Conheça o ‘Stonewall’ brasileiro, o levante liderado por lésbicas e apoiado por feministas

‘Chana com Chana’ era o jornal proibido, as frequentadoras eram expulsas e parlamentares do PT apoiaram a revolta. Saiba mais dessa história 

Da Redação, Agência Todas, com Secretaria Nacional LGBT do PT

Junho é internacionalmente conhecido como o mês da diversidade porque marca um fato importante na história do movimento LGBT do mundo. No dia 28 de junho de 1969, houve o primeiro levante contra a discriminação ao público LGBTI, também chamado de “Rebelião de StoneWall”. 

Os frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York, nos EUA, se rebelaram contra as constantes batidas policiais no bar —  resultando em uma batalha que durou duas noites e deu origem à organização da primeira parada do orgulho LGBTI, realizada no dia 1 de julho de 1970 nos Estados Unidos. É nessa data então que, hoje, é celebrado o Dia Mundial do Orgulho LGBT. As marchas pelo orgulho LGBT+ são realizadas no final de junho para relembrar as revoltas de Stonewall.

 

Levante do Ferro’s Bar — O Stonewall brasileiro

 

Levante Ferro’s Bar — o Stonewall brasileiro

 

Pouco mais de uma década da rebelião de Stonewall, em 1983, uma revolta semelhante aconteceu no Brasil, na cidade de São Paulo: o levante ao Ferro’s Bar, protagonizado por lésbicas e apoiado por grupos feministas. 

Localizado próximo à avenida 9 de Julho, no centro da capital paulista, o bar era um ponto de encontro de mulheres lésbicas da década de 60 a 90. Antes, era frequentado por militantes comunistas, no entanto, após o golpe, passou a ser um importante local para os encontros LGBTs na cidade.

Assim como nos EUA, as incursões policiais eram recorrentes e as frequentadoras eram expulsas do bar, mas sempre voltavam para o ocupar o espaço. Outra medida autoritária daquela época era o confisco e a proibição de panfletos que tratavam da luta LGBT na cidade. 

O material mais distribuído — e consequemente impedido de vender– era o jornal Chana com Chana, dirigido ao público feminino lésbico. Publicado pelo Grupo Lésbico Feminista e, posteriormente, pelo Grupo de Ação Lésbico-Feminista – GALF, o periódico existiu de 1981 a 1987. Em 1988, o GALF iniciou a publicação do jornal Um Outro Olhar, que se tornou uma revista em 1995, ano em que cessou de circular.

 

Publicação ‘Chana com Chana’, vendido no Ferro’s Bar, local do primeiro levante lésbico no Brasil

 

Publicação ‘Chana com Chana’, vendido no Ferro’s Bar, local do primeiro levante lésbico no Brasil

Publicação ‘Chana com Chana’, vendido no Ferro’s Bar, local do primeiro levante lésbico no Brasil

 

Com abordagem ampla sobre direitos sexuais, legislação, família, trabalho e o amparo para não “se enrustir”, recheada de poesia, cultura e literatura, a publicação se tornou referência entre as lésbicas e o público LGBT da cidade. A venda desse material foi proibida pelo próprio dono do bar – que ao mesmo tempo fechava os olhos para produtos como drogas ilícitas vendidas no estabelecimento.

Depois de muito tempo resistindo às expulsões violentas e à proibição dos materiais, no dia 19 de agosto de 1983, as militantes resolveram dar um basta na discriminação. Elas se organizaram com outros grupos LGBT, feministas e figuras políticas da época. 

E sabe quem estava lá dando uma força? O então deputado Eduardo Suplicy e a parlamentar Irede Cardoso, dentre outros.

Diante das frequentadoras, polícia, imprensa e militância, elas leram o manifesto contra a repressão e pelos direitos das mulheres lésbicas. Segundo Miriam Martinho, na publicação “ “Quando o preconceito fecha as portas, lute para abrí-las”,  a Folha de São Paulo fez inesperada reportagem positiva sobre o evento, destoando do tom em geral fortemente preconceituoso empregado para quaisquer notícias sobre lésbicas na época. 

 

Levante Ferro’s Bar – o Stonewall brasileiro

 

O protesto resultou em pedido de desculpas e liberação da venda dos panfletos. O levante do Ferro’s Bar foi um marco histórico da primeira manifestação lésbica brasileira, incentivando outros grupos LGBTQI+ e organizações feministas a reafirmar sua existência e dignidade. A data foi posteriormente lançada como Dia do Orgulho Lésbico e aprovada pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, em junho de 2008.

Confira abaixo o conteúdo do panfleto distribuído em julho que mobilizou o levante em agosto. 

 

PRA VOCÊ QUE FREQUENTA O FERRO’S 

BEM, GENTE, ACHO QUE CHEGOU A HORA DE FALARMOS ABERTAMENTE. CHEGA DE SUBTERFÚGIOS. E VOCÊ QUE É UMA PESSOA INTELIGENTE HÁ DE CONVIR COMIGO QUE TEMOS QUE NOS UNIR, POIS SÓ A UNIÃO FAZ A FORÇA. NÃO QUEREMOS QUE VOCÊ EMPUNHE A BANDEIRA DE HOMOSSEXUAL CONTRA A SUA VONTADE, MAS GOSTARÍAMOS QUE VOCÊ OLHASSE PARA DENTRO DE VOCÊ E VISSE O QUANTO GENTE VOCÊ É, QUE SER HUMANO MARAVILHOSO SE ESCONDE ATRÁS DE UMA MÁSCARA, BRINCANDO DE FAZ DE CONTA. 

FAZ DE CONTA QUE SOU TRATADA IGUALMENTE COMO TODAS AS PESSOAS. 

FAZ DE CONTA QUE O RESTAURANTE QUE EU FREQUENTO ME RESPEITA COMO EU MEREÇO. 

FAZ DE CONTA QUE A SOCIEDADE ME ENCARA SEM PRECONCEITO. 

FAZ DE CONTA ATÉ QUANDO? 

VOCÊ SABIA QUE COLEGAS SUAS, SERES HUMANOS COMO VOCÊ, SÃO POSTAS PARA FORA DE NOSSO MEIO COMO SERES LEPROSOS? 

VEJA, POR EXEMPLO, O QUE ACONTECEU NA NOITE DO SÁBADO PASSADO, DIA 23 DE JULHO, SÓ PORQUE UMAS MENINAS ESTAVAM VENDENDO SEU BOLETIM O CHANACOMCHANA, NUM CERTO BAR QUE CONHECEMOS, O DONO DO BAR E OS SEGURANÇAS QUERIAM EXPULSÁ-LAS À FORÇA SÓ PORQUE O BOLETIM FALA DAS NOSSAS VIDAS CLARAMENTE, SEM VERGONHA OU MEDO E ATÉ COM MUITO ORGULHO. E É SÓ POR ISSO MESMO, JÁ QUE, NO MESMO DIA, O EXÉRCITO DA SALVAÇÃO ESTAVA VENDENDO SEU JORNAL PARA NOS LIVRAR DO “PECADO” E NINGUÉM O INCOMODOU. 

NESSA NOITE, QUISERAM EXPULSAR AS COLEGAS, MAS NÓS NÃO DEIXAMOS E ELAS FICARAM, JANTARAM E PAGARAM A CONTA COMO SEMPRE COSTUMAM FAZER, POIS, PRA UNS E OUTROS, EMBORA NÃO PASSEMOS DE CÃES SARNENTOS, NOSSO DINHEIRO NÃO TRANSMITE NOSSA DOENÇA. E ELES SABEM FAZER BOM USO DELE, NA COMPRA DO CARRO ZERO KM, NO ESTUDO DO FILHO NO EXTERIOR, ETC. QUEREMOS TER OS MESMOS DIREITOS DAS OUTRAS PESSOAS, NÃO SÓ SEUS DEVERES. 

E PRECISAMOS COMEÇAR A BATALHAR POR ISSO A PARTIR DOS LUGARES QUE FREQUENTAMOS E SUSTENTAMOS. OU NÓS NOS UNIMOS OU CENAS COMO A DO SÁBADO PASSADO CONTINUARÃO A OCORRER E PODERÁ SER COM QUALQUER UMA DE NÓS POR QUALQUER MOTIVO. 

NOSSAS COLEGAS ESTÃO PROIBIDAS DE ENTRAR NO FERRO’S PORQUE QUEREM VENDER UM BOLETIM QUE TAMBÉM É NOSSO E PORQUE QUEREM CONVERSAR CONOSCO. VAMOS ADMITIR ESSA PROIBIÇÃO?

GUARDE E PENSE COM CALMA. EM CASA. REFLITA, FAÇA UMA AUTO-ANÁLISE, SE POSSÍVEL RELEIA ESTE TEXTO COM BASTANTE ATENÇÃO E, SE VOCÊ NÃO SE IMPORTA CONSIGO MESMA, JOGUE FORA E FAÇA DE CONTA QUE NADA LEU. 

CASO CONTRÁRIO NOS PROCURE. NOSSO ENDEREÇO É RUA AURORA, 736, APTO 10, 

E DEIXE O SEU RECADO. CASO CONTRÁRIO, PROTESTE CONTRA A PROIBIÇÃO DE NOSSA ENTRADA COM O DONO DO BAR. 

E, CASO CONTRÁRIO, NOS APOIE QUANDO FORMOS VENDER O BOLETIM CHANACOMCHANA. 

PARTICIPE NA LUTA CONTRA O PRECONCEITO QUE NOS DISCRIMINA, POIS TODA MANEIRA DE AMOR VALE A PENA. 

GRUPO AÇÃO LÉSBICA FEMINISTA CX.POSTAL 62,618, CEP 01000, SP JULHO DE 1983

(texto digitalizado do folheto original distribuído no Ferro’s Bar– acervo Rede de Informação Um Outro Olhar, contido na publicação “Quando o preconceito fecha as portas, lute para abrí-las”, de Miriam Martinho)

 

Edição do jornal “Chana com Chana” sobre o levante no Ferro’s Bar.

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