O motivo da privatização: Correios deram lucro nos últimos 20 anos

Proposta bolsonarista de privatização da empresa é rejeitada por 93% dos votantes em enquete da Câmara, onde Lira corre para aprovar a entrega

A primeira tentativa de votação da privatização dos Correios, no reinício dos trabalhos legislativos na Câmara dos Deputados, falhou. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP/AL), se esforça para entregar a encomenda a Jair Bolsonaro até a próxima segunda-feira (9), a despeito da rejeição absoluta à proposta no site de enquetes da própria Câmara. Nele, 93% discordam totalmente e apenas 5% concordam com o Projeto de Lei (PL) 591/2021.

Nesta quarta-feira (4), reportagem do portal Uol revela que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) acumulou lucros nos últimos 20 anos. Em 16 deles, repassou 73% dos resultados acumulados para o governo federal, único acionista da estatal.

A União recebeu R$ 9 bilhões em dividendos por 12 anos seguidos, de 2002 a 2013. No período, a ECT acumulou resultado líquido positivo de R$ 12,4 bilhões, em valores atualizados pelo IPCA. Mesmo quando não obteve lucro, entre 2014 e 2017, a empresa manteve-se independente do Tesouro, sustentando-se com os próprios recursos.

O único aporte feito pelo Tesouro nos últimos 20 anos ocorreu para aumento de capital da empresa. Em valores atualizados, foram R$ 254 milhões em 2018, ou 2% do total de dividendos que os Correios distribuíram à União no período.

Em relação ao valor investido na estatal, os Correios tiveram o terceiro melhor desempenho em retorno sobre o patrimônio líquido (69,5%), segundo dados do último Boletim das Participações Societárias da União, de 2018. Desde então, a ECT auferiu lucro de R$ 1,2 bilhão em 2019 e bateu o recorde em 2020, com R$ 1,53 bilhão.

Para a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann, o pacote de propostas que Jair Bolsonaro quer aprovar no Congresso é um pesadelo. “Ofensiva da base bolsonarista na Câmara é um verdadeiro horror. PL da grilagem, MP que tira férias, FGTS, aposentadoria, privatização dos Correios. Enquanto Bolsonaro só pensa em 2022, tudo segue sendo destruído, o povo passa dificuldades e sofre com a pandemia”, afirmou a deputada paranaense em seu perfil no Twitter.

Pochmann: “Estamos cancelando o futuro”

Ouvido pela reportagem, o doutor em administração e professor do Insper Sérgio Lazzarini se mostrou favorável à privatização, por acreditar que o papel do Estado “não é lucrar, mas investir em áreas de interesse público que têm retorno social, como saúde, educação e saneamento”.

Ele chamou a atenção, no entanto, para os riscos da operação nos moldes da proposta bolsonarista: venda de 100% da estatal, com manutenção do monopólio postal e a regulação do serviço privado. “Se vendermos os Correios com ‘porteira fechada’ e o comprador puder fazer o que quiser, certamente vai ignorar entregas mais complicadas ou cobrar preços bem mais altos“, ressalva, ecoando as argumentações dos contrários à entrega da empresa.

O presidente do Instituto Lula, Marcio Pochmann, por exemplo, afirma que o desgoverno Bolsonaro quer apenas vender empresas lucrativas para fazer caixa, ignorando o impacto negativo sobre a universalização do serviço. “O governo não tem um projeto de país. Estamos vivendo o ‘presentismo’, vendendo o almoço para comprar o jantar. Estamos cancelando o futuro”, critica.

Os estudos para a privatização dos Correios são enviesados, para confirmar o que o governo já queria“, disse o vice-presidente da Associação dos Profissionais dos Correios (Adcap), Marcos Cesar Silva. Para ele, a capilaridade dos Correios é um de seus principais ativos, pela vantagem estrutural sobre os concorrentes.

Ex-representante dos funcionários no Conselho de Administração dos Correios, Silva lembrou ainda que os prejuízos acumulados entre 2013 e 2016 ocorreram principalmente devido a uma mudança contábil que obrigou a empresa a garantir mais recursos para futuras aposentadorias, mas a ECT ganha valor a cada ano.

Nos EUA, os Correios nunca foram privatizados

Sempre mencionado como modelo de sucesso pelos neoliberalistas da linha chilena, como o ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes, nos Estados Unidos os correios são um serviço público até hoje.

Agência federal ligada ao Executivo, o United States Postal Service (USPS) mantém mais de 34 mil agências espalhadas pelo país, conectadas por uma rede com 231 mil veículos e 495,9 mil funcionários. O contingente é quase cinco vezes o quadro da ECT, que soma 100 mil servidores.

Ao contrário da empresa brasileira, a última vez que a agência norte-americana gerou lucro foi em 2006. Desde então, os prejuízos acumulados chegaram a quase US$ 90 bilhões (R$ 460 bilhões) em 2020. Ainda assim, a agência resiste há décadas a tentativas de privatização. A mais recente, de Donald Trump, em 2018, encontrou forte oposição não apenas de políticos democratas, mas até de correligionários republicanos.

À BBC, a economista Monique Morrissey, do centro de estudos progressista Economic Policy Institute (EPI), explicou que os Estados Unidos têm uma “peculiaridade”: a coexistência, no Partido Republicano, de conservadores liberais, pró-mercado, e conservadores nacionalistas, cujas bases vivem predominantemente em áreas rurais, dependentes das entregas de correspondências e pacotes do serviço postal.

“Essas pessoas querem que ele continue sendo um serviço público ‘patriótico’, como as Forças Armadas ou as escolas públicas”, avalia. Outro motivo, diz ela, é que milhares de pequenos negócios no interior do país contam com a infraestrutura da agência para distribuir seus produtos, com preços tabelados pelo Congresso.

Uma eventual privatização, acreditam os norte-americanos, levaria a um aumento generalizado do serviço, especialmente em áreas remotas, menos rentáveis para o setor privado. Hoje, o USPS presta um serviço universal em todo o território, da Flórida ao Alasca. Como no Brasil, onde a ECT, detentora do monopólio de serviços postais, o executa do Oiapoque ao Chuí.

“Você tem republicanos que apoiam (a manutenção do serviço público) por causa dos pequenos negócios e os democratas que apoiam por causa dos sindicatos, entre outros motivos. Então existe esse apoio bipartidário incomum nos Estados Unidos”, resume Morrissey.

Uma pesquisa divulgada em maio de 2020 pelo Pew Research Center apontou que 91% dos entrevistados tinham uma visão favorável à agência norte-americana. Cifra muito semelhante aos 93% totalmente contrários à privatização dos Correios que registraram seus votos no site de enquetes da Câmara, no Brasil.

Da Redação

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