O preconceito aumenta a violência contra índios, diz presidente da Funai

Em entrevista ao Uol, João Pedro Gonçalves fala sobre os projetos e desafios da Funai em 2016

Foto: Daniel Caron/FAS

Do Uol – Há seis meses, o amazonense João Pedro Gonçalves assumiu a Funai (Fundação Nacional do Índio) e se familiarizou com uma lógica curiosa: as pressões ao órgão aumentam na medida em que o seu orçamento diminui. Em 2016, por exemplo, a Funai terá o menor orçamento em quatro anos. Para complicar ainda mais a tarefa, 2015 registrou o assassinato de diversas lideranças indígenas e terminou com o assassinato brutal de um menino indígena de dois anos de idade, degolado em Santa Catarina enquanto era amamentado pela mãe.

Gonçalves, 62, foi servidor público do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e senador pelo PT-AM, como suplente do ex-senador Alfredo Nascimento (PR) entre 2007 e 2011.

Em entrevista ao UOL, Gonçalves diz que parte da violência contra os indígenas no Brasil é fruto do que ele classifica como “preconceito”, mas nega que o país viva um “genocídio”, como alegam algumas ONGs (organizações não governamentais). Gonçalves também critica a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Funai na Câmara dos Deputados que, segundo ele, faz parte de uma estratégia para enfraquecer o órgão e para aprovar a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 215, que dará poderes ao Congresso Nacional para a demarcação e regularização de terras indígenas. A PEC é criticada por Gonçalves e ONGs que temem a influência da bancada ruralista no tema. “É o setor mais atrasado do Congresso”, diz sobre ferindo-se aos ruralistas.

UOL – Em 2015, houve uma série de assassinatos de lideranças e, em dezembro, um menino indígena foi morto no colo da mãe. O Brasil hoje vive um “genocídio de indígenas”, como alegam algumas ONGs?

João Pedro Gonçalves – Não. Discordo. Não temos um genocídio, um extermínio, mas também não dá para desconhecer a violência contra os povos indígenas. Agora mesmo, no dia 30, tivemos o assassinato de uma criança de dois anos de idade em Santa Catarina. O rapaz se aproximou da mãe que estava na rodoviária e deu um golpe no pescoço da criança. Uma violência. Tem muita violência contra os povos indígenas e não há, por conta do Estado brasileiro, das instituições, nenhuma conivência. Há um enfrentamento grande e exigimos punição. A Funai repele e repudia essa violência. Tem sim, no Brasil, setores na sociedade com elevado grau de preconceito contra os povos indígenas. O preconceito aumenta a violência contra os índios.

Há uma constante de queda no orçamento da Funai nos últimos anos. A questão indígena deixou de ser prioritária para o governo?

A Funai não deixou de ser prioridade, mas agora, é verdade, é fato a diminuição dos nossos orçamentos. Estou na Funai desde meados de 2015, peguei um orçamento andando e começa 2016 com um orçamento que sofreu um corte no Congresso Nacional. É um orçamento aquém das nossas necessidades. Esse orçamento é muito pequeno por conta do tamanho da Funai. Temos uma estrutura grande, posso até dizer pesada para esse orçamento. Não vou deixar de fazer uma proposta para o governo para suplementação do orçamento. É fato: este orçamento é muito pequeno para as ações em todo o Brasil.

Mas na medida em que os orçamentos estão caindo e isso debilita a capacidade de ação da Funai, como é que o governo pode fazer frente a toda essa pressão que o senhor descreve?

Estou reconhecendo nossas dificuldades, mas não há imobilismo. Estamos atuando junto com nossos parceiros, como o Ministério Público e outras instituições do próprio governo. Temos uma série de articulações com os Estados. Evidente que temos um orçamento mais curto e pode parecer um imobilismo, mas não existe isso.
O senhor atuou como senador por cinco anos quando foi suplente do hoje deputado federal Alfredo Nascimento (PR-AM). O Congresso Nacional é confiável para deixá-lo responsável pela demarcação de terras indígenas?

Somos contra a PEC 215. Mas veja que nós estamos falando da PEC, mas nós também estamos sendo alvo de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito).

Os povos indígenas estão vivendo esse constrangimento da CPI. A CPI não diz respeito a recursos financeiros. Ela ataca antropólogos, os relatórios, a terra indígena. Ao mesmo tempo em que tramitam no Congresso várias PECs propondo retrocessos, existe uma CPI contra o Incra e a Funai.
Que setores teriam interesse nessa CPI?

Setores que eu considero retrógrados e anti-indígenas. Os ruralistas. Esse é o setor mais atrasado do Congresso, e eu preciso falar desse jeito porque tratar os indígenas dessa forma é um absurdo. Estamos vivendo esse momento de poucos recursos e de muita pressão política contra os indígenas. Politicamente, estamos enxergando o que a CPI quer. Ela quer criar uma situação para viabilizar a PEC 215 para levar ao Congresso a definição das terras indígenas.
Em 2015, a Câmara aprovou um projeto de lei que coíbe o infanticídio praticado por alguns povos indígenas. O senhor é a favor ou contra o infanticídio?

Essa é uma lei que eu considero atabalhoada. Nós precisamos, e o Congresso tem essa condição, ter um olhar diferenciado, técnico, antropológico para com os povos indígenas. É bom lembrar que a nossa Constituição garante a tradicionalidade e se ela garante a tradicionalidade, temos que garantir os ritos. Temos que ter um olhar respeitoso para os rituais, para a espiritualidade…
Mas a Constituição também defende o direito à vida. É possível conciliar essas duas coisas?

Temos que estudar mais. Mas criminalizar um fato que para a nossa cultura é diferenciado? É essa a saída? Eu penso que não. Penso que teremos que ter um tempo para um Estado democrático de direito entender essas relações. Precisamos ter muita cautela nessa relação.
Criminalizar foi um erro?

Foi um erro e um desrespeito.
Que bancada representa uma ameaça maior para a questão indígena: a ruralista ou a evangélica?

A sociedade elege os deputados e daqui a pouco os deputados se transformam em bancada da bala, do campo, do boi, evangélica. Eu fico indignado com esse extrato de deputado. O deputado tem que pensar o Estado, a nação e a sociedade. Uma sociedade que tem povos indígenas. Não podemos diminuir, o Estado não pode ser desta ou daquela religião. Ser laico é respeitar a religiosidade e a espiritualidade dos povos. O Congresso Nacional precisa ter esse olhar profundo. Não pode ser uma bancada evangélica para tratar povos milenares.

A Funai vem sendo acusada de conivência nos episódios dos pedágios impostos por indígenas em rodovias. A cobrança do pedágio é ilegal.

A Funai é contra.
Mas o que ela faz para evitar isso?

A gente é contra e trabalha para evitar essa questão, mas o nosso timing é diferente. Estamos muito preocupados com os enawenê-nawê, em Juína (na divisa de Mato Grosso com Rondônia, que cobra pedágio na rodovia BR-174). Eles descobriram e praticam o pedágio sem ter noção das implicações de um pedágio. Estamos trabalhando para retirar esse povo.
Mas essa não é uma interpretação paternalista? O senhor acredita que eles estejam cobrando dinheiro das pessoas sem saber o que estão fazendo?

Não. Isso está errado e somos contra, mas a forma de retirar os índios da estrada não pode ser a forma de brutalidade e violência. Como conversar com eles? Eles têm uma organização diferenciada, que não têm cacique. Lamentavelmente, já tem oportunistas brancos que têm uma relação ilegal com esse comportamento. Estamos trabalhando para retirá-los, mas de uma forma humana e compreendendo as dificuldades de praticar fazer o pedágio sem saber as consequências da ilegalidade que isso representa para nós. No sul do Amazonas, acabou o pedágio e os índios estão pagando pelo que fizeram. Não somos coniventes e estamos buscando formas de tirar os índios das estradas.

O senhor disse que há um sentimento anti-indígena no Congresso. Esse sentimento também existe em outros setores da sociedade?

É difícil, mas temos hoje oito mil índios. Daqui a quatro, oito anos, esses oito mil viram 15 mil, 20 mil. Isso vai mudando a compreensão e o olhar e afirmação. O Brasil é reconhecido e respeitado internacionalmente por ter 13% das suas terras como terra indígena.
Mas também é criticado internacionalmente pela forma como os índios guarani são tratados em Mato Grosso do Sul…

Evidentemente. É inaceitável a forma como eles são tratados. Reconhecer a terra é muito importante. É muito importante também a forma como eles respeitam a sua terra. Os rios são bons, a floresta fica em pé. Precisamos melhorar é a gestão da terra indígena.
Esse cenário não é tão harmonioso assim. Em Mato Grosso há casos de indígenas cedendo terras para produtores de soja. Em Rondônia, índios permitiam a exploração de diamantes nas terras dos cinta-larga, na terra dos tenharim (no sul do Amazonas)…

Precisamos ter o cuidado para não generalizarmos. As coisas pontuais precisam ser mostradas e corrigidas. Eu vi a matéria da exploração dos cinta-larga porque nem todos compactuam com o que foi feito ali. Está errada. Estão pagando caro por isso. Precisamos agregar parceiros. Por que não fazer turismo?
É preciso acelerar a regulamentação da exploração mineral em terra indígena?

Sou a favor de normatizar, mas temos que responder a questões sobre quem serão os beneficiados com isso? Serão os indígenas? Como vamos fazer isso do ponto de vista tecnológico? Vamos poluir os rios, criar buracos na floresta? Precisamos criar condições para fazer uma normatização. Eu defendo, mas tem que ser feita em um ambiente de criar trabalho e renda nas terras indígenas, mas respeitando as populações.


Por Leandro Prazeres, do Uol em Brasília

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