Cristiano Zanin Martins: TRF-4 julgou Lula como inimigo

Na falta de elementos jurídicos, os julgadores abusaram dos argumentos políticos, seguindo a linha do MP, reforçando o caráter ilegítimo dos processos

Joka Madruga

O TRF-4, momentos antes de ser iniciada a sessão de julgamento da apelação criminal do caso do “sítio de Atibaia”, transformou-se em um verdadeiro cenário de guerra. De caminhões e viaturas desembarcavam policiais fortemente armados. Ruas e avenidas próximas ao tribunal foram fechadas e algumas barreiras de acesso foram criadas.

No prédio público foi permitida a entrada apenas de magistrados, servidores, advogados e jornalistas previamente cadastrados. É evidente que não havia qualquer ameaça real. Mas a estética bélica era necessária para deixar claro que o tribunal iria julgar um inimigo. É o lawfare ocorrendo em um cenário de guerra convencional.

De saída, o ex-presidente Lula não teve o direito de ver observada a fila de recursos no TRF-4. Quando a apelação julgada anteontem ingressou naquele tribunal, havia outros 1.941 recursos de igual natureza aguardando julgamento pela 8ª Turma — boa parte deles ainda pendente de análise. O julgamento foi marcado exatamente no dia (8/11) em que obtivemos uma decisão judicial, baseada em decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal, que permitiu que Lula deixasse a prisão após 580 dias de encarceramento ilegal. Ou seja, esse julgamento parece jamais ter tido a intenção de fazer uma revisão jurídica de uma sentença condenatória injusta, mas sim o de reagir à decisão da Suprema Corte e à liberdade de Lula.

A sincronia entre o órgão acusador e o órgão julgador revelada pela Vaza Jato pôde, de certa forma, ser constatada no processamento desse recurso. Em 23/10 o órgão do Ministério Público que atua no TRF-4 peticionou no mesmo dia em que o desembargador Gebran Neto (relator) decidiu que levaria a julgamento em 30/10 apenas uma das diversas teses de nulidade que apresentamos nas razões recursais.

Na ocasião, defendeu a anulação parcial do processo baseado em decisões proferidas pelo Supremo em relação ao direito dos corréus delatados de oferecerem suas alegações finais após os corréus delatores. Mas a conjuntura mudou.

Desde então Lula deixou a prisão e o STJ reconheceu a nulidade que apontamos na formatação do julgamento pretendido pelo TRF-4. Tais circunstâncias levaram o mesmo procurador regional da República que antes havia defendido a nulidade parcial do processo a peticionar em 19/11 — ou seja, menos de um mês depois da petição anterior – a sustentar que sequer a nulidade parcial do processo deveria ser reconhecida.

Na mesma direção foram os votos proferidos pelos desembargadores federais da 8ª Turma do TRF-4, que deixaram evidente, sobretudo pela assertividade do voto do relator, que estavam em posição de contestação ao entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal sobre a nulificação de processos criminais em que os corréus delatados não puderam falar após os corréu delatores.

Na verdade, todas as teses de nulidade apresentadas nas razões recursais foram afastadas. Ignorou-se o fato de que o mesmo Supremo Tribunal Federal havia provido recurso que interpusemos como advogados de Lula (Pet. 6.780) para reconhecer que as delações de ex-executivos da Odebrecht relacionadas ao “sítio de Atibaia” deveriam ser analisadas pela Justiça Federal de São Paulo.

Sergio Moro, que conduziu toda a fase de instrução do processo, recebeu mais uma vez a artificial etiqueta de juiz imparcial — como se naquela corte ninguém soubesse dos atos com manifesto viés político realizados pelo então magistrado para chegar ao cargo que atualmente ocupa e das mensagens reveladas pela Vaza Jato.

Por seu turno, a sentença proferida pela juíza federal Gabriela Hardt mediante “aproveitamento” da decisão proferida por Moro no “caso do tríplex” foi enaltecida — como se naquele tribunal não tivesse ocorrido dias antes um julgamento que anulou outra sentença da mesma magistrada sob o fundamento de que havia dúvida se “houve interceptação ilegal” e, ainda, de que seria inadmissível “reproduzir como seus, argumentos de terceiros, copiando peça processual sem indicação da fonte”.

Para ficar bem claro: o “aproveitamento” da sentença de Moro não foi indicado na decisão da magistrada, mas foi apontado por nós, da defesa de Lula, por meio de um laudo pericial documentoscópico elaborado pelo renomado Celso Del Picchia. O caso, portanto, era idêntico àquele julgado há poucos dias pela mesma Turma Julgadora.

Os fatos que estão devidamente registrados nos autos foram substituídos por narrativas ou leituras distorcidas, num autêntico terraplanismo jurídico. Para dar exemplos. Segundo o voto do relator, Moro grampeou os advogados de Lula por equívoco, pensando que a interceptação ocorria em um ramal de uma empresa de palestras de Lula.

A realidade que está comprovada nos autos é que o principal ramal do nosso escritório e acompanhou em tempo real nossas conversas e estratégias jurídicas por 23 dias — em um período em que o Supremo Tribunal Federal estava definindo se o caso de Lula seria conduzido pelo MPF de Curitiba ou pelo MP de São Paulo. Segundo o voto do relator, o advogado Rodrigo Tacla Durán não poderia ser ouvido, dentre outras coisas, porque seu endereço no exterior seria desconhecido.

A realidade que está comprovada nos autos é que a Lava Jato conhece o endereço de Tacla Durán e chegou a intimá-lo, por meio de Carta Rogatória, para comparecer a uma audiência na Espanha, que acabou não ocorrendo porque os procuradores brasileiros faltaram ao ato. Segundo o voto do relator, estaria comprovado que R$ 700 mil do “Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht” teriam sido destinados a uma das reformas realizadas no “sítio de Atibaia”. A realidade que está comprovada nos autos, por meio de um parecer técnico elaborado pelo perito Claudio Wagner — que identificou “o caminho do dinheiro” (“follow the money”) nas supostas cópias dos sistemas da Odebrecht —, é que esse valor foi sacado em benefício de um dos principais executivos daquele grupo empresarial.

No mérito, os votos se dedicaram a analisar se foram realizadas reformas no sítio. O problema é que, se a acusação é de corrupção passiva (CP, art. 317), a condenação somente seria possível se os julgadores tivessem conseguido demonstrar uma relação direta entre um ato que Lula poderia ter praticado nas suas atribuições de presidente da República entre 2003 e 2010 (o ato de ofício) e o recebimento de uma vantagem indevida. Ou seja, teriam que evidenciar a ocorrência do quid pro quo.

Nenhum voto, porém, evidenciou a ocorrência dessa relação de troca — simplesmente porque ela não existiu. A despeito disso, não apenas mantiveram a condenação pelo citado crime, como ainda aplicaram causa de aumento de pena que pressupõe a efetiva realização do ato de ofício envolvido na suposta conduta delituosa (CP, art. 317, § 1º).

Também foi mantida a condenação de Lula pelo crime de lavagem de dinheiro embora os votos proferidos não tenham apontado qualquer conduta do ex-presidente para dissimular o uso de valores provenientes de ilícitos, tampouco o seu conhecimento sobre qualquer uso de dinheiro sujo.

Não bastassem tais problemas, a condenação proferida pelo TRF-4 é, mais uma vez, incompatível com a própria acusação formalizada pelo Ministério Público Federal contra Lula — sobre a qual ele apresentou sua defesa. Diz a denúncia que Lula teria recebido vantagens indevidas provenientes de oito contratos específicos firmados pela Petrobras, por meio de reformas realizadas em um sítio do qual ele seria o “proprietário de fato”. O procurador regional da República presente na sessão de julgamento reconheceu que o sítio não é de Lula. E o voto do relator, acompanhado pelos demais desembargadores, reconheceu que não é possível identificar a destinação de valores de contratos da Petrobras para Lula ou mesmo qualquer atuação direta do ex-presidente em relação a essas avenças.

Na falta de elementos jurídicos para manter a condenação de Lula, os julgadores abusaram dos argumentos políticos, seguindo a linha da sustentação oral do Ministério Público, reforçando o caráter ilegítimo dos processos contra o ex-presidente — que são apenas meios para a prática do lawfare contra o ex-presidente.

Todas essas distorções, que estão ligadas à própria credibilidade do sistema de Justiça, devem ser corrigidas pela hierarquia judiciária. Independentemente dos recursos que serão apresentados especificamente contra a decisão proferida ontem pelo TRF-4, a raiz dos males está na ausência de um julgamento justo, imparcial e independente para Lula, exatamente como apontamos no Habeas Corpus sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro que pende de julgamento na Suprema Corte.

Cristiano Zanin Martins é advogado de defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

*Artigo publicado originalmente no UOL

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