Os riscos da flexibilização do desarmamento

Entre 2003 e 2012, cerca de 120 mil mortes por armas de fogo foram evitadas no país. É um Maracanã antigo cheio de pessoas que seriam assassinadas, quase duas Hiroshimas…

Entre 2003 e 2012, cerca de 120 mil mortes por armas de fogo foram evitadas no país. É um Maracanã antigo cheio de pessoas que seriam assassinadas, quase duas Hiroshimas no espaço de uma década. Somente em São Paulo, neste período, 50 homicídios deixaram de ser cometidos a cada mês. São números que mostram, de forma insofismável, o impacto positivo do Estatuto do Desarmamento sobre os indicadores da violência no Brasil.

De 1980 a 2003, ano em que entrou em vigor a lei que estabelece critérios mais restritivos para a venda e o porte de armamento no país, o aumento médio do número de homicídios por armas de fogo chegou a 8,36% ao ano. O percentual caiu para 0,53% com o Estatuto, um instrumento crucial para quebrar uma curva que crescia exponencialmente, ao custo de tragédias familiares, do incremento da criminalidade e do aumento da insegurança coletiva.

O Estatuto estabeleceu critérios mais rígidos para a aquisição de armas de fogo e fixou punições mais severas para quem o infrinja. Mas, ainda assim, a realidade na qual ele vigora revela um fenômeno surpreendente: ano passado, mais de 24 mil novas armas foram registradas por cidadãos no país. Pior: não parece ser um indicativo tópico, mas uma tendência. Só nos quatro primeiros meses de 2015 já haviam sido concedidas 12,3 mil licenças, 82% para pessoas físicas.

É o que revela reportagem de ontem do GLOBO, uma evidência de que as pessoas voltaram a se armar, apesar da blindagem do Estatuto. O fenômeno é preocupante porque embala contrafações ao espírito da lei, que é buscar, pelo desarmamento, a pacificação do país e a redução dos indicadores de criminalidade. Uma delas é o dado, comprovado, de que armas compradas no mercado legal acabam por reforçar o arsenal das quadrilhas de bandidos. Só em 2014, mais de 10 mil armas com registro legal foram roubadas ou furtadas, o que equivale a 30% das licenças concedidas pela Polícia Federal. Outro efeito deletério da proliferação de armamento: a CPI do Tráfico de Armas estimou, em 2006, que, para um aumento de 1% do número de armas nas mãos de pessoas, há um crescimento de 2% nos índices de homicídios.

A essas preocupações junta-se outra, com potencial para tomá-las ainda mais graves. O operoso grupo de parlamentares que atuam no Congresso para desconstruir o Estatuto, a “bancada da bala”, ensaia mais um round de ataques. O deputado Laudívio Carvalho (PMDB-MG), relator de um projeto de flexibilização da lei, promete votar a matéria até o fim do mês em comissão especial, passo que antecede o sufrágio em plenário.

Entre outros absurdos, a proposta aumenta de seis para nove o número de armas por civil, reduz a idade mínima para o porte e acaba com a revalidação da licença a cada três anos. É uma inversão: em razão do aumento do armamentismo, o Estatuto precisa, sim, ser mudado – mas para tomar as regras de licenciamento ainda mais rígidas.

(Artigo inicialmente publicado no jornal “O Globo”, no dia 4 de agosto de 2015)

Do Jornal O Globo

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