Artigo: Desigualdades na Era Digital, por Márcio Pochmann

Entre tantas outras dissemelhanças, o IBGE contabiliza um conjunto de quase 13 milhões de domicílios sem acesso à internet, o que equivale a cerca de 40 milhões de brasileiros

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Marcio Pochmann, economista e presidente do Instituto Lula

Sem superar as desigualdades tradicionalmente conhecidas, o Brasil que ingressa na Era Digital se descobre cada vez mais iníquo. Na medida em que se sistematizam as informações a respeito da situação da digitalização da sociedade, mais alarmante é a proliferação das dissemelhanças entre os brasileiros.

No exemplo do trabalho diverso em plataformas digitais, constata-se a concentração de ocupados com maior nível de escolaridade, sobretudo aqueles com educação superior. Ao mesmo tempo, o Brasil se destaca ao permitir a fuga de talentos em Tecnologia de Informação e Comunicação para o exterior.

Não bastasse isso, os serviços de internet têm tido as piores avaliações pelos usuários, segundo a Anatel. No caso da disponibilidade de infraestrutura para o acesso à internet, a desigualdade é extrema.

Tomando-se como exemplo a situação da cidade de São Paulo, a mais rica do país, nota-se que para cada grupo de dez mil paulistanos ricos, há 50 antenas de internet disponíveis justamente nos bairros onde residem. Em vez disso, a região periférica registra somente uma antena de internet para cada grupo de dez mil moradores de menor rendimento.

Isso sem mencionar que o IBGE contabiliza um conjunto de quase 13 milhões de domicílios sem acesso à internet, o que equivale a cerca de 40 milhões de brasileiros. Nos domicílios com conexão de internet, o rendimento médio per capita equivale a 1,5 salários-mínimos, ao passo que nas habitações sem internet, o rendimento médio por morador mal alcança 70% do valor do mínimo nacional.

Mesmo contando com a 4ª população na internet, o Brasil se situa na 35ª posição em termos de segurança cibernética em 94 países considerados (Índice Global de Estratégias Cibernéticas). Na maior parte das vezes, o uso da internet se concentra em jogos pelo celular, alcançando a 59% dos brasileiros, enquanto apenas 3,2% das escolas do país detêm qualidade de internet adequada para aulas online e somente 16,5% dos tribunais de Justiça estão digitalizados no Brasil.

Para quem usa a internet para o exercício do trabalho em casa, percebe-se uma jornada de 6h44m diária. Segundo o IBGE, o teletrabalho exercido em casa atinge um a cada 10 ocupados. Em relação à digitalização dos negócios, identifica-se que apenas 28% das empresas conseguem adotar o modelo de negócio orientado por dados, enquanto 1/3 dos microempreendedores individuais obtém das vendas pela internet mais da metade do seu faturamento. Somente 22% das micro e pequenas empresas alcançam esse mesmo patamar.

Diante disso, espanta a inércia das elites e a paralisia da classe dirigente. Como se sabe, o Brasil carrega o fracasso de não ter conseguido interromper a trajetória da desigualdade gerada durante o predomínio da antiga e longeva sociedade agrária. Em mais de trezentos anos de vigência do sistema colonial português assentado no monopólio comercial e no trabalho compulsório, as iniquidades criadas romperam com o modo de vida dos povos nativos que desconheciam a penúria da miséria e as desigualdades próprias da colonização.

Com as iniquidades herdadas do período imperial permanecendo intocadas, a República terminou assistindo à sobreposição de novas desigualdades, próprias do avanço da sociedade urbana e industrial. Na República Velha (1889-1930), a quase ausência da questão social do vocabulário e dos discursos políticos da época era fruto do sistema político oligárquico, com governos constituídos fundamentalmente pela isonomia de homens brancos e proprietários em distintas fortunas e posição social.

Como a isonomia não significou igualdade de condições, a maior parte da população era excluída, pois formada por pessoas não brancas, sem fortunas e muito menos proprietárias. Por não nascerem em berços iguais, os brasileiros se tornavam ainda mais desiguais diante das instituições sociais e políticas ratificadoras de iniquidades.

Não obstante a modernização urbana e industrial prevalecente entre as décadas de 1930 e 1980, a desigualdade permaneceu travada pela ausência das reformas clássicas do capitalismo contemporâneo. Assim, a estrutura fundiária se manteve concentrada e os ricos continuaram a quase não pagar tributos, enquanto o sistema de bem-estar social e trabalhista jamais chegou a alcançar a parcela majoritária da população.

Sem ser possível mudar o passado, cabe reconhecer o fracasso no enfrentamento das desigualdades herdadas das sociedades agrária e industrial, para que a justiça possa se realizar em pleno ingresso na Era Digital. Por ora, contudo, “Está tudo como dantes no quartel d’Abrantes”.

Marcio Pochmann é economista e presidente do Instituto Lula.

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