Fernando Haddad: Militares

“Forças Armadas ainda não assimilaram plenamente o conceito de soberania popular”, afirma o ex-ministro da Educação em sua coluna na Folha de S. Paulo

Joka Madruga

Quem quer que se interesse por política deveria ler o livro “Forças Armadas e Política no Brasil” (2005), de José Murilo de Carvalho, relançado em 2019 com textos inéditos.

O autor nota que cinco das nossas sete Constituições, inclusive a atual, atribuem papel político aos militares, como se a República precisasse de uma bengala e a democracia não pudesse resolver os problemas nacionais nos seus próprios termos.

Um novo capítulo relembra postagem do general Villas Bôas às vésperas do julgamento pelo STF de pedido de habeas corpus a favor de Lula. Embora a mensagem do general falasse de respeito à Constituição, na realidade a agredia, pois pressionava um poder da República a contrariá-la.

O livro recupera a participação política dos militares desde a proclamação da República (1889), passando pela Revolução de 1930, e o poder desestabilizador do tenentismo nesses dois episódios.

Retoma, também, o papel que os militares desempenharam nos golpes de Estado de 1937 e 1964 que interromperam o calendário eleitoral, invocando o fantasma do comunismo e impondo a volta ao regime autoritário.

Depois da leitura, impossível não conjecturar sobre as semelhanças e diferenças com o momento atual. Em relação às semelhanças, há dois paralelos inevitáveis.

Em primeiro lugar, assim como Getúlio (quando os militares lhe retiraram o apoio) e Jango, Lula parece ter sido vítima de um sentimento antipopular refratário à promoção da incorporação das massas via participação no mercado e na política.

Soberania popular é um conceito que não foi plenamente assimilado pelos militares.

Em segundo, parece que tensões corporativas, como as que precederam 1889 e 1930, originando movimentos ostensivos das briosas Forças Armadas, parecem ter sido reacendidos após a instalação da Comissão da Verdade.

Quanto às diferenças, vejo duas importantes.

Em primeiro lugar, a instrumentalização do Poder Judiciário com fins político-partidários. As reportagens publicadas por esta Folha em parceria com The Intercept não deixam dúvidas sobre a atuação ilegal e parcial de Moro e Dallagnol (Batman e Robin, na opinião do general Augusto Heleno) na condução da Lava Jato.

Em segundo lugar, a deturpação do conceito de soberania nacional, reduzida à ideia de defesa do território. Os militares parecem totalmente entregues a agenda ultraliberal de Guedes, que anunciou a pretensão de vender todas as empresas estatais brasileiras e de abrir unilateralmente o nosso mercado.

Pelo jeito, restará ao povo deste novo protetorado americano vender bijuterias de nióbio em Angra dos Reis.

Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.

Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo

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