Abandono paterno e o peso das mães solo

No Brasil, mais de 5 milhões de brasileiros não possuem o nome do pai na certidão de nascimento. E mais de 11 milhões de famílias são formadas apenas por mães que criam seus filhos sozinhas

Da Redação, Agência Todas

 Nas redes sociais, as celebrações e os debates sobre o Dia dos Pais começaram envolvendo Thammy Miranda, no comercial de uma marca de cosméticos, constituindo uma família “não tradicional” (nos moldes do conservadorismo) ao apresentar uma constituição formada por homem transgênero. Desse ponto, surgiram diversas reflexões sobre o papel dos pais e suas respectivas performances de gênero dentro do núcleo familiar.

Outro aspecto importante desse debate sobre o papel da paternidade na constituição da família é a própria ausência dos pais na responsabilidade de criar os filhos. No Brasil, 5,5 milhões de brasileiros não possuem o nome do pai na certidão de nascimento. E 11,6 milhões de famílias são formadas apenas por mães solo, ou seja, mães que criam seus filhos sozinhas.

Em dez anos, o número de mães solo no Brasil saltou de 10,5 milhões para 11,6 milhões, de 2005 a 2015. Os dados são do Censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2017,esse número já atingiu 20 milhões de mulheres, segundo Data Popular. Das famílias comandadas por mulheres, 56,9% vivem abaixo da linha da pobreza. 

 

Retrato da ausência dos pais e a realidade das mães solo no Brasil

61% mães solo negra

28% mães solo branca

11% mães solo de outras raças/etnias

 

Segundo o IBGE, a maioria das mães solo no país são negras (61%). Elas  enfrentam maior restrição a condições de moradia, saneamento básico e internet nos arranjos em que são as chefes da família — no Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza, revela dados do IBGE.

A desigualdade racial também se reflete no acesso a saneamento básico e internet, já que 42% mulheres negras não contam com saneamento básico e 28% não têm internet, em comparação a 28% e 23% das mulheres brancas, respectivamente.

 Por se tratar de famílias de maior vulnerabilidade social, as mães solo ainda enfrentam um agravante durante a pandemia como os ataques do governo Bolsonaro: o presidente vetou a priorização dessa constituição familiar para receber o auxílio emergencial.

 

Na cidade de São Paulo, por exemplo, um levantamento feito pela ONG Rede Nossa São Paulo apontou que 33% das mulheres que moram na capital (o que corresponde a 1.219.438 mulheres) cuidam sozinhas dos filhos. E assim, a maternidade, que naturalmente já impõe muitos desafios às mães, pode ser ainda mais cruel com as mães solo.

 

As formas de abandono paterno

Especialistas reforçam que o abandono paterno, além da sobrecarga de responsabilidade sobre as mães solo, ainda causa impacto profundo no desenvolvimento das crianças, comprometendo a saúde mental da sociedade a médio e longo prazo. Belinda Mandelbaum, professora de Psicologia Social no Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Laboratório de Estudos da Família (LEFAM), explica que “a ausência paterna decorre de um vínculo com a criança que, de alguma maneira, não tem força o suficiente para se sobrepor a outros interesses ou necessidades desse pai.” Assim, ele deixa de cumprir uma função paterna que pode ser tanto de natureza material, intelectual ou afetiva: três formas de abandono. Os dois primeiros estão previstos no Código Penal. O último, entretanto, só começou a ser tratado na Justiça nos últimos anos.

Abandono material ocorre quando o genitor deixa de prover recursos básicos para a subsistência do menor. Como exemplo, temos os inúmeros casos de pedido de pensão alimentícia ou de execução de alimentos que incham as Varas de Família Brasil afora.

Abandono intelectual, acontece quando o genitor deixa de prover a educação primária do menor, aquela compreendida dos 4 aos 17 anos. Apesar de ser pouco falado, o número de crianças que não frequentam a escola regular ainda é muito grande. Estima-se que cerca de 2,5 milhões de crianças e adolescentes não estão dentro da sala-de-aula.

Abandono afetivo, talvez o que mais traga consequências a níveis psicológicos para a criança e para o adolescente, pode ser definido como a indiferença afetiva do genitor com relação ao filho. Algumas decisões recentes dos tribunais, principalmente do STJ, têm concedido indenização a filhos vítimas de abandono afetivo, partindo da premissa constitucional do descumprimento do dever legal de cuidado, educação e presença.

Vitor José Araujo, mestrando em Psicologia em Saúde e Desenvolvimento Humano pela UFS, ressalta que quando o abandono acontece no período da infância, a criança pode desenvolver problemas de ansiedade, insegurança, traumas, desobediência, já que o pai ainda tem o papel de figura de autoridade, que causa mais impacto na vida do sujeito com quem manteve um relacionamento próximo.

 “Nesse período ocorre a construção da identidade e da personalidade que determina os seus comportamentos futuros. A criança necessita de atenção e não possui estratégias para lidar com as mudanças, pois internaliza todo o impacto causado gerado pelas atitudes apresentadas”, reforçou Vitor.

Mandelbaum também diz que “quando um pai se ausenta, isso deixa marcas na criança”, pois a questão de quem são nossos pais e de onde viemos é central na nossa constituição psicológica. Portanto, os outros adultos que fazem parte do cotidiano dessa criança apresentam papel fundamental para acolher as angústias, perguntas e fantasias que ela tem a respeito do pai biológico. “É claro que se o pai não está presente isso é uma questão que a criança vai ter que elaborar, né?”, enfatiza.

 

Para as mães solo, dia dos pais é fortalecer a rede de apoio

Alertar e cobrar os pais para que dividam a sobrecarga da responsabilidade de seus filhos e assumam o papel de cuidador da criança é imprescindível. Os primeiros lugares do ranking de crianças sem nome do pai no registro são ocupados pelas duas maiores metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro, com 677.676 casos, seguido por São Paulo com 663.375 casos.  Roraima é o estado com menos crianças sem o nome do pai no registro de nascimento. Existem 67 milhões de mães no país, dessas, 31% (20 milhões) são mães solo, segundo a Data Popular. 

Enquanto isso não acontece, fortalecer redes de apoio, garantir políticas públicas que permitam mulheres ocupar postos de trabalho, com jornadas adequadas e acesso à educação, saúde e serviços públicos de qualidade são ações que podem minimizar a sobrecarga das mães solo.

“A sociedade ainda encara com certa normalidade o abandono paterno, enquanto cobra impiedosamente da mãe todas as responsabilidades com os cuidados das crianças, chegando até a culpar a própria mulher pela inconsequência do homem”, reforça Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.

 

Confira a legislação

O artigo 227 da Constituição Federal, bem como o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), atribui aos pais e responsáveis o dever geral de cuidado, criação e convivência familiar de seus filhos, bem como de preservá-los de negligencias, discriminação, violência, entre outros.

Não há como obrigar um pai a amar um filho, mas a legislação lhe assegura um direito de ser cuidado. Os responsáveis que negligenciam ou são omissos quanto ao dever geral de cuidado podem responder judicialmente por terem causado danos morais a seus próprios filhos. 

Um exemplo típico de abandono afetivo ocorre quanto o responsável não aceita o filho e demonstra expressamente seu desprezo em relação a ele.

 

Veja o que diz a lei:

Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Parágrafo único.  Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

  1. a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
  2. b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
  3. c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
  4. d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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