Lula: se preso incomodo muita gente, solto, vou incomodar muito mais

Na terceira parte da entrevista ao Sul21, ex-presidente destacou a militância: “O que eu acho que deixa eles mais nervosos é saber que eles não conseguem acabar com o PT

Guilherme Santos/Sul21

Na terceira e última parte da entrevista concedida ao Sul21, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala sobre o papel do racismo estrutural que marca a história brasileira na configuração da atual crise política e social que vive o país. “Não faz muito tempo que acabou a escravidão neste país. Ela ainda está arraigada na cabeça da elite brasileira. Ela ainda não se conforma de ver um negro dirigindo um carro. Só se for jogador de futebol”, afirma.

Lula também avalia a situação atual do PT, considerando tudo o que aconteceu nos últimos anos. “O que eu acho que deixa eles mais nervosos é saber que eles não conseguem acabar com o PT. Nós estamos apanhando desde 2005. Não é pouca coisa. Agora mesmo nas eleições de 2018, me tiraram da campanha e o Haddad teve 47 milhões de votos.  O PT vai ganhar e vai perder. Agora, pode ficar certo de uma coisa, o PT sempre estará no páreo”.

O ex-presidente também comenta as leituras que vem realizando na prisão, sugere livros, fala dos planos para um novo casamento e sobre o futuro: “A minha tarefa é não me deixar envelhecer com ódio. Todo mundo sabe que estou namorando e quero casar quando sair daqui. E quem quer casar não tem tempo de esmorecer. Quem está amando não tem tempo de ficar choramingando. O povo brasileiro merece o meu respeito. É por eles que estou resistindo. A minha vocação, meu filho, é lutar, do jeito que posso. Se isso incomoda alguém, paciência. Quando eu era pequeno, eu cantava: um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais. Então é o seguinte: se o Lula preso incomoda muita gente, pode ter certeza que, solto, vou incomodar muito mais”.

Sul21: O senhor afirmou que jamais havia imaginado que o Brasil chegasse à situação que está vivendo hoje. Como vê a possibilidade de reverter esse processo?

Lula: O Brasil, habitualmente, foi governado para 35% da população. O restante era número. Eu quis provar que era possível governar o Brasil para 100% da sociedade. O povo tem que acreditar nisso. Não é normal, não é bíblico, não é constitucional nem humanamente correto um cidadão comer dez pães por dia e outro cidadão passar dez dias sem comer nenhum. Todo mundo tem direito a tomar café de manhã, almoçar e jantar. Está na Constituição. Todo mundo tem direito de ter uma casinha, por mais humilde que seja. Isso está na Constituição. Todo mundo tem que ter oportunidade de estudar. Tá na Constituição. Então, quem quiser fazer uma revolução no Brasil, não precisa ler o Manifesto Comunista nem nenhuma cartilha trotskista. É só pegar a Constituição e saber que ela permite fazer o que precisa ser feito neste país.

Mas a história do Brasil é assim. Toda a vez que houve um começo de revolta ou de levante dos pobres, sufocaram. Aconteceu em Canudos, em Palmares, na Cabanagem…A Revolta dos Alfaiates, que eu estava vendo esses dias, foi poucos dias depois de Tiradentes. Mataram, enforcaram, esquartejaram e salgaram a carne do mesmo jeito porque as pessoas queriam viver melhor. Eles agora sofisticaram o método. Ao invés de matar e esquartejar, pegam o poder Judiciário, identificam quem está disposto e adotam um jeito de condenar via Justiça, mesmo que não tenha crime. É o que aconteceu comigo.

Sul21: Durante o seu governo muita gente começou a dizer que os aeroportos estavam se tornando rodoviárias, entre outras reclamações pela emergência dos pobres em lugares que até então não frequentavam. Qual a dimensão e gravidade, na sua opinião, do problema do racismo estrutural na sociedade brasileira?

Lula: Muito grande. Eu vivi isso a minha vida inteira. Achei que era uma coisa que a gente ia superar com o tempo. No meu governo, a gente criou ‘n’ condições para valorizar a questão de gênero, a questão LGBT, os quilombolas e assim por diante. Criamos políticas, mecanismos e conselhos para tratar desses temas. Mas é uma coisa que está arraigada na consciência das pessoas. O Jessé [Souza] costuma citar sempre a questão da escravidão. Não faz muito tempo que acabou a escravidão neste país. Ela ainda está arraigada na cabeça da elite brasileira. Ela ainda não se conforma de ver um negro dirigindo um carro. Só se for jogador de futebol. Ela parte do pressuposto de que um negro dirigindo um carro é ladrão. Ela não consegue ver uma menina negra que não seja empregada doméstica. Quando nós valorizamos o salário da doméstica, com décimo terceiro, carteira profissional e férias, isso foi uma afronta para a classe média que adorava chamar a empregada de secretária, sem que ela tivesse nenhum direito.

Eu costumo contar uma história. Uma vez fui jantar na casa de um cidadão num sábado. Eu não vou dizer o nome porque a pessoa já morreu. Eu fui na casa dele comer uma feijoada. Quando cheguei na casa dele, tinha umas 30 pessoas. Ele me levou na cozinha e me apresentou uma senhora, uma negra de uns 60 anos bem forte e simpatissíssima, que estava cozinhando um tacho de feijoada. Ele disse pra mim: Olha, Lula, essa daqui é mãe dos meus filhos. Ela criou minha filha, criou meu filho, cuida da casa, cuida de mim…Ela é da família. Eu dei um abraço nela e fomos comer a feijoada e tomar a nossa caipirosca. Depois que comemos, lá pelas quatro horas da tarde eu fui embora e resolvi ir na cozinha me despedir da senhora simpática. Fui agradecer a feijoada e ela me disse uma coisa hilariante: ‘Ô, Lula, pergunta pra ele, já que eu sou da família, se ele me colocou no testamento’. É essa a realidade que vivemos.

Há uma parte da sociedade brasileira que pode chegar a 20 ou 30 por cento, que não aceita a ascensão dos mais pobres. Não é todo mundo que anda pelo Parque do Ibirapuera e fica contente quando um pobre da periferia de São Paulo está andando por lá. Não é todo mundo que aceita chegar num teatro e ver um monte de gente de cor negra, ou chega no seu restaurante predileto e vê lá gente que não é daquele ambiente. Uma vez eu estava com o Mino Carta, o Jacó Bittar e o Weffort almoçando em um bar em São Paulo. Pedimos o almoço e eu levantei para ir lavar as mãos. Vou na direção do banheiro, com o Jacó Bittar atrás de mim. Ele ouviu uma mulher falar: ele diz que defende o trabalhador, mas tá aqui comendo no nosso restaurante. O Jacó Bittar acabou tendo uma briga com a mulher e disse: Olha, quem vai pagar a conta dele sou eu, não é a senhora e ele come onde ele quiser.

Confira a íntegra da entrevista ao Sul21

 

Por Sul21

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