Nozaki: A privatização em “marcha forçada” nos governos Temer e Bolsonaro

“O atual governo tem ampliado a lista de ativos privatizáveis e tem acentuado o discurso ideológico em defesa das privatizações.”

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O Ministro da Economia tem intensificado suas declarações reafirmando a centralidade do desmonte do Estado e das empresas estatais na agenda do atual governo. Depois de afirmar em entrevista recente que “gostaria de vender tudo”, Paulo Guedes insinuou que Bolsonaro já começava a ter “simpatia inicial” pela venda de empresas estratégicas como a Petrobras e sinalizou que estaria em curso um processo silencioso no qual “tem empresas que serão privatizadas que vocês nem imaginam”. A ofensiva no discurso anuncia a intenção de forçar nova onda de privatizações.

A privatização no governo Temer

O Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi iniciado em setembro de 2016 e se propôs a transferir para a iniciativa privada 175 ativos públicos em 10 setores estratégicos totalizando R$ 287,5 bilhões. Ao final do governo Temer os resultados indicavam a condução de 91 processos de privatizações em 10 segmentos prioritários mobilizando cerca de R$ 144,3 bi, o que significa que 52% dos projetos foram levados à cabo e 50,1% do valor estimado foi alcançado.
A combinação de muitos ativos e setores envolvidos, mas com poucos projetos concluídos foi sintoma do descompasso entre a voracidade política e a ineficiência de gestão que acompanham o programa desde o seu nascedouro. Os efeitos colaterais, portanto, poderiam ter sido ainda mais contundentes do que foram.

O PPI envolveu diversos modelos contratuais e regulatórios, tais como parcerias público-privadas (PPP), arrendamentos, cessões, concessões, desestatizações e privatizações. Tais modalidades foram divididas em projetos concluídos, em andamento e em prorrogação, abrangendo os seguintes setores: rodoviário, ferroviário, aeroportuário, portuário, distribuição de energia, transmissão de energia, geração hidrelétrica, óleo e gás, minérios e venda de outras empresas estatais e participações públicas.

Do ponto de vista dos projetos concluídos, o processo de desestatizações se concentrou fundamentalmente no setor de petróleo e energia e se configurou não apenas como um processo de privatização, mas de desnacionalização, com destaque para a intensificação da entrada de players globais como EUA, China, Inglaterra, Alemanha, Noruega e Índia.
No que se refere aos projetos prorrogados, tratavam-se fundamentalmente de concessões ordinárias de ferrovias e portos, no primeiro caso o atraso se deveu à morosidade do governo em levar adiante suas próprias propostas e no segundo caso os obstáculos passaram pelos cuidados provocados pelo escândalo dos portos envolvendo a figura de Michel Temer.

Nos projetos que permaneceram em andamento é que se concentrava o núcleo duro do PPI, foram objeto de tentativa transferência do público para o privado: cinco empresas públicas por desestatização; treze aeroportos, nove rodovias e cinco ferrovias por concessão; dezesseis atividades portuárias por arrendamento; cinco distribuidoras de energia por privatização; além da realização de cinco rodadas de cessões de direito exploratório sobre minérios e duas rodadas de leilões de áreas do pré-sal, além da indicação de privatização do Sistema Eletrobras e outras empresas como Casa da Moeda, Loteria Instantânea LOTEX e a Gestão de Rede de Comunicações do Comando da Aeronáutica (COMAER).

A privatização no governo Bolsonaro

O governo Bolsonaro tem tentado dar sequência a esse desmonte dos arranjos econômico-institucionais que viabilizaram a modernização econômica do país por meio da participação central das empresas estatais como articuladoras do investimento público e privado, nacional e internacional.

As justificativas mobilizadas para realizar as privatizações são tão arcaicas quanto contestáveis: ganhos de eficiência na gestão, enfrentamento da influência da política e da corrupção no controle das empresas estatais, realização de um ajuste fiscal austero de curto-prazo, tudo isso temperado por um viés ideológico de apetite ainda mais voraz do que aquele observado no ciclo privatizante da década de 1990.

Prova disso é que a equipe econômica de Paulo Guedes ampliou as frentes do desmonte, que devem operar por meio de: abertura de capitais; busca de parcerias; desinvestimentos; privatizações; incorporações; fusões; cisões; liquidações; concessões; planos de demissão voluntária (PDVs).

Além disso, o governo estabeleceu como diretrizes e prioridades nessa área:

A coordenação da implementação do Decreto nº 9.188/2017, que trata do regime especial de desinvestimento de sociedades de economia mista, tendo como horizonte a desconstrução da ideia de empresa pública integrada e a construção, no seu lugar, da ideia de empresas concentradas estritamente em seu “core business”.

A análise da viabilidade de privatização das distribuidoras de energia da Eletrobras, utilizando como justificativa central a necessidade de aumentar a distribuição de dividendos para os acionistas privados e a minimização dos aportes da União nesse setor.

A coordenação da implementação do Decreto nº 9.355/2018, que estabelece regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a cessão de direitos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos pela Petrobras, com o argumento de que as grandes empresas estatais estariam excessivamente expostas à corrupção provocada por agentes políticos.

A redução da alavancagem financeira e do espectro dos planos de investimentos tanto da Eletrobras quanto da Petrobras, não por acaso as duas maiores empresas produtivas estatais do país.

A apresentação de subsídios para fundamentar a defesa da União no âmbito da ADIN nº 5.624/DF, que restringiu as hipóteses de as empresas estatais promoverem venda de ativos de forma mais acelerada.

O fortalecimento da Comissão interministerial de governança e de administração de participações societárias da União (CGPAR), instituída pelo Decreto nº 6.021/2007 e que tem por finalidade tratar de matérias relacionadas com a governança corporativa nas empresas estatais federais e da administração de participações societárias da União, sob o comando de Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni.

A aceleração do processo de liquidação da Companhia Docas do Maranhão (CODOMAR) e da Alcantara Cyclone Space (ACS).

A criação do Grupo de Trabalho dos Correios, para análise das possibilidades de realização de plano de demissão voluntária, redefinição dos valores das tarifas e dos critérios de atendimento, remodelagem e enxugamento da rede de agências e realização de parceria com a Azul Linhas Aéreas.

A implementação do processo de reorganização da Infraero, incluindo a venda de participações em aeroportos.

A implementação, regulamentação e padronização de alguns aspectos do processo de liquidação de empresas estatais federais incluídas a fim de tornar mais céleres as privatizações e desestatizações.

Como já se apontou, os objetivos de tais medidas são todos eles estritamente econômico-financeiros, quais sejam: evitar que empresas estatais se tornem dependentes do Tesouro Nacional; reduzir a dependência de subvenções nas empresas estatais dependentes do Tesouro Nacional; melhorar o desempenho operacional das empresas estatais federais, possibilitando a distribuição de dividendos para acionistas; melhorar a gestão das empresas para que sejam capazes de financiar seus investimentos com recursos próprios, sem necessidade de aportes da União.

As metas e objetivos elencados, como se pode observar, são bastante ousados e conformam, em última instância, mais do que uma reforma da administração pública indireta, trata-se de uma espécie de refundação do Estado brasileiro em bases ultraliberais.

O estágio atual das privatizações: o que já foi realizado no governo Bolsonaro

O atual governo tem ampliado a lista de ativos privatizáveis e tem acentuado o discurso ideológico em defesa das privatizações. No entanto, não tem conseguido levar adiante essas vendas, grande parte dos principais projetos listados no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) tem status em atraso por motivos variados, como se verá adiante. Para compensar o governo tem acelerado o calendário das concessões de aeroportos, portos e ferrovias.

O último leilão para concessão de aeroportos gerou uma arrecadação de R$ 2,377 bilhões superando as expectativas do governo em R$ 2,158 bilhões.

Dadas as condições favoráveis ao capital privado, o leilão também foi marcado pela forte disputa e pelo forte interesse de investidores estrangeiros. Com esse processo, o número de aeroportos geridos pela iniciativa privada subiu de 10 para 22, atualmente, sete operadoras internacionais atuam no país. A espanhola Aena venceu o disputado leilão pelo principal bloco de aeroportos. Com oferta de outorga de R$ 1,9 bilhão, o consórcio vai administrar os aeroportos do bloco Nordeste, considerado o mais cobiçado desse certame. O que pouco se destacou, entretanto, é que se trata de uma empresa estatal, para espanto dos adeptos do ultraliberalismo.

Além disso, o governo federal arrecadou R$ 219,5 milhões com a concessão de quatro terminais portuários, três deles no Porto de Cabedelo (PB) e um no Porto de Vitória (ES). Dois consórcios formados pelas mesmas empresas — Ipiranga, Petrobras Distribuidora e Raízen —- arremataram todos os portos. As áreas serão utilizadas para movimentação e armazenagem de combustível.

O consórcio Nordeste ficou com as três áreas na Paraíba por um lance de R$ 54,52 milhões, enquanto o consórcio Navegantes arrematou a área no porto de Vitória, com lance de R$ 165 milhões. A concessão valerá por 25 anos e pode ser renovada por 70 anos.

Por fim, considerando as principais iniciativas do governo nesses quatro primeiros meses, a operadora logística Rumo arrematou a concessão de um trecho da ferrovia Norte-Sul, após ter oferecido pagar 2,719 bilhões de reais. A companhia, que tem como principal sócia o grupo de energia Cosan, bateu sua única concorrente no certame, a VLI, operadora logística da Vale, da Mitsui e da Brookfield, que ofertou pagar 2,065 bilhões de reais. A Rumo terá direito de operar o trecho da ferrovia, importante no transporte de commodities agrícolas e combustíveis, por 30 anos. Com o leilão, o investimento previsto no empreendimento pelo novo concessionário é de 2,7 bilhões de reais. A concessão arrematada tem uma extensão total de 1.537 quilômetros, ligando Porto Nacional (TO) a Estrela D’Oeste (SP), de onde parte outro lote já administrado pela própria Rumo, interligando o interior paulista ao Porto de Santos (SP).

O estágio atual das privatizações: o que segue em atraso no governo Bolsonaro

O avanço nas concessões, entretanto, não tem sido acompanhado na mesma intensidade pelas outras modalidades de privatização e o governo encontra dificuldades políticas e de gestão para alcançar suas metas. Não há consenso entre a equipe ministerial sobre o escopo e sobre a velocidade do PPI, pelo menos cinco ministros parecem demonstrar resistência aos planos do Ministro da Economia.

Na área de Minas e Energia (MME), a venda da Eletrobras se encontra diante de um impasse: enquanto o Ministro Bento Albuquerque deseja um novo modelo de capitalização para a empresa, que pode ser anunciado em junho, Paulo Guedes manifesta o interesse na privatização dos ativos da empresa elétrica. Ao que tudo indica, a queda de braços passa por uma outra agenda cara ao Almirante que dirige o MME, os encaminhamentos com relação à Eletronuclear e ao programa nuclear brasileiro, cuja reativação foi estabelecida como prioridade, mas carece de investimentos.

No setor de Infraestrutura, por sua vez, apesar do avanço das concessões, o Ministro Tarcísio Gomes de Freitas sinalizou o bloqueio da venda da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), e, na contramão das diretrizes da antiga Fazenda iniciou um processo de recomposição de vagas e de contratação de pessoal abrindo 143 novas vagas. A Empresa de Planejamento Energético (EPE) que também já esteve próxima da extinção deixou de figurar na lista de ativos privatizáveis no próximo período.

No Ministério de Ciência, Tecnologia e Comunicações as resistências tem sido ainda maiores, o Ministro Marcos Pontes tem se mostrado contrário à venda dos Correios e à liquidação da Ceitec, empresa responsável pela produção de medicamentos e de chips de monitoramento de animais. Nesse último caso as pressões contrárias às privatizações também contam com o apoio do agronegócio e do Ministério da Agricultura, onde a Ministra Tereza Cristina também tem feito ponderações sobre a necessidade de alienação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), responsável, dentre outras coisas, pelas estatísticas agropecuárias do país. A esse caldo se soma ainda as posições do Ministro da Secretaria de Governo, General Santos Cruz, que se demonstrou refratário à venda da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Enfrentar a privatização predatória

Os impasses políticos não se encontram apenas no interior do Executivo. É preciso tornar público o processo quase clandestino de privatizações. Uma liminar do STF emitida pelo ministro Ricardo Lewandowski iniciou um processo de consultas públicas sobre qual deve ser o papel do Legislativo no processo de privatizações, o que abriu uma fresta jurídica para o travamento da venda de alguns ativos estatais. É preciso tomar iniciativas legislativas e articular ação parlamentar com ação coletiva na sociedade.

Como se pode notar, o processo de privatizações que já não havia sido levado à cabo integralmente no governo Temer segue enfrentando impasses no governo Bolsonaro. À luz desse quadro, portanto, a recente intensificação das declarações de Paulo Guedes sobre as “desestatizações” talvez traduza não só uma saudação ideológica às privatizações, mas sim uma preocupação pragmática em acalmar o mercado diante de um cenário onde as entregas daquilo que se prometeu podem não acontecer a contento.

William Nozaki é professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP-FUP).

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