Trump e Bolsonaro, irmãos siameses em uma tragédia anunciada

Reportagem do ‘Financial Times’ faz raio-x de Donald Trump e aponta como as omissões do presidente americano levaram os EUA a tornar-se o epicentro mundial da pandemia do coronavírus. Condução desastrosa da crise coloca Trump e Bolsonaro lado a lado na sucessão de erros que causaram a morte até agora de milhares de inocentes

Alan Santos/PR

Jair Bolsonaro e Donald Trump nos Estados Unidos

Terra de sonhos despedaçados, a América de Donald Trump vive dias desoladores de uma guerra impiedosa da qual os Estados Unidos já saíram derrotados. Os motivos por trás do colapso da nação mais poderosa do planeta diante da devastadora crise sanitária e econômica causada pela Covid-19 são tema central de extensa reportagem assinada pelo editor do jornal britânico ‘Financial Times’, Edward Luce, e publicada na edição desta sexta-feira (15). Na reportagem, Luce faz uma profunda incursão pela mente do presidente americano e expõe como suas fraquezas e omissões resultaram na morte de 86 mil americanos. No Brasil, o efeito dominó da pandemia indica que um cenário semelhante de terra arrasada encontra-se cada vez mais próximo, com a possibilidade de o país chegar a 50 mil mortos dentro de um mês.

As anotações do articulista, a começar pelo negacionismo de Trump, jogam luz sobre as razões para os EUA ocuparem o centro do mapa da disseminação mundial da doença, seguidos cada vez mais de perto pelo Brasil em número de casos e mortes. Luce relata que entrou em contato com vários colaboradores próximos de Trump para escrever a reportagem e ouviu invariavelmente a mesma história: tal qual o fã brasileiro, o presidente Jair Bolsonaro, Trump deu de ombros diversas vezes ao ser avisado sobre a gravidade da pandemia, sobretudo os alertas com base científica. Como se verá adiante, as semelhanças entre os dois contumazes negacionistas salta aos olhos.

“A história que surgiu é a de um presidente que ignorou avisos de inteligência cada vez mais alarmantes a partir de janeiro e dispensou qualquer um que afirmasse saber mais do que ele,  já que não confia em ninguém fora de seu pequeno círculo, liderado por sua filha Ivanka e o marido, Jared Kushner”, descreve Luce. De acordo com o jornal, Kushner é o promotor imobiliário autorizado por Trump a marginalizar a burocracia de resposta a desastres mais bem financiada do mundo.

Em seu texto, Luce traça um paralelo com a Comissão do 11 de Setembro – criada para investigar as circunstâncias do atentado de 2001 –, sugerindo que, no futuro, um inquérito semelhante revelaria as inúmeras vezes em que Trump foi alertado sobre a pandemia. “Qualquer relatório provavelmente concluiria que dezenas de milhares de mortes poderiam ter sido evitadas – mesmo agora, quando Trump se esforça para “libertar” os estados do bloqueio”, escreveu Luce. “Trump poderia ter evitado mortes em massa e ele não fez nada”, atesta Gregg Gonsalves, um estudioso de saúde pública da Universidade de Yale.

Conselhos familiares

Para se ter uma ideia do tamanho da omissão de Trump, segundo fontes internas, ouvidas pelo articulista do ‘FT’, Kushner levou ao sogro o argumento de que testes em massa ou vários pedidos de equipamentos como respiradores assustaria os mercados e, portanto, Trump não deveria fazê-los. “Esse conselho exerceu muito mais influência sobre ele do que o que os cientistas estavam dizendo. Ele acha que sempre exageram”, afirma a fonte de Luce. No Brasil, os filhos de Bolsonaro fazem às vezes de Kushner, dando ao pai conselhos que, invariavelmente, atentam contra a ciência e o bom senso de modo geral.

Já William Burns, prestigiado diplomata de carreira dos EUA, e agora chefe da Carnegie Endowment, foi enfático à reportagem: “A América é a primeira no mundo em mortes, a primeira no mundo em infecções e nos destacamos como um emblema da incompetência global. O dano à influência e à reputação da América será muito difícil de desfazer”, afirma Burns, fazendo uma triste alusão ao célebre bordão do presidente: “America First”.

O artigo também descreve como a escolha de Robert Redfield para o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) exerceu papel fundamental para a escalada do desastre sanitário. Comandado pelo ex-oficial militar de histórico controverso, o CDC cometeu diversos erros técnicos e deixou de detectar o real avanço da doença no país.

“Redfield é a pior pessoa que você pode pensar em liderar o CDC neste momento”, diz Laurie Garrett, jornalista científica  especializada em cobrir epidemias e vencedora do Prêmio Pulitzer. “Ele permitiu que seus preconceitos interferissem na ciência, algo que não se pode pagar para ver durante uma pandemia”. Mais uma notável coincidência com o par brasileiro, que demitiu seu ministro da Saúde  no meio de uma crise por considerá-lo “próximo demais” da comunidade científica, em especial a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Falta de testes

Como no Brasil, os americanos não realizaram testes o suficiente para assumir o controle da doença, apesar das promessas de ambos os governos da chegada de milhões de kits para testagens em massa. Enquanto Trump alardeou, ainda no início da epidemia, a entrega de 4 milhões de kits em uma semana, aqui, o ministro da Saúde, Nelson Teich, garantiu que nada menos do que 46 milhões de testes estarão disponíveis até setembro. Com mais de 203 mil infectados, o país não testou nem um milhão de pessoas. Nos EUA, menos de 3% da população foi testada, segundo apuração do ‘Financial Times’.

Uma das restrições que causaram atrasos na reação do centro foi a insistência do CDC no desenvolvimento de um teste próprio, ao invés da importação de kits estrangeiros. “A escassez de kits fez com que os cientistas não tivessem uma imagem das infecções que se espalhavam rapidamente nos Estados Unidos. O CDC foi forçado a racionar os testes para “pessoas sob investigação”, conta o articulista. Caso semelhante ao que ocorreu no Brasil, gerando as subestimadas subnotificações.

A reportagem também aponta as bizarras e repentinas mudanças na linha de pensamento de Trump, ora oscilando para o negacionismo, ora pendendo para um tom de preocupação em suas declarações. Após decretar estado de emergência nacional, em março, o presidente afirmou que os Estados Unidos estavam liderando o mundo. “Fizemos um ótimo trabalho porque agimos rapidamente”, disse ele.

Dois dias depois, mudou de ideia e mostrou-se preocupado, concluindo que o pico poderia ser em julho ou agosto depois de uma conversa com um dos filhos. Neste ponto específico, as semelhanças entre os presidentes param aí. No Brasil, Bolsonaro manteve o negacionismo. Oscilou apenas nos insultos que fez às instituições, ora pedindo respeito à democracia, ora vociferando, em ato pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que “não queremos negociar nada”.

Obsessão pela cloroquina

Descartado pela comunidade científica mundial como arma eficiente no combate ao coronavírus, o uso da hidroxicloroquina continua sendo defendido por Bolsonaro. Aqui, mais uma vez, Bolsonaro imita o ídolo americano, chegando a enquadrar o ministro da Saúde com a insistente exigência para que Teich passe a recomendar o uso do medicamento nos protocolos de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) o quanto antes.

“A mentalidade de Trump tornou-se cada vez mais surreal”, descreve Luce. “Ele começou a promover a hidroxicloroquina como cura para o Covid-19. Segundo o articulista, o presidente americano passou a descrever a droga antimalárica como uma potencial bala mágica. Aquilo poderia ser “uma das maiores mudanças na história da medicina”, tuitou Trump.

Tanto Bolsonaro quanto Trump têm fama de péssimos ouvintes, sobretudo quando são contrariados. “Quando Trump sugeriu no final de abril que as pessoas poderiam parar o Covid-19, ou mesmo curar-se, injetando desinfetantes, como Lysol ou Dettol, sua principal cientista, Deborah Birx, não ousou contradizê-lo”, revela o ‘FT’. “As pessoas se tornam covardes em torno de Trump. Se você o enfrentar, nunca mais voltará”, confirmou Garrett, em depoimento ao articulista.

“Enquanto isso”, escreve Luce, “Trump provavelmente continuará a abalar a perspectiva de curas milagrosas. Toda semana, desde o início do surto, ele diz que uma vacina está chegando. Sua última estimativa é de que estará pronta em julho. Os cientistas dizem que levará um ano para produzir uma inoculação, na melhor das hipóteses. A maioria da comunidade diz que, se sair em 18 meses, será um golpe de sorte. Até isso quebraria todos os recordes. O desenvolvimento mais rápido anterior foi de quatro anos para a caxumba, na década de 1960”.

Ofensiva contra OMS e China

Com o avanço da doença nos Estados Unidos, Trump declarou guerra à Organização Mundial da Saúde (OMS), acusando-a de se aliar à China e suspendendo financiamento  ao órgão da ONU. Também iniciou uma série de ataques à China, levando a pesada guerra comercial entre as duas nações para o terreno humanitário. No Brasil, Bolsonaro atrasou um repasse de U$ 32 milhões à entidade e questionou as qualificações do diretor Tedros Adhanom Ghebreyesus. Os ataques à China, no entanto, ficaram à cargo do filho Eduardo Bolsonaro, que desencadeou uma crise nas relações entre os dois países com declarações desastrosas e historicamente humilhantes para a diplomacia brasileira.

De acordo com a reportagem do ‘Financial Times’, os cortes de  Trump foram anunciados seis semanas depois de a OMS ter declarado estado de emergência internacional, o que prejudicou seriamente as operações da agência, segundo fontes ouvidas pelo jornal. “Você não desliga a mangueira no meio do incêndio, mesmo que não goste do bombeiro”, diz Bernhard Schwartländer, chefe de gabinete da OMS. “Este vírus ameaça todos os países do mundo e irá explorar qualquer rachadura em nossa determinação”. A OMS, em outras palavras, foi vítima da hostilidade EUA-China”, aponta o FT.

De olho nas eleições americanas, Trump ameaça romper relações diplomáticas com a China. “A campanha de Trump será sobre China, China, China”, diz Steve Bannon, ex-estrategista-chefe de Trump. “E espero que ele tenha retomado a economia”, sonha Bannon. Aqui, Bolsonaro segue à risca a cartilha do fanfarrão americano, esmerando-se na destruição das relações institucionais com estados e municípios. Apostando no caos, o ocupante do Planalto ameaça governadores, acusando-os de “desobediência civil” por não liberarem atividades comerciais. Igualmente, Trump dispara contra os estados democratas, responsabilizando os gestores por um atraso na reabertura econômica com o objetivo de prejudicá-lo. E assim desenrola-se  mais um capítulo da crônica dos irmãos siameses em uma tragédia anunciada.

Da Redação, com informações do ‘Financial Times’

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