“Escolhi Esperar” | Mobilização adia projeto ultraconservador. Entenda o que está em jogo
Projeto de Lei conhecido como “Escolhi Esperar” retira direitos, desinforma e prega abstinência sexual. Conversamos com a vereadora Juliana Cardoso e a organização Caos.A para entender o tipo de ataque
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Ana Clara, Elas Por Elas
Nessa quinta-feira, 17, a vereadora Juliana Cardoso, movimentos feministas e a oposição de esquerda na Câmara Municipal de São Paulo realizaram um protesto em frente à instituição para impedir a aprovação do projeto de lei “Escolhi Esperar”.
De autoria do vereador bolsonarista e ultraconservador Rinaldi Digilio, a iniciativa cria programa permanente nas escolas e nas Unidades Básicas de Saúde que iguala “abstinência” a métodos contraceptivos. O nome “Escolhi Esperar” é exatamente o mesmo do movimento religioso que propõe aos adolescentes esperarem até o casamento para ter relações sexuais.
A perspectiva deu origem a um instituto com o mesmo nome fundado pelo pastor Nelson Neto Júnior. Há dois anos, Neto Júnior se tornou também interlocutor do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Na pasta, o pastor atua para a formulação de políticas públicas que preconizam a abstinência sexual como “educação sexual”.
“Esse projeto ataca o Estado laico, cuja função é informar e proteger crianças e adolescentes de violência sexual. Gravidez precoce não é uma questão de ‘escolha’, na maioria das vezes é fruto de abuso que, de acordo com todas as estatísticas, acontece dentro de casa e, geralmente, pelo pai ou padrasto. Educação sexual é proteger a criança e o jovem de todo tipo de violência e dar condições para que eles possam denunciar”, reforça a vereadora Juliana Cardoso.
No Brasil, em 2019, pelos menos 40% dos crimes de violência sexual infantil foram cometidos por pais ou padrastos. De cada dez estupros, oito ocorrem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens. A maioria das mulheres violadas (50,9%) são negras.
De acordo com a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Cristina Neme, “o perfil do agressor é de uma pessoa muito próxima da vítima, muitas vezes seu familiar”, como pai, avô e padrasto conforme identificado em outras edições do anuário. Para a pesquisadora, a reincidência do perfil nesse tip de violência indica que “tem algo estrutural nesse fenômeno”. Ela avalia que a mudança de comportamento dependerá de campanhas de educação sexual e que o dano exige mais assistência e atendimento integral a vítimas e famílias.
A atuação do mandato da vereadora na Comissão de Saúde foi fundamental para que o projeto fosse adiado e ganhasse mais fôlego e visibilidade na opinião pública. Na Comissão, a vereadora pediu vistas do projeto, no entanto a iniciativa foi negada, alegando que estava fora do prazo, mas não estava. A denúncia da manobra regimental contribuiu para o adiamento da votação do projeto.
“Eles mudaram o nome para ‘escolhi planejar’, mas o teor ultraconservador permanece, retirando direitos fundamentais de crianças e adolescentes, principalmente das meninas. Existem vários projetos de conscientização nesse sentido na cidade, que articula unidades de saúde e escola. O que eles querem é empurrar uma visão religiosa e angariar fundos para o próprio instituto. Seguiremos firmes para impedir esse retrocesso que tenta empurrar para debaixo do tapete a violência sofrida por crianças dentro de casa”, denunciou Juliana Cardoso.
Educação Sexual é Segurança Íntima – uma conversa com a Caos.A
Ana Sharp é feminista, professora, artista, mãe e uma das fundadoras da caos.A – Educação Sexual e outros direitos. Conversamos com ela para entender, a partir da sociedade civil, as principais implicações que o projeto de lei traz no sentido do retrocesso na garantia de direitos fundamentais para crianças e adolescentes.
1) Por que “Escolhi Esperar” retrocede na questão de direitos de crianças e adolescentes?
AS – Porque desconsidera o direito à informação e à educação integral, que inclui a educação sexual. Nós, da caos.A – educação sexual e outros direitos, criamos um outro termo para que as famílias percebam do que se trata a educação sexual na infância: segurança intima. Sem informação as crianças e jovens não têm como se defender de abusos e violências sexuais, além de terem tolhido o seu direito a conhecer o próprio corpo, de maneira adequada para cada faixa etária
2) Qual o principal efeito desse projeto na vida das meninas e na compreensão do que é violência e abuso sexual?
Primeiro que esse projeto é de fato voltado para as meninas. É mais uma ferramenta de controle do corpo das meninas e das mulheres, a partir do momento que não promove a consciência e entendimento sobre seu corpo, vontades e direitos. Segundo que a própria educação sexual já faz esse papel, de ensinar sobre o respeito a si e aos outros e esperar o melhor momento para iniciar a vida sexual a partir de critérios próprios. Esse projeto propõe esperar. Esperar o que? Uma idade específica? O casamento? O aval da família? Da igreja? E por último só com informação as crianças entendem que estão passando por violência e abuso sexual. Muitas meninas só compreendem isso na escola quando são ensinadas do que é abuso, violência e consentimento. Sem esses ensinamentos, as crianças, e na maioria as meninas, ficam ainda mais vulneráveis e em risco.
3) O que é possível fazer enquanto sociedade civil para evitar retrocessos como esse?
A sociedade civil precisa se posicionar, pressionar cada vez mais as casas legislativas e exigir o cumprimento do Estado laico. Esses retrocessos são, na sua maioria, propostos por parlamentares ligados à igrejas evangélicas, com base em preceitos religiosos ultraconservadores, e precisamos lutar contra isso o quanto antes, pois o que vemos é o avanço dessas pautas.