O futebol de Nelson Rodrigues
Ministério do Esporte publica, até junho, crônicas do jornalista Nelson Rodrigues selecionadas para o livro “A pátria de chuteiras”
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Nelson Rodrigues fez metáforas com o futebol para descrever o Brasil. E o fez muito bem, diga-se de passagem. Em dezembro de 2013 o livro “A pátria de chuteiras” foi lançado pelo ministro do Esporte, Aldo Rebelo. Agora, é utilizado para promover a Copa do Mundo de 2014.
Desde o início de abril é publicado diariamente no site do Ministério do Esporte uma crônica. Elas foram escritas por Nelson Rodrigues ente 1950 e 1970.
Nelas, o jornalista narra jogos, critica e faz analogias entre o sentimento de jogadores e o patriotismo dos brasileiros. Os textos serão veiculados até às vésperas do Mundial de Futebol, em junho.
Abaixo, trazemos uma delas. A crônica “O belo milagre das vaias”, publicada dia 1º de maio de 1970 na coluna “As confissões de Nelson Rodrigues”, no jornal O Globo.
Por Rebeca Ramos, da Agência PT de Notícias.
O belo milagre das vaias
Quem quer que tenha um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos sabe que o futebol brasileiro é o melhor do mundo. Não sou eu que o digo, mas o óbvio, sim, o óbvio ululante.”
O escrete parte hoje. Termina o seu exílio e, se não ouviram bem, repito: — o seu exílio era o Brasil. Os nossos jogadores são tratados como se fossem estrangeiros. Ou pior. Porque os estrangeiros merecem, não raro, uma polidez convencional, sim, um mínimo de cerimônia. Vocês viram, não viram, Brasil x Inglaterra?
“Não somos os melhores”, afirma um cronista machadiano. E, não sendo os melhores, e sendo os ingleses, sim, nós os derrotamos. Como se não bastasse a vitória brasileira, ainda infligimos aos campeões do mundo um ignominioso olé. Mas eis o que eu queria dizer: — no segundo tempo, um dos visitantes fez uma coisa que, em futebol, é a vergonha inapelável e eterna: — atrasou do meio de campo. Ao meu lado, na tribuna de imprensa, o botafoguense Serginho explodia em arroubos: — “Como eles atrasam bem! Com que tranquilidade!”
Por aí se vê que admiramos mais os defeitos ingleses do que as virtudes brasileiras. Conversei com um dos jogadores do escrete e ele abriu-me a alma, de par em par. Contou-me que, jogando sob uma cúpula de vaias, não era um brasileiro a jogar para brasileiros. Não e nunca. Tinha a sensação de que era um brasileiro a jogar para javanês, tirolês, congolês, tibetano, caucasiano e birmanês.
De brasileiros, a maioria dos assistentes só tinha o palavrão. Era, sim, o palavrão, rugido no idioma de Camões, era o palavrão, repito, que localizava o Morumbi no Brasil. E disse mais o pobre craque. Como se não bastassem as vaias de boca, sofria também as vaias impressas. Os jornais, em sua maioria, não tinham uma palavra solidária, amiga, fraterna. O escrete era negado de alto a baixo, isto é, a partir da manchete.
O mal-amado sente-se hostilizado até pelas paredes, pelos edifícios, pela paisagem. E ele, não raro, começou a sofrer de mania de perseguição. Passou pelo morro da Viúva, achou que o Pão de Açúcar tinha-lhe horror; que o Corcovado, idem. De outra vez, sentiu-se mal-querido até pelo poente do Leblon. Disse-me várias vezes, obsessivamente, o jogador: — “Precisamos sair daqui! Precisamos ir embora!”
Ouvi em silêncio o craque patrício e, sem nada dizer, dei-lhe toda a razão. Perguntará o leitor, em sua espessa ingenuidade: — “O brasileiro não gosta do brasileiro?” Exatamente: — o brasileiro não gosta do brasileiro. Ou por outra: — o subdesenvolvido não gosta do subdesenvolvido. Não temos sotaque, eis o mal, não temos sotaque. Ainda agora, no Morumbi, jogamos com a Bulgária2. Embora entre os búlgaros existissem carecas, pais de família, que fez a nossa crônica? Na hipótese de uma vitória nacional, passaram a dizer que os adversários eram infanto-juvenis do seu país. E se, porventura, ganhássemos de 17 x 0, diriam as manchetes: — “Brasil ganha do berçário búlgaro!”
Não sei se vocês se lembram de uma passagem que contei, aqui mesmo, nesta coluna. Era o caso de um patrício meu que assim se apresentava nas esquinas, botecos e retretas: — “Chegou o quadrúpede!” Fazia uma volta no local e dava outro berro: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!” Era esse o seu triunfal cartão de visitas. Ligava para a namorada e começava assim: — “É o quadrúpede!”
Lembrei-me desse conhecido que assim se aviltava ao ouvir uma mesa-redonda numa das nossas emissoras. O assunto era o escrete. Ora, o escrete é feito à nossa imagem. E os cronistas reunidos não fizeram outra coisa senão cuspir, como Narciso às avessas, na própria imagem. Negaram a seleção, negaram o jogador, negaram o técnico, negaram o preparador, negaram o médico, negaram tudo. Justo seria que terminassem assim: — “E, agora, com licença, porque vamos urrar no bosque mais próximo!”
Os brasileiros empataram com os carecas da Bulgária por um escore que humilha os dois lados: — 0 x 0. Mas o resultado em nada influiu. A vaia começou antes do jogo, continuou durante o jogo e depois do jogo. Mas se me perguntarem quem empatou com os búlgaros, eu diria: — a antitorcida. Uma multidão que só vaia não pode chamar-se a si mesma de torcida nem tem o direito de exigir vitória.
O que fizeram com Paulo Cézar é indesculpável. Ele não era nem culpado de estar ali e, repito, estava ali porque o escalaram. Setenta, ou oitenta, ou noventa mil sujeitos contra um só. Não se conhece outro brasileiro tão humilhado. A vaia é um prazo. Dura um minuto, dois, três. Vaia é esforço, e não temos, como os ingleses, a saúde e a resistência de uma vaca premiada. Pois bem. A vaia que trucidou Paulo Cézar durou noventa minutos.
Digo noventa minutos e já retifico: — mais. Mais, porque começou antes do jogo. A aluna de psicologia da PUC, que entende nossos sentimentos, dizia-me: — “Só o ódio sustenta uma vaia de noventa minutos.” Aí está: — só o ódio. E seria lícito dizer-se que Paulo Cézar foi linchado, fisicamente linchado, por uma vaia.
Há outra observação que eu desejaria fazer. A vaia contra um atinge e ofende os demais, inclusive adversários. Claro, pois a vaia não tem nome e endereço como os envelopes. Os destinatários eram os 22 jogadores e mais os reservas, de ambos os lados. Mas volto à mesa-redonda da TV. Houve pouquíssimas exceções; e uma delas, a mais veemente, a mais otimista foi a do “Marinheiro Sueco”3. Vibrante de justiça e de procela, tratou de defender o maravilhoso craque do Brasil.
Graças a Deus o escrete parte. O que nem todos percebem é que o time nacional leva um maravilhoso trunfo. No México, ele se sentirá muito menos estrangeiro do que aqui. E estará protegido pela distância. Acreditem que a distância será a nossa ressurreição. Se me perguntarem o que deverá fazer a seleção para ganhar a Copa, direi, singelamente: — “Não nos ler.” Sei que as nossas crônicas vão aparecer, por lá, como abutres impressos. Não importa. O que interessa é fugir da feia e cava depressão que dos nossos textos emana.
Quando o jato subir, o escrete assumirá a sua verdadeira dimensão. Cada cronista há de ter uma palavra final para o time nacional. Já vimos que um dos colegas escreveu, a título de juízo final: — “Não somos os melhores.” Esse tom de catástrofe é de quase toda a imprensa brasileira. Mas não é, repito, o meu tom. Dirão vocês que adoto, diante da Jules Rimet, uma posição romântica. Nego. Justamente porque sou realista é que sinto, inevitável, fatal, a vitória brasileira.
Os pessimistas são os alienados. Por exemplo: — o ilustre cronista diz que data de 66 o ocaso do nosso futebol. Quem fala assim é, obviamente, um ressentido contra os fatos. Ele não os aceita e parece dizer: — “Se os fatos não confirmam o que escrevo, pior para os fatos.” Quem quer que tenha um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos sabe que o futebol brasileiro é o melhor do mundo. Não sou eu que o digo, mas o óbvio, sim, o óbvio ululante.
Seremos campeões de 70, conquistaremos para sempre o caneco, porque somos melhores. Mas isso seria pouco. Além de melhores, levamos para o México as vaias ainda não cicatrizadas. De vez em quando, eu relembro o que acontecia com o “Tigre da Abolição”. Nos comícios, (José do) Patrocínio começava gelado de pusilanimidade. Era preciso que os amigos, no meio da multidão, o chamassem de “negro”, “negro”, “negro” e “negro”. E a humilhação racial o potencializava. Dizia então coisas como aquela: — “Sou negro, sim! Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes da minha pátria!”
Com o escrete, já começa o belo milagre das vaias. Foi milagre o segundo tempo de Brasil x Áustria. Aquela bola que Pelé passou de calcanhar ou o gol de Rivellino, cada jogada era um momento de eternidade do futebol. Vou ao aeroporto dizer aos nossos jogadores: — “Vocês já são campeões do mundo.”
(1) Esta crônica foi publicada originalmente na coluna “As confissões de Nelson Rodrigues”. (N.E.)
(2) Brasil 0 x 0 Bulgária, 26/4/1970, no Morumbi. Brasil 1 x 0 Áustria, 29/4/1970, no Estádio Mário Filho. Últimos amistosos antes do embarque para a Copa do México. (N.E.)
(3) Apelido de Hans Henningsen, jornalista espanhol e companheiro de Nelson Rodrigues na mesa-redonda Grande resenha Facit, da TV Globo.