Artigo: Desgoverno de Bolsonaro destrói o melhor do Bolsa Família

Programa ganha nova versão sem regras claras, sob silêncio dos arautos da austeridade, alertam Tereza Campello e Sandra Brandão, em artigo

Em 20 de outubro de 2021, o Programa Bolsa Família completaria 18 anos. Se fosse um cidadão, estaria alcançando a maioridade. No entanto, apesar de sua trajetória de sucesso e do reconhecimento internacional que angariou, confirmados por dezenas de milhares de estudos realizados ao redor do mundo, sendo mais de 19,6 mil no Brasil (Plataforma Lattes, outubro 2021), não haverá motivos para celebrar.

De forma autoritária, desrespeitando a legislação e ferindo as melhores práticas sobre políticas públicas, Bolsonaro aniquilou o Bolsa Família. O programa foi extinto sem qualquer estudo técnico que desse suporte ao ato ou embasasse a opção pelo mal desenhado e insustentável programa que pretende substituí-lo.

Em seus 18 anos de existência, o Bolsa Família foi continuamente aprimorado, incorporando críticas e sugestões. Com base em dados e evidências, foi possível avançar e descartar questionamentos sobre seus impactos, parte expressiva dos quais originada na carga de ódio, preconceito e racismo que atinge diariamente os pobres no Brasil.

Hoje, temos dados que mostram que o Bolsa Família não desestimula o trabalho, do que é exemplo recente estudo do Banco Mundial, nem incentiva o aumento da natalidade.

Temos fartos resultados sobre impactos surpreendentes em saúde, que vão desde redução de 58% da mortalidade infantil causada por desnutrição e do déficit de estatura das crianças até efeitos não esperados, como controle e detecção precoce de tuberculose e hanseníase.

Há menos de um mês, um estudo inovador, com mais de 6 milhões de indivíduos, mostrou que o Bolsa Família reduziu em 16% a mortalidade de crianças de 1 a 4 anos, entre 2006 a 2015. Em famílias com mães negras e em municípios pobres, a redução foi ainda maior, chegando a 26% e 28%, respectivamente.

Frente aos muitos resultados de sucesso do Bolsa Família, e diante do aumento dos níveis de pobreza e fome no Brasil, o mais razoável, prudente e eficaz seria ampliar os valores do benefício e o público atendido. Isto poderia ser feito de forma simples e segura, sem os riscos envolvidos em mudanças abruptas, mal planejadas e feitas no afogadilho às vésperas da eleição.

Mas é claro que não podemos esperar prudência e apego aos bons princípios da administração pública em qualquer medida do governo Bolsonaro.

Nestes três anos e meio de (des)governo, houve 10 anúncios sobre o fim do Bolsa Família. E a Medida Provisória 1061 não contém propostas que resultem de debates amadurecidos no governo e com a sociedade. Ao contrário, ela não disfarça seus objetivos exclusivamente eleitorais. Ela destrói exatamente as características que tornaram o Bolsa Família o maior, melhor e mais eficiente programa de transferência condicionada de renda do mundo, pois:

(1) cria um conjunto de 9 tipos de benefícios diferentes, tornando mais oneroso e complexo o programa;

(2) opta por centrar a atuação do Estado no aplicativo, abandonando o Cadastro Único como ferramenta de identificação e inclusão, base para uma atuação integral de combate à pobreza, com oferta de bens e serviços públicos;

(3) desqualifica o processo humanizado de abordagem e acolhimento garantido no Sistema Único de Assistência Social, o SUAS;

(4) centraliza todo o processo no governo federal, secundarizando a cooperação federativa.

​A proposta enviada pelo governo Bolsonaro, além de frágil tecnicamente, é ainda ilegal. Estabelece um novo programa, sem definir o valor da linha de pobreza nem o valor dos benefícios, criando uma despesa continuada sem que se saiba o montante dela. Não previu, na proposta de lei orçamentária, receitas para fazer frente aos gastos com o programa.

Como mostra o debate em torno do aumento do IOF e da postergação do pagamento de precatórios, para criar um artificio que permita aumentar suas chances eleitorais, Bolsonaro destruiu um programa bem sucedido de 18 anos e feriu a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Apesar disto, os arautos da austeridade fiscal e da eficiência administrativa estão em silêncio.

Quanto vai custar o novo programa? Quais os critérios de inclusão das famílias? Quais estudos justificam adotar nove tipos diferentes de benefícios? Quais os impactos esperados com o novo programa? Nada disto está claro.

Um programa com 18 anos de existência, com custo fiscal baixo e impactos inquestionáveis está sendo extinto e, em seu lugar, propõe-se a incerteza. Há um crime em curso contra os pobres do Brasil, e o silêncio é ensurdecedor.

Cabe reconhecer, contudo que, mesmo em seus últimos momentos, o Bolsa Família dá mais uma contribuição, mostrando que, quando questões eleitorais entram em cena, a ciência, as boas práticas, a eficácia e eficiência do Estado não são assim tão relevantes para uma parcela dos especialistas e dos economistas, sempre tão críticos em relação a programas em benefício dos mais pobres. Difícil escolha.

Tereza Campello é economista, doutora por notório saber em saúde pública, pesquisadora associada à Universidade de Nottingham e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (governo Dilma).

Sandra Brandão é economista, mestre em Economia pela Unicamp.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo

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