Contrário à gestão de leitos privados pelo SUS, Teich agrava crise
Em coletiva, ministro da Saúde afirma que irá conversar com o setor hospitalar privado quando a situação chegar ao “limite”. Sociedade civil pressiona por liberação de leitos privados. Especialistas da Unicamp e da Fiocruz alertam: “Situação de emergência sanitária requer atuação da autoridade pública para salvar vidas”
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A capacidade de reação do governo brasileiro frente ao avanço da pandemia do coronavírus encontra-se moribunda, na UTI. Em entrevista coletiva, o ministro da Saúde Nelson Teich exibe desconhecimento sobre a gravidade da crise sanitária e práticas básicas de gestão pública. Com o sistema de saúde sufocado pela falta de leitos nos hospitais, Teich, confrontado com a necessidade de o país discutir a gestão de leitos privados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), afirmou que irá conversar com o setor hospitalar privado quando a situação chegar no “limite”. O que o ministro deixa de considerar é que o governo federal derrubou todos os limites pela falta de bom senso e responsabilidade social.
“Nós vamos precisar dos leitos do setor privado e do setor público. Do contrário, será uma pandemia seletiva, matar os pobres e proteger os ricos”, afirma o líder do PT no Senado, Rogério Carvalho (SE), que é médico especialista em saúde coletiva. “É fundamental discutir com os planos de saúde e o setor privado para que o setor de terapia intensiva seja integrado e atenda a todos os brasileiros, independente da sua condição social”, observa. A bancada do PT apresentou uma séria de propostas para o enfrentamento da pandemia, entre elas o uso compulsório de leitos privados disponíveis pelos entes federativos como medida de fortalecimento do SUS.
“Caso você chegue no limite, você vai sentar com a iniciativa privada e descobrir uma forma de trazer a saúde suplementar para fazer parte dessa solução do SUS de uma forma com uma cooperação e não com uma tomada”, alega Teich. Enquanto isso, outro triste recorde de mortes por infecção do vírus foi batido em 24 horas, com mais 615 óbitos para a conta do governo. Só no Rio de Janeiro, mais de 1,1 mil pacientes aguardam uma vaga na UTI. Pelo menos metade dos doentes está em estado grave. Boletim da Organização Mundial de Saúde (OMS) desta quinta-feira aponta que o Brasil teve quase 10% das mortes diárias por Covid-19 registradas nas últimas 24 horas. Situação só não é mais grave do que nos EUA e no Reino Unido.
Em editorial, a revista científica The Lancet, uma das mais importantes na área médica do mundo, aponta que o presidente Jair Bolsonaro é hoje “a maior ameaça à resposta do Brasil ao Covid-19”. A publicação sugere que ele precisa mudar a conduta ou será “o próximo a sair”. Em texto da edição de 9 de maio, disponível para assinantes, a revista editada no Reino Unido destaca que o Brasil é o país com mais infecções e mortes pela doença (125.218 casos e 8536 mortes) na América Latina e diz que esses números são “provavelmente substancialmente subestimados”.
Tutelado pelo Planalto
Há 20 dias no cargo, o hesitante ministro da Saúde não demonstra convicção quando aborda o isolamento social por medo de ir contra a política inconsequente do presidente Jair Bolsonaro, notório defensor do relaxamento da quarentena. Teich encontra-se encurralado na arapuca governista. Nesta quinta-feira, Bolsonaro levou um grupo de empresários ao Supremo Tribunal Federal (STF) para pressionar estados e municípios a relaxarem medidas de restrição de circulação de pessoas. A estridência radical de Bolsonaro parece exercer efeito ainda mais anestesiante no vacilante ministro.
Por pressão dos secretários estaduais de Saúde, com quem reuniu-se somente nesta semana, Teich concordou em lançar uma campanha de esclarecimento e orientação sobre a doença para a população. A campanha, se sair, chega tarde, no momento em que governadores adotam o lockdown – o bloqueio total de circulação de pessoas – em estados como Maranhão e Pará para segurar o avanço desenfreado da doença.
Sobre a medida extrema, Teich abordou o assunto genericamente. “Cada lugar vai ter a sua necessidade de distanciamento, nós vamos mapear com base nos casos novos e infraestrutura para atender”, esquivou-se, novamente. Toda vez que é confrontado, o ministro volta a insistir na necessidade de reunir mais dados para avaliar as medidas que serão tomadas. Na prática, é como se interpretasse, de modo mais civilizado, o bordão de seu superior: “E daí?”.
Daí que a realidade se impõe. O Brasil tem 127,3 mil casos registrados e mais de 8,6 mil mortos. Com número explosivo derivado das subnotificações, o país pode abrigar um número cinco a dez vezes maior de casos não registrados no país, advertem pesquisadores. A doença mantém ritmo alto de interiorização, com cerca de 44% das cidades de médio porte (entre 20 mil e 50 mil habitantes) com infecções por Covid-19.
País continua sem testar
Como o ministério não providenciou até agora os kits de testes necessários para a coleta de dados, autoridades de saúde estão no escuro quanto à real taxa de disseminação do vírus em solo brasileiro. O país testou até agora apenas 339,5 mil habitantes, quando deveria aplicar testes nessa quantidade de pessoas todos os dias, no mínimo. Assim, estados e municípios não dispõem dos instrumentos necessários para mapear a propagação da doença e implementar estratégias.
Segundo último balanço da Fiocruz, as internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), mantiveram a tendência de alta na semana entre 26 de abril e 2 de maio. Pelos dados da instituição, tanto internações quanto óbitos encontram-se em “zona de risco”, com atividade semanal alta. Já foram reportados 57.017 casos no ano, sendo 16.260 com resultado laboratorial positivo para algum vírus respiratório, 19.424 negativos, e pelo menos 16.839 aguardam resultado. Considerando os atrasos no repasse da informações, o número total pode variar para 74 mil, em média. Dos registros positivos, 82,7% foram causados pelo Covic-19. O aumento dos acometimentos graves reforça a tese das subnotificações.
Unificação das redes pública e privada
Sem medidas de emergência de contenção do vírus, como o lockdown e a testagem em massa, o efeito de esgotamento em cascata que derrubou o SUS em alguns estados pode paralisar o país em questão de dias. A ocupação de leitos já chega a mais de 90% em pelo menos quatro estados – Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Roraima – e oito capitais, segundo a Folha de S. Paulo. A interiorização da pandemia só agrava o quadro, em função da situação de abandono da rede hospitalar em milhares de municípios, asfixiada pelos cortes brutais no financiamento da saúde levados a cabo pelos governos Temer e Bolsonaro.
Organizações da sociedade civil têm pressionado o Ministério da Saúde para que sejam adotadas medidas de unificação das redes pública e privada a fim de aliviar a sobrecarga do SUS e atender a demanda dos pacientes que aguardam leitos. A iniciativa tem o apoio da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa e Serviço Social (Abepss), Associação Paulista de Saúde Pública (APSS), Faculdades de Medicina e Saúde Pública da USP, e movimentos como o Vidas e Iguais e Leitos para todos.
Uma das propostas, que ganhou o apoio público de figuras públicas como o compositor Chico Buarque, e o neurocientista Miguel Nicolelis, entre várias outras, é a utilização da fila única. Pela proposta, a gestão dos leitos privados é transferida ao SUS enquanto durar a pandemia do coronavírus. Mas o tutelado Teich mostra-se refratário à medida.
Respaldo jurídico
Pesquisadores afirmam que mudança temporária no modelo de gestão encontra respaldo jurídico, já que a rede privada tem capacidade para oferecer 55% dos leitos disponíveis a 25% da população, enquanto o SUS responde sozinho pelos leitos disponíveis a 75% dos brasileiros. “A regulação unificada de leitos públicos e privados pelo Poder Público é uma medida necessária e viável juridicamente”, defendem a doutora em Saúde Pública pela Unicamp, Lenir Santos, e o professor da Fiocruz, Francisco Campos Braga Neto, em artigo conjunto pra a Agência Fiocruz de Notícias.
“Salvar vidas é o objetivo do Estado e para isso ele deve lançar mão de todos os instrumentos jurídicos existentes, como é o caso da requisição de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas, conforme preveem a Lei n. 8.080, de 1990 e a Constituição”, justificam os dois.
Santos, que integra o Conselho Nacional de Saúde (CNS), e Neto, que coordena o Observatório de Política e Gestão Hospitalar da Fiocruz lembram que a estratégia foi adotada em países da Europa e foi recomendada pelo próprio CNS.
“Sem leitos disponíveis no setor público e os havendo no setor privado, a situação de emergência sanitária requer atuação da autoridade pública para salvar vidas, coordenando todos os leitos disponíveis, de modo igualitário, em respeito à dignidade da pessoa humana e como medida de solidariedade, conforme determina a Constituição”, observam.
Da Redação, com informações de Fiocruz e Agência Fiocruz de Notícias