Perfil da Fome: Mulheres negras das regiões Norte e Nordeste são as mais atingidas

A pandemia da COVID-19, atrelada com a má gestão, escancarou as discrepâncias das desigualdades estruturais no país

O Globo

“… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças…”

A frase do livro “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”, escrito na década de 50, por Carolina Maria de Jesus, mulher preta e periférica, descreve o atual cenário  do país. 

A crise econômica e sanitária  atinge os lares brasileiros chefiados por mulheres pretas ou pardas, com baixa escolaridade e trabalho informal. É o que apontam os dados da pesquisa Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).

A pesquisa revela que a fome atinge  11,1% dos domicílios chefiados por mulheres, contra 7,7% liderados por homens. Das residências de mulheres negras e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre mulheres brancas, esse percentual foi de 7,5%. 

O aplicativo VigiSAN, da Rede Penssam, mostra  que a insegurança alimentar e a fome se acentuam nas regiões Nordeste e Norte. Os  índices de insegurança alimentar estavam acima de 60% no Norte e passaram de  70% no Nordeste. A fome, que afetou 9% da população brasileira como um todo, atingiu 18,1% dos lares no  Norte e 13,8% do Nordeste. 

Esta é uma situação vivida pela Tatiana Barbosa, mãe de duas filhas, moradora da periferia da cidade de Porto Nacional, estado do Tocantins. Ela frisa que o governo federal não oferece  apoio às famílias que estão em vulnerabilidade social. 

“Com esse governo, agora ficou difícil para a gente se alimentar, está tudo mais caro. Antes da pandemia eu conseguia pelo menos o básico, hoje quase nada, já cheguei a ter só cuscuz para minhas filhas jantarem”, desabafa.

A auxiliar de limpeza conta que sobrevive de doações de pessoas próximas e de auxílio da campanha “Tem Gente Com Fome”, promovida pela Coalizão Negra por Direitos. Uma campanha nacional de enfrentamento à fome e à miséria diante da pandemia da Covid-19, destinada à população negra.

Nas comunidades, periferias e favelas de todo o Brasil, as mulheres se viram como podem para levar alimentos aos seus filhos. Atualmente, a maioria depende de organizações do terceiro setor,  que dão assistência às famílias em situação de  vulnerabilidade.

Para Deise Fatuma, mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos- da UFBA, é perceptível que a pandemia da COVID-19 atrelada com a má gestão escancarou sistematicamente as discrepâncias das desigualdades estruturais: raça, gênero e classe; provocando desemprego, insegurança alimentar, desmantelamento das políticas públicas e o favorecimento das políticas fundamentalistas, conservadoras, racistas, LGBTQIA+fóbicas.

A assistente social e pesquisadora atua no Programa Corra Pro Abraço Juventude, em um bairro periférico de Salvador, com jovens negros e negras. Ela conta que vê a fome é presente na realidade das famílias dos jovens atendidos. 

“Realizo acompanhamento de suas famílias e uma das atribuições se materializa nas inúmeras visitas domiciliares para intervir na realidade social que atravessa a trajetória de vida dessas mulheres, marcada por uma matriz de opressão. Eu vejo um corpo desnutrido, com os seios quase ausente de leite, alimentando outro corpo franzino e desnutrido, trata-se de uma criança de cinco anos com aparência de três. Essa mulher ‘tem cor, tem corte e uma história’ de vida marcada por violências interseccionais ”, disse. 

Deise aponta outra preocupação: mesmo quando as cestas básicas chegam nas comunidades, algumas famílias não têm sequer um botijão de gás para cozinhar os alimentos. Isso faz com que recorram ao uso de álcool nas cozinhas, provocando acidentes em muitos lares. 

“Não há outro caminho que não seja a radicalização da democracia por uma sociedade mais justa e igualitária constituída pelas mulheres negras e outros grupos vulneráveis. Enquanto os homens exercem seus podres poderes, nós mulheres negras, trans, lésbicas, travestis, corpos dissidentes das normas, seguiremos resistindo!” , destacou a pesquisadora.

O novo mapa da fome. 

Esta é a segunda matéria de uma série especial sobre segurança alimentar no Brasil, produzida pelo projeto Elas Por Elas, da Secretaria Nacional de Mulheres do PT. Confira aqui o conteúdo completo. 

 

Dandara Maria Barbosa, Agência Todas

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