Pazuello não entrega, Bolsonaro mente e testes da Covid podem virar lixo
Mais de 7 milhões de kits de exames se deterioram em um armazém federal em Guarulhos (SP). Para variar, o presidente da República mente ao dizer que testes já foram distribuídos e transfere a responsabilidade para estados e municípios. Ministério Público pede abertura de investigação pelo Tribunal de Contas da União
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“Os Serviços de Intendência e de Saúde trabalham na paz e na guerra para a manutenção do homem, pelo atendimento às suas necessidades de sustento e sanitárias. Os oficiais de Intendência são mestres no suprimento e nas finanças.” Assim o Exército Brasileiro define uma das especializações do curso de graduação de oficiais da Academia Militar de Agulhas Negras (Aman). O ministro-general da Saúde, Eduardo Pazzuello, por exemplo, é um oficial de Intendência, e havia sido nomeado Secretário-Executivo da pasta pelo então ministro Nelson Teich, em abril, por sua qualificação em logística.
No entanto, acumulam-se casos de má gestão de estoques e má distribuição de suprimentos no Ministério da Saúde. O mais recente deles tornou-se público neste domingo (22), quando reportagem do jornal ‘O Estado de São Paulo’ informou que 7,1 milhões de testes para diagnóstico da Covid-19 estão estragando em um armazém do governo federal em Guarulhos (SP), 96% deles (6,8 milhões) com validade que expira entre dezembro deste ano e janeiro de 2021. O restante, até março.
A reportagem do ‘Estadão’ informa que a pasta investiu R$ 764,5 milhões em testes e as unidades para vencer custaram R$ 290 milhões – o lote encalhado tem validade de oito meses. E trata-se de testes RT-PCR, dos mais eficazes, que consiste na coleta de secreção no nariz e na garganta por meio de um cotonete. Em laboratórios particulares, custa de R$ 290 a R$ 400.
Ainda segundo o jornal, o Ministério da Saúde adiantou que a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) está realizando estudo “para verificar a estabilidade de utilização dos testes”, e que vai distribuir os exames a partir de demandas dos estados.
Em nota divulgada no domingo, o Ministério da Saúde confirmou a existência de testes com data de validade próxima do vencimento, mas não informou a quantidade de kits e não confirmou o número divulgado pelo jornal paulista. “O Brasil já testou mais de 10.491.142 pessoas, sendo 5.043.469 testes RT-qPCR realizados, dos 9.317.356 milhões de testes RT-qPCR distribuídos para os laboratórios públicos dos estados”, afirmou o ministério na nota.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não informou como a validade do produto pode ser renovada, e se limitou a declarar que a entrega de testes vencidos é uma infração sanitária.
O Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) afirmam que o ministério não entregou todos os kits de testes de Covid-19 e máquinas para automatizar a análise das amostras que havia prometido. “O contrato que permitia o fornecimento de insumos e equipamentos necessários para automatizar e agilizar a primeira fase do processamento das amostras foi cancelado pelo Ministério da Saúde”, revelou o Conass.
“Há o compromisso da pasta de manter o abastecimento durante o período de três meses, contados a partir do cancelamento. É fundamental, porém, que uma nova contratação seja feita e a distribuição dos insumos seja retomada em tempo hábil”, recomenda o conselho, declarando que alertou o governo federal diversas vezes sobre a falta de materiais para processar as amostras.
“Passamos boa parte da pandemia com dificuldade para aquisição de insumos de coleta. O repasse desse material para estados só ocorreu a partir de agosto. Os insumos para extração do material genético viral e equipamentos desta etapa, por sua vez, somente foram repassados a partir de setembro. No caso dos equipamentos, apenas 10 Lacens (Laboratório Central de Saúde Pública) foram contemplados”, concluem os secretários de Saúde na nota.
“Como era de se esperar, a causa dessa inércia e desse desperdício não é segredo para ninguém. Trata-se da inépcia do governo federal, sobretudo do Ministério da Saúde —cujo ministro não é da área—, no que diz respeito ao planejamento e logística de distribuição para a rede pública de saúde, bem como das medidas necessárias para a aplicação dos testes”, diz trecho da decisão assinada pelo subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, ao qual o portal ‘UOL’ teve acesso.
Bolsonaro mente sobre os testes
O Brasil atingiu 6.070.419 casos de Covid-19 e 169.197 mortes em decorrência da doença desde o início da pandemia. É o terceiro país mais atingido, atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia, segundo a Universidade Johns Hopkins, da Inglaterra. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro reage como de costume quando se depara com questionamentos acerca de desvios de seu governo: mente e transfere responsabilidades.
Em resposta a uma apoiadora que lhe perguntou sobre o assunto, ele negou que o governo federal tenha responsabilidade sobre o encalhe dos testes, apesar da alta demanda no país. “Todo o material foi enviado para estados e municípios. Se algum estado/município não utilizou deve apresentar seus motivos”, escreveu no Facebook nesta segunda (23).
A reação da Câmara dos Deputados veio logo após a falácia de Bolsonaro. Nesta semana, a comissão criada pela Casa para acompanhar informações sobre a Covid-19 irá cobrar providências a respeito do estoque que não foi distribuído. Na quarta (25), o secretário de Vigilância do Ministério da Saúde, Arnaldo Medeiros, e representantes do Departamento de Normas e Sistemas de Logística (Delog) deverão apresentar explicações a respeito da distribuição e logística dos testes.
À noite, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) entrou com representação pedindo investigação do tribunal. “Como era de se esperar, a causa dessa inércia e desse desperdício não é segredo para ninguém. Trata-se da inépcia do governo federal, sobretudo do Ministério da Saúde —cujo ministro não é da área—, no que diz respeito ao planejamento e logística de distribuição para a rede pública de saúde, bem como das medidas necessárias para a aplicação dos testes”, diz trecho da decisão assinada pelo subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, ao qual o portal ‘UOL’ teve acesso.
O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) também entrou com representação no TCU pedindo que o ministério do general seja investigado. “O Ministério da Saúde tem que explicar imediatamente esse ataque contra a saúde pública, fato agravado pela chegada da segunda onda da pandemia”, recomenda o senador. “O governo jogou dinheiro público no lixo ao não usar testes comprados e contribuiu para a proliferação da doença, deixando a população desprotegida.”
Apenas a quantidade de testes que perde a validade em dezembro e janeiro já é bem maior do que os cinco milhões de testes RT-PCR realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em nove meses de pandemia. O total desses testes realizados no Brasil caiu em outubro pelo segundo mês seguido, segundo dados do próprio Ministério da Saúde. Os pesquisadores defendem que o Brasil deveria estar no caminho inverso: ampliando os testes para rastrear e frear o avanço da pandemia.
“Para rastrear um contato, você precisa do diagnóstico da pessoa. Quanto mais tivermos disponível o teste RT-PCR, mais vamos rastrear os casos secundários. Se ficarmos na ignorância de dados, não teremos sucesso. Precisamos detectar pessoas com ou sem sintomas do coronavírus”, alertou a infectologista Rosana Richtmann ao Portal ‘G1’.
Segundo ela, além do teste, é importante saber três coisas com relação à transmissão: há quanto tempo a pessoa foi exposta ao vírus, em que ambiente ocorreu essa exposição e se houve ou não distanciamento. “Com essas três coisas já conseguimos fazer o rastreamento”, diz.
“Todo mundo fala da importância do rastreamento, mas não é simples. Precisa de estrutura. Talvez o grande desafio é a testagem. Detectar o vírus na pessoa é importante. Se não fizermos, não sabemos quem está infeccioso. Acabamos baseando o rastreamento só nos sintomas, mas existem os assintomáticos”, completou o físico Vitor Mori, pós-doutorando na Faculdade de Medicina da Universidade de Vermont (EUA) e membro do Observatório Covid-19 BR.
Mais de 400 mil comprimidos encalhados
A história dos testes surge uma semana depois da constatação pela imprensa que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX) ainda tem 400,1 mil comprimidos de cloroquina em estoque, parados por falta de demanda dos estados. O número corresponde a boa parte do que foi produzido entre 2015 e 2017, por exemplo, quando o remédio era fabricado exclusivamente para o tratamento da malária.
Em 2020, cerca de 3,2 milhões de comprimidos foram feitos, depois de Bolsonaro determinar à corporação que o produzisse para combate à Covid-19, mesmo ciente de que este é um tratamento sem nenhuma eficácia comprovada. O estoque corresponde a 12,38% da produção deste ano.
Em 2015, o Exército informou ter fabricado 276,4 mil comprimidos e em 2017, 265 mil. O lote atual ainda não tem destinação, mas não há previsão de nova fabricação do medicamento este ano. A distribuição perdeu força depois de mais estudos terem sido publicados desafiando a suposta eficácia do remédio contra a Covid-19.
O risco de ficar com um estoque encalhado tinha sido alertado em maio por técnicos do governo, quando o Centro de Operações de Emergência (COE) informou, em ata, que “alguns estados não quiseram receber a cloroquina e, com isso, ficou em estoque para devolução 1.456.616 comprimidos.” A ata do COE informou ainda, sobre a cloroquina, que “devido à situação atual não é aconselhável trazer uma quantidade muito grande, pois caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas.”
A alta na compra de cloroquina foi contestada internamente até mesmo no próprio Exército. Documentos mostram que o departamento jurídico do laboratório responsável pela fabricação do medicamento contestou o motivo de os insumos para fabricação, comprados de uma empresa mineira que os importou da Índia, terem o preço elevado em 167%. Nunca houve resposta concreta aos questionamentos e hoje a compra é investigada por suposto superfaturamento no Tribunal de Contas da União (TCU).
A empresa vencedora, Sul Minas, foi procurada um mês antes da concorrente para apresentar sua proposta de preços para vender o insumo ao poder público. Segundo especialistas consultados pela imprensa, isto pode ter favorecido a empresa, já que nem mesmo havia um processo formal de compras aberto à época.
Somente duas empresas foram procuradas formalmente, por e-mail, para fornecer orçamento do produto, ainda que mais de 10 mil empresas tenham licença para importar medicamentos no Brasil, segundo o site da Anvisa. A justificativa do Exército é que outras empresas não teriam respondido a solicitações informais, por telefone, mas a instituição não enviou, até o fechamento desta reportagem, a lista das que teriam sido procuradas informalmente ou o motivo da recusa.
O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército já gastou R$ 1,1 milhão na fabricação de cloroquina, entre insumos e embalagens, sob a justificativa da demanda gerada pela pandemia. Na mesma época dessas compras de insumos com a Sul Minas, o posicionamento do próprio Ministério da Saúde era divergente para o uso do remédio em pacientes da Covid-19.
Em 27 de março, a pasta publicou uma nota informativa regulando o uso do medicamento como terapia adjuvante (ou seja, em apoio à terapia primária) somente nos casos graves. Em 4 de maio, dois dias antes da primeira aquisição do Exército junto à Sul Minas, o ministério afirmou que “não é possível garantir a eficácia e segurança do uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes infectados por SARS-CoV-2, devido à indisponibilidade de maiores informações sobre as circunstâncias da sua utilização e a necessidade de investigações mais robustas”. Esse posicionamento institucional mudou depois da saída do ministro Nelson Teich, contrário à indicação do remédio à época, em 15 de maio. Cinco dias depois, já sob o comando do então ministro interino Eduardo Pazuello, o governo divulgou novas diretrizes para uso do medicamento, incluindo o uso para casos leves da doença.
Em abril, a Anvisa recomendou que a cloroquina fosse usada exclusivamente para as indicações terapêuticas já aprovadas e que constam na bula do medicamento – para a malária, e não para a Covid-19. “Cabe ressaltar que o uso do medicamento para indicações não previstas na bula é de escolha e responsabilidade do médico prescritor”, reforçou o órgão.
Em nota, o Exército informou que o estoque está destinado ao atendimento da malária e eventuais solicitações que possam ocorrer para o atendimento da Covid-19. Disse ainda que o estoque tem validade até junho de 2022, “permitindo, assim, seu emprego para as atividades regulares das Forças, bem como o atendimento de eventuais demandas de outros órgãos, implicando em economia de longo prazo”.
Da Redação