Le Monde faz autocrítica sobre cobertura do golpe no Brasil

Jornal analisou questionamentos dos leitores, admite que ignorou corrupção entre os congressistas favoráveis ao impeachment e que deveria ter enviado correspondente

Reprodução Le Monde

O jornal “Le Monde” publicou texto neste sábado (23) intitulado “O Le Monde foi parcial?”, em que analisa o questionamento de leitores sobre um primeiro editorial publicado em 31 de março chamado “Brasil: isto não é um golpe de Estado”.

O novo artigo, assinado pelo mediador Franck Nouchi, diz que o jornal não lembrou que “entre os apoiadores da destituição de Rousseff, muitos estão implicados em casos de corrupção, a começar por Eduardo Cunha, o atual presidente da Câmara dos Deputados”. Também considera que, em um jornal ideal, teriam enviado um repórter ao país para ajudar a “descrever, ademais, as fraturas sociais reveladas durante essa crise”. “O país do futuro ainda não terminou como o espectro de um retorno ao passado”, diz o jornal.

Desde o início do processo de impeachment de Dilma, outros diversos veículos internacionais denunciaram o golpe em curso no Brasil e manifestaram preocupação com a condução do caso por Eduardo Cunha (PMDB).

Leia o texto original aqui. A seguir, o texto traduzido por Mariana Guanabara:

Jornal francês em editorial – Brasil: o “Le Monde” foi parcial?
Por Franck Nouchi (mediador do Le Monde)

O jornal Le Monde vê de maneira distorcida a crise política que atravessa o Brasil atualmente? Ao ler as correspondências das últimas semanas, eu admito que, por um instante, me fiz essa questão. Brasileiros vivendo na França ou no Brasil, franceses vivendo no Brasil: vocês são muitos a nos interpelar nesse sentido. Ao mesmo tempo, é verdade, outros leitores – menos numerosos – nos culpam de defender cegamente as posições do Partido dos Trabalhadores (PT).

Declarando-se “conscientes do impacto do Le Monde na opinião pública”, quatro leitoras brasileiras residindo em Paris, Stella Bierrenbach, Simone Esmanhotto, Helena Romanach e Adriana Silva, nos interpelaram em uma longa carta muito argumentada: “O Le Monde tem seus motivos para escolher a parcialidade para abordar a crise política brasileira? Há uma razão pela qual o Le Monde decidiu não fazer questionamentos, não abordar novos ângulos, e não escutar as vozes em contraponto ao coro monocórdico das mídias brasileiras?”

Um grupo de “exilados ou refugiados” brasileiros que vivem na França e na Bélgica tem a mesma opinião sobre o tratamento da crise brasileira pela imprensa francesa: “Praticamente todos os artigos, que além de um tom de zombaria, de desprezo e de misoginia (Dilma e seu “mentor” Lula, “gorda dura”, Lula em “missão de sedução”), retomam em coro a grande mídia brasileira como um discurso da acusação contra a Presidenta Dilma Rousseff e o ex-Presidente Lula. (…) Nós lamentamos a ausência de reportagens mais equilibradas, para saber por exemplo por que tantas personalidades como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Leonardo Boff, Luís Carlos Barreto se engajam pela defesa da continuidade democrática”.

Um tratamento amplo e justo

Christian Colas (Paris), por sua parte, dá crédito ao Monde por ter dado atenção ao fato de que “o motivo do pedido da destituição de Dilma é ilusório”. Ele nos congratula por termos relembrado que os responsáveis políticos que vão substituir Dilma durante seu afastamento provisório “são acusados de diversas malversações e de fraudes fiscais muito mais graves do que aquelas de que a Presidenta é acusada”. Por fim, ele ressalta que nós “tocamos o que está na base de tudo: um certo ódio de classe. Muitos da classe média brasileira guardam em seu imaginário um pensamento escravagista (a escravidão foi abolida há menos de cento e trinta anos, após quatro séculos de existência), e eis que dezenas de milhões daqueles que, a seus olhos, não deveriam deixar de ser marginalizados e de se beneficiar apenas de migalhas filantrópicas tiveram acesso, graças às políticas sociais de Lula, a uma cidadania de consumidores iguais a deles. Em última análise, Colas nos fez apenas uma crítica: não ter investigado “o engajamento de uma grande parte da mídia brasileira com a oligarquia do país”.

Eu reli os artigos do Le Monde consagrados a essa crise e discuti com Christophe Ayad e Jerome Gautheret – respectivamente, editor-chefe e editor-adjunto do serviço Internacional –, assim como com a nossa correspondente em São Paulo, Claire Gatinois. E eu não concordo com as críticas que nos foram direcionadas. Penso, ao contrário, que a manchete “Dilma Rousseff em turbulência, o Brasil em crise”, assim como as duas páginas inteiras e o editorial que a acompanhavam (Le Monde do dia 19 de abril) refletem a preocupação de abordar essa crise de forma ampla e justa.

No entanto, há um arrependimento: o editorial intitulado “Brasil: isto não é um golpe de Estado” (Le Monde do dia 31 de março), não foi suficientemente equilibrado. Em particular, ele não lembrava que, entre os apoiadores da destituição de Rousseff, muitos estão implicados em casos de corrupção, a começar por Eduardo Cunha, o atual presidente da Câmara dos Deputados.

Além disso, é certo que nós não sublinhamos suficientemente a falta de pluralidade das mídias brasileiras. Em janeiro de 2013, no entanto, o Repórteres Sem Fronteiras havia dedicado um dossiê bastante completo ao que chamaram de “O país de trinta Berlusconis”. No Brasil, constatou o RSF, “os dez principais grupos econômicos, advindos do mesmo número de famílias, dividem ainda o mercado da comunicação de massa”.

Melhor cobrir as fraturas sociais?

Assim, em um Le Monde ideal, nós teríamos indubitavelmente devido enviar um repórter ao local, a fim de assistir nossa correspondente – esta tendo monopolizado a cobertura da crise brasileira –, de maneira a descrever, ademais, as fraturas sociais reveladas durante essa crise.

Em 1941, no livro O Brasil, País do futuro, Stefan Zweig descrevia assim seu país adotivo: ‘Alguém que acabou de fugir da absurda exaltação da Europa, saúda aqui a ausência completa de qualquer odiosidade na vida pública e particular, primeiramente como coisa inverossímil e depois como imenso benefício. (…) Aqui a política com todas as perfídias ainda não é o ponto cardeal da vida privada, não é o centro de todo o pensar e sentir**’.

Setenta e cinco anos mais tarde, fica claro constatar que esse “país do futuro” ainda não terminou como o espectro de um retorno ao passado.”

**N.T.: Ao invés de traduzir a partir da citação do jornalista, foi citado o texto original da tradução da obra feita por Odilon Gallotti

Da Redação da Agência PT de Notícias, com  tradução livre por Mariana Guanabara, realizada sem fins comerciais ou lucrativos

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