Denice Santiago: A estrela de Salvador

Nascida na periferia da capital baiana, a pré-candidata a prefeita de Salvador conta a sua trajetória e as origens de sua fortaleza

Da Redação, Agência Todas

Com seis anos de idade, Denice entra no ônibus, rumo à escola, em um dia chuvoso na periferia de Salvador. Da janela, vê sua mãe parada no ponto de ônibus, toda encharcada e com barro até a cintura. O ônibus sacoleja e se distancia aos poucos, enquanto o olhar obstinado e determinado daquela que ficou transmite a sensação de dever cumprido. “Ela não teve medo”, pensou a pequena Denice. 

Nesse dia, a casa da família amanheceu alagada. Dona Cleonice, serenamente, acordou as crianças que ficavam na parte de baixo, levou todas para a parte de cima, trocou a roupa, deu café da manhã, e levou no braço um a um dos cinco filhos, de casa até o ponto de ônibus para não perderem a escola. 

Denice Santiago é a terceira de uma família de cinco filhos, nascida na periferia de Salvador, Bahia, no bairro São Gonçalo do Retiro. Ela dividiu a vida em três bairros: o de origem, Barros Reis e Cabula, onde construiu suas amizades, pariu seu filho e o cria até hoje. 

Filha de Doberval Rosario, o homem mais inteligente que conhece, embora tenha completado até a quarta série; e filha de Cleonice Rosario, a mulher mais forte e determinada que já cruzou por sua existência; é assim que a pré-candidata a prefeita de Salvador define as raízes e a origem da própria força. 

Foi com a quarta filha, recém-nascida nos braços, que a mãe de Denice voltou para a escola e concluiu o Ensino Fundamental II. O motivo? Não conseguia mais acompanhar os deveres da escola das mais velhas — tão determinada em seu projeto de vida de fazer o acesso à educação a melhoria da qualidade de vida de seus frutos.  

 

Família de Denice, bairro São Gonçalo do Retiro, periferia de Salvador. 1983

 

Estudante de escola pública, bolsista de escola particular, Denice ingressa na Polícia Militar da Bahia aos 18 anos. Ela é a primeira turma de sargento mulheres da PM. Hoje é major, formada em psicologia, mestre em desenvolvimento territorial e gestão social, especializada em direitos humanos e, agora, doutoranda do núcleo de estudos interdisciplinares de mulheres, gênero e feminismo da universidade federal da Bahia. Naquele dia, a pequena Denice não apenas rumou pelo itinerário do ônibus até a escola, mas também começou a trilhar obstinadamente uma trajetória de lutas e conquistas pelos direitos das mulheres.  

Responsável pela Ronda Maria da Penha, em Salvador, o projeto ganhou o selo de práticas inovadoras pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sendo a primeira PM do país a receber esta premiação em 2017. No mesmo ano, por indicação da senadora Lídice da Mata, foi premiada no Senado e com o prêmio  Bertha Lutz, única PM do país a receber. Além do prêmio Cláudia, na categoria políticas públicas.

 

 “O que você está fazendo com a minha filha?”

 

Como tantas mulheres dessa geração, Denice é filha de uma feminista, mas que não necessariamente se apropria dessa alcunha. Desde pequena, dona Cleonice dizia: “primeiro vai estudar, trabalhar, ter sua casa, ter seu carro, para depois pensar em casa, pensar em homem, minha filha. Porque se o homem não prestar, você manda embora e a casa é sua. Mulher não pode depender de homem”. O que a mãe de Denice dizia, naquela época, a partir da vivência dela, é o que hoje a gente chama de “autonomia”. Mas dona Cleonice deu muito mais do que isso. 

“Ela me empoderou, me fortaleceu e não me limitou a casamentos, que era a prática da época. Ela me deu a certeza que eu não tinha limitação cognitiva, nem psicológica, portanto seria capaz de aprender qualquer coisa, tal e qual homens”. 

Essa certeza, contudo, foi construída à base da enorme capacidade dessa mulher de 1,60m de se agigantar para defender suas crias — de todo e qualquer tipo de preconceito ou discriminação. 

Quando Denice tinha 4 anos, sua mãe estava grávida de sete meses. Brincando com seus irmãos, ela caiu e quebrou o braço. Lá foi Dona Cleonice pegar o ônibus com a filha nos braços e a outra na barriga. Por conta da gravidez, ela não pôde entrar na sala de raio-x. Quando o auxiliar foi colocar o braço da pequena na máquina, Denice soltou um grito de dor. 

“Eis que minha mãe surge, parecendo o mestre Xao-Lin, dando chute na porta, abriu a porta de qualquer jeito e gritou ‘O que é que você está fazendo com a minha filha?’.

Denice e sua mãe, Cleonice Rosario

 

Cuidar de quem mais precisa

Não há uma só lembrança da infância de Denice em que esteja apenas ela e os irmãos. A sua casa era sempre repleta de gente e seu pai ajudava diversas pessoas da comunidade — com o mesmo amor e carinho que cuidava dos próprios filhos. Seu pai, quando podia, pagava escola, transporte e convencia as pessoas a trilharem caminhos melhores para a própria vida. Com isso, ela aprendeu em casa que o mais importante na vida é cuidar das pessoas.

Foi o reflexo desse olhar generoso, acolhedor e solidário da própria família que ela enxergou, na prática, no projeto político do Partido dos Trabalhadores. Ao completar 16 anos, ela caminhou três quilômetros para tirar o próprio título de eleitor, porque já tinha candidato certo: presidente Lula. 

Apesar da preferência eleitoral, ela não tinha como foco ingressar na política partidária. Com a experiência da Ronda Maria da Penha e o convite para atuar mais diretamente na política, Denice viu a possibilidade de ampliar as transformações na vida das mulheres que poderiam ir além daquelas atendidas pelo programa. Agora, é um projeto de vida. 

 

 

Quando eu trabalhei no governo Wagner [ex-governador da Bahia], na secretaria de política para as mulheres, eu pude ver como era a atuação desse partido que tanto se assemelhava à minha família, tanto se assemelhava àquilo que eu acredito de vida. Essa inversão de prioridades e de pensar a partir das pessoas que precisam, e não das pessoas que visam lucrar em cima das outras. De atuar para realmente mudar a vida das pessoas e não oferecer ajudas pontuais que geram dependência. Isso me foi muito caro e valioso ver dentro do PT.

 

Ronda Maria da Penha

Em 2006, Denice Santiago e Cláudia Mara criaram o primeiro, e até hoje único, núcleo de gênero para debater questões femininas dentro da PM —  o Centro “Maria Felipa”. Ele nasceu no mesmo ano da Lei da Maria da Penha, e Denice passa a ser representante da corporação nas reuniões que pactuavam, junto com a rede sócio-assistencial, as ações de proteção às mulheres em situação de violência doméstica. 

A partir do contato com a experiência pioneira do Rio Grande do Sul, ela entrega em 2015 a primeira Ronda na cidade de Salvador. Hoje, já funciona em outras 18 cidades. Trata-se de uma unidade especializada da PM que tem como missão proteger mulheres em situação de violência doméstica e familiar com medida protetiva de urgência.

“A Ronda não atua apenas no combate, porque prender é fácil. Está comprovado que pouco ou nada adianta encarcerar seres humanos, porque não modifica o comportamento. O homem, mesmo se preso, é possível que se relacione com outras mulheres utilizando a violência como instrumento. E é possível que essa mulher, se não tiver apoio e não for ressignificada, continue convivendo com relacionamentos abusivos”, Denice. 

O foco nas ações de prevenção são de práticas que dialogam com homens, mulheres, adolescentes, crianças e idosos; práticas lúdicas; diálogos de homens com homens sobre o fim da violência contra a mulher, além de palestras, campanhas de conscientização entre outras diversas iniciativas são o carro chefe da atuação de Denice. O exemplo da Bahia serviu para formar outras sete rondas no país inteiro, além de  consultoria na Colômbia e intercâmbio de informações com a polícia metropolitana de Londres. 

Em sua trajetória na Ronda Maria da Penha, a major Denice Santiago já teve que lidar com situações de mulheres que tiveram a mão decepada, o rosto queimado com ácido, duas pernas decepadas. O seu lema é que todo tipo de violência deve gerar indignação, desde a ameaça aparentemente mais banal até casos extremos como esses. Mas conquista mesmo, conta Santiago, é quando Denice consegue fazer com que a mulher saia da situação de violência antes mesmo de sofrê-la. 

Eu não atuo por mais delegacias, mais rondas, porque significa dizer que a violência continua. Eu atuo para proteger as mulheres, melhorar o acesso e a qualidade do serviço para garantir que a denúncia seja feita e tenha consequências. Mas a minha meta mesmo é por uma profunda transformação cultural que passa pela educação, não apenas formal, mas social também”.

 

Prêmio Mulher Cidadã Bertha Lutz em 2017, senado federal. Denice e seu filho João Paulo.

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