Enquanto a fome aumenta, Bolsonaro reativa a “indústria da seca”
Uso eleitoreiro da distribuição de cisternas, que havia sido superado nos governos Lula e Dilma, está de volta ao semiárido. PT propõe nova política de segurança hídrica
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Os três anos de absoluta negligência do desgoverno Bolsonaro com as políticas públicas de convivência com a estiagem apontam para um objetivo: a reativação da “indústria da seca” com fins eleitoreiros em 2022. A suspeita circula entre moradores de Petrolina (PE), onde cisternas, caixas-d’água, e implementos agrícolas se amontoam em depósitos da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).
Um repórter da Folha de São Paulo utilizou um drone para visualizar dezenas de cisternas de polietileno, tubos e até tratores, retroescavadeiras e máquinas como arados. “Tem muita coisa parada aí, muita coisa que era para estar nas comunidades, nas associações”, acusou o agricultor Pedro Ronilton Alencar de Sousa.
“Pela cor do material, isso aí já está exposto há mais de um ano. Há lugares como represas, açudes, se isso fosse para as comunidades dava para fazer uma adutora para suprir um vilarejo ou as casas mais próximas”, lamentou o lavrador, que vive próximo ao projeto de irrigação Pontal Sul.
As lideranças rurais da região, conta a matéria, afirmam que os equipamentos saem dos depósitos de forma pontual, destinados a pessoas e associações escolhidas a dedo por “padrinhos” das emendas parlamentares que financiaram a compra dos bens. Essa “politicagem”, dizem eles, contaminou a distribuição dos equipamentos, que não atende a quem mais precisa, mas aos apadrinhados dos políticos bolsonaristas. O resultado é o excesso de cisternas para aliados e escassez para quem não adere ao jogo.
Entre 2019 e 2020, a superintendência regional da Codevasf em Petrolina gastou R$ 490 milhões oriundos de emendas parlamentares. Relatório fornecido pelo órgão à Câmara Municipal de Petrolina, por solicitação do vereador Gilmar dos Santos Pereira (PT), aponta que 70% das verbas foram destinadas pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).
O relatório da Codevasf de Petrolina sustenta que, no biênio 2019/2020, a regional usou 28% dos recursos provenientes de emendas para compra de máquinas e equipamentos, 9% para perfuração e instalação de poços e 7% para recuperação e implantação de reservatórios hídricos, o que corresponde a um total de R$ 215 milhões.
“Pelo menos 350 mil famílias do semiárido ainda precisam desses reservatórios para armazenar água para o consumo básico. Em 2020, houve redução de 76% na construção das cisternas. Este ano, até agosto, foram construídas menos de 3 mil. Um desastre”, criticou o senador Humberto Costa (PT-PE) em seu perfil no Twitter.
Pelo menos 350 mil famílias do semiárido ainda precisam desses reservatórios para armazenar água para o consumo básico. Em 2020, houve redução de 76% na construção das cisternas. Este ano, até agosto, foram construídas menos de 3 mil. Um desastre. pic.twitter.com/8IcO23naO7
— Humberto Costa (@senadorhumberto) December 7, 2021
Programa de Cisternas premiado mundialmente
A reativação da “indústria da seca” – instrumento de alguns, em detrimento de muitos, para aumento do poder econômico, político ou social de poucos – ocorre simultaneamente ao desmonte das políticas públicas de enfrentamento da estiagem. Em 13 anos de governos do PT, 5 milhões de pessoas foram beneficiadas com 1,3 milhão de reservatórios, o que desmontou os esquemas da “indústria da seca”.
Referências mundiais, os programas das gestões petistas receberam distinções internacionais como o Prêmio Sementes 2009, da Organização das Nações Unidas (ONU). Outra premiação foi o ‘Future Policy Award’ (Política para o Futuro), concedida em 2017 pela World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.
Criado em 2003 por Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de matriz desenvolvida pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), o Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC) possuía regras gerais e fiscalização social por conselhos municipais, associações e ONGs.
A participação social foi mantida por Dilma em 2013, quando ela instituiu o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água (Programa Cisternas), mas as organizações sociais foram alijadas do processo desde o golpe de 2016. A situação se agrava agora sob Jair Bolsonaro, que caminha para fechar o pior ano de implantação de cisternas, mais uma vez.
Em 2020, apenas 8.310 cisternas foram destinadas ao semiárido. O número é 73% menor que o de 2019, quando foram entregues 30.583 equipamentos, até então a quantidade mais baixa em um ano. A queda chega a 94,5% em comparação a 2014, quando foram entregues 149 mil cisternas. O ritmo foi caindo nos anos seguintes, até alcançar em 2020 o recorde negativo, que deve ser batido este ano.
Os recursos aplicados em 2019 e 2020 vieram de outros anos fiscais, e não há nenhum novo investimento desde o início do desgoverno Bolsonaro, denunciou Alexandre Henrique Pires, coordenador executivo da ASA, ao portal UOL. Para ele, ” o que o governo federal está fazendo é uma política genocida”. “Isso é voltar a cenários que lembram o da década de 1980, quando pouco se olhava para o povo do semiárido.”
A situação foi mencionada no documento Carta de Brasília, emitido em meados de novembro pela Câmara Técnica da Agricultura Familiar do Consórcio Nordeste. Os representantes dos estados manifestaram “perplexidade” com a “ausência de iniciativas e a indiferença do Governo Federal em relação à atual estiagem e seus efeitos danosos”.
Os gestores destacaram dados do Monitor de Secas, da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Os números apontam mais de 600 municípios da região em situação de calamidade, seca extrema ou moderada, com perda de safra acima de 50% e com demanda generalizada por abastecimento de água.
“A situação ganha contornos mais graves em função de um expressivo desinvestimento nas principais ações do governo federal, fundamentais para ampliar a resiliência das comunidades locais, mantendo sua capacidade produtiva por meio da adoção de práticas sustentáveis e tecnologias sociais adaptadas às condições climáticas do semiárido”, afirmam os gestores estaduais no texto.
Conforme a carta, sofrem com o descaso bolsonarista programas de implantação de equipamentos e de tecnologia social de acesso à água, de execução de obras para oferta de água e de assistência técnica e extensão rural (ATER). Políticas públicas de aquisição e distribuição de alimentos da agricultura familiar para promoção da segurança alimentar e nutricional também estão à míngua de recursos federais.
“A gente vê progressivamente uma realidade muito grave voltar para o semiárido: a realidade da fome. São políticas de desenvolvimento que garantem segurança hídrica e alimentar para as famílias. No momento em que retira isso, a gente percebe que a fome volta, principalmente para comunidades mais vulneráveis, que estão dispersas”, aponta Valquíria Lima, coordenadora executiva da ASA em Minas Gerais.
PT propõe renovação das políticas públicas de enfrentamento à seca
Em seu Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, lançado em 2020, o Partido dos Trabalhadores retoma a discussão sobre o futuro da segurança hídrica no Brasil. A questão, fundamental, deve integrar procedimentos de qualidade, uso racional, gestão democrática, obras de infraestrutura sustentáveis, soluções baseadas na natureza e o reconhecimento científico das alterações do ciclo hidrológico causadas pelo aquecimento global.
Conforme o documento, a política para as águas deve atender a diretrizes como o reconhecimento do direito universal do acesso à água e saneamento, e o ambiente natural deve ser reconhecido como usuário legítimo de água. Medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas devem ser estratégicas e baseadas na gestão da água e do solo, considerando o viés territorial, com instrumentos de manejo de soluções integrais, que influenciam a dinâmica territorial e a mobilidade demográfica.
Além disso, a fixação das populações urbanas e rurais nas áreas de influência do fenômeno climático recorrente de estiagem deverá considerar a sua vocação e capacidade de suporte. Portanto, a implantação da Política Nacional de Ordenamento Territorial é fundamental.
É preciso ainda retomar o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, construído de forma participativa e transversal e propondo medidas adequadas ao combate à desertificação e à mitigação dos efeitos da seca em seu território. A gestão dos recursos hídricos deve ter abordagem urbana e rural integrada, assim como o planejamento urbano com os planos de recursos hídricos.
A restauração de ecossistemas (terrestres e aquáticos/marinhos) favorece o fornecimento de serviços ambientais essenciais para garantir a alimentação das populações humanas, o fornecimento de água, a manutenção e a proteção da biodiversidade. Do ponto de vista social e econômico, é fundamental para conter riscos de inundações, gerar renda para populações humanas e minimizar os efeitos climáticos.
Como já foi feito nos 13 anos de PT no poder, tudo deve ser definido a partir do fortalecimento técnico e político dos órgãos colegiados de gestão de recursos hídricos e da efetiva interlocução e articulação com organizações da sociedade civil.
Da Redação, com informações do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil.