Por isso, que em tempo de golpe, nós, mulheres negras, temos que continuar lutando ainda mais, porque a normalidade democrática é importante para todas as pessoas, principalmente para as pessoas negras, diante do histórico de discriminação e de racismo que nós temos no Brasil. Sem democracia não há igualdade racial, e sem igualdade racial também não há democracia.
Por Geisa Marques, da Comunicação Elas por Elas