É importante ver a sociedade por uma lente negra, diz Opal Tometi

Em entrevista ao Brasil de Fato, fundadora do Black Lives Matter analisa a conjuntura política e racial nos EUA e o racismo como legado global do colonialismo

Wikimedia Commons

Opal Tometi é uma das fundadoras do movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”), que surgiu nos Estados Unidos há seis anos para combater a violência sofrida pela população negra, o racismo sistêmico das forças policiais, a seletividade penal e a discriminação racial. Filha de imigrantes nigerianos, militante dos direitos humanos e escritora, ela hoje é diretora executiva da Aliança Negra por uma Imigração Justa (Baji, na sigla em inglês).

Em visita ao Brasil, Tometi conversou com o Brasil de Fato sobre o que motiva o surgimento de movimentos como o Black Lives Matter ao redor do mundo, a conjuntura política e racial nos Estados Unidos, o racismo como legado global do colonialismo e as políticas de combate à imigração do governo Donald Trump. A ativista também interpreta que, para fazer frente ao conservadorismo e ao supremacismo branco nas eleições nos EUA em 2020, as forças progressistas do país terão de se unir e escutar com seriedade as mulheres negras.

Leia a entrevista

 

Brasil de Fato: Como você avalia esses seis anos de Black Lives Matter, desde quando era chamado de “renascimento do ativismo negro”?

É uma grande motivação ter tido seis anos de movimento forte. Acho que, quando começamos o Black Lives Matter, sabíamos que queríamos que fosse uma coisa grande, sabíamos que faríamos uma coisa que fizesse o país avançar e criasse uma tensão. Nós sabíamos há muito tempo que havia um silêncio em torno da questão do racismo contra pessoas negras, e não aguentávamos mais. Estávamos cansados da forma como as pessoas e as vidas negras eram desrespeitadas. Estávamos cansados da forma como os políticos e aqueles que estão no poder agiam como se nada estivesse acontecendo nas nossas comunidades.

Na criação do Black Lives Matter, nós sabíamos que precisava ser uma coisa grande, sabíamos que deveria ser uma coisa que fosse feita sem pedir licença e inclusiva, de forma radical. Embora o Black Lives Matter tenha começado por causa dos assassinatos de pessoas negras desarmadas – o que é terrível, injusto e assustador –, também sabíamos que a qualidade de vida que as pessoas negras já tinham era tão limitada que precisávamos chamar atenção para isso também.

Quando se olha para questões como moradia, alto índice de desemprego, educação precarizada, o sistema de saúde e os impactos disso para as pessoas negras, sempre ficamos com os piores indicadores. Sempre estamos por último, na base, sempre com um desempenho ruim e sempre ficamos com as migalhas. Nós cansamos disso.

O Black Lives Matter foi criado para acender a faísca de um certo estranhamento e um despertar, mas também se desenvolveu ao longo dos anos para construir poder. Comitês se desenvolveram, outras organizações que já existiam decidiram adotar políticas mais inclusivas e pautas mais radicais, garantindo a inclusão das pessoas negras e as experiências delas em seus programas, sem pedir desculpa por ter uma lente e uma pauta de justiça racial.

Para mim, isso é muito poderoso, e é o que vejo que aconteceu nos últimos seis anos.

Existe uma noção de que a face mais evidente do racismo institucional é a violência policial, mas também há outras expressões do racismo. Recentemente, por exemplo, li uma matéria sobre famílias negras que estão perdendo suas terras nos Estados Unidos e ficando cada vez mais pobres. Quais são outros temas prioritários para o movimento negro para além da violência policial?

Há uma série de questões afetam as pessoas negras. Acho que é muito importante saber, por exemplo, que as pessoas negras estão preocupadas com a estagnação de seus salários no mercado de trabalho – ou mesmo a possibilidade de conseguir emprego.

Vimos por muito tempo altos índices de desemprego na comunidade negra, por uma série de motivos. Um dos principais é o ataque aos sindicatos. Os sindicatos representaram uma das principais ferramentas para a população negra garantir salários justos, condições de trabalho dignas, direito a férias, licença-maternidade e todos os direitos básicos que hoje conhecemos, mas foram conquistados pela luta dos sindicatos. Eles também lutaram por empregos inclusivos onde as pessoas negras pudessem trabalhar com dignidade e igualdade salarial. Essa é uma das principais preocupações de nossa comunidade: a possibilidade de conseguir emprego e receber salários justos é crucial.

Também nos preocupamos com a saúde de nossas comunidades. São pessoas demais entre nós que vão à falência porque não têm condições de pagar as despesas médicas, porque a forma como o sistema de saúde dos Estados Unidos foi construído é absurda, deplorável. Tem gente literalmente perdendo a casa, perdendo tudo por causa de um problema de saúde. A verdade é que, muitas vezes, o problema de saúde é resultado das nossas condições, do ambiente onde crescemos.

As pessoas estão sofrendo todo tipo de impacto na saúde, resultado da disparidade, que não deveriam sofrer. E isso também vem com mais um custo: o econômico. Sem condições de arcar com esses custos, as pessoas estão vivendo com doenças e tendo morte prematura também.

Nossas comunidades estão preocupadas com esses outros problemas que muitas vezes acabam se perdendo no debate e na mídia, porque querem fazer parecer que as pessoas negras só se importam com uma coisa, quando nossas preocupações são diversas.

Muito da minha atuação é com imigrantes e refugiados negros, vindos da África, do Caribe e de várias regiões do continente americano. São pessoas negras que estão tentando transitar pelo sistema de imigração [dos Estados Unidos], e esse sistema diz: “Não gostamos de negros, não queremos vocês.” E dificulta demais o status de imigração de pessoas negras e mesmo a entrada no país, para começo de conversa, para conseguir um visto. Ou, para quem tenta buscar asilo, temos o regime de [Donald] Trump que diz: “Essas pessoas não precisam de asilo, elas não merecem”. E tentam forçá-las a voltar para outros países.

É importante adotar uma lente negra para olhar a sociedade, para enxergarmos a situação das pessoas negras, e também como o racismo faz com que as pessoas negras tenham mais dificuldade de acessar os serviços, o apoio e os recursos que são devidos a elas.

Confira a íntegra da entrevista

 

Por Brasil de Fato

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