Artigo: CLT na Era Digital, por Marcio Pochmann

Além da aceleração da desigualdade na Era Digital, o país assiste passivamente ao esvaziamento crescente da soberania tecnológica e à dependência do mercado externo, adverte o economia e presidente do Instituto Lula

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Mudança de época

Com a passagem para a Era Digital, sobretudo mal conduzida pelo receituário neoliberal desde os anos 1990, o ataque à economia nacional terminou por desmontar as bases nas quais se fundamentavam a sociedade urbana e industrial. De uma parte, a desindustrialização desarticulou o sistema produtivo e interrompeu o movimento geral de estruturação do mercado de trabalho, reduzindo tanto os postos intermediários de classe média quanto o próprio processo de proletarização urbana.

O aparecimento do inédito desemprego aberto transcorreu simultaneamente à perda de funcionalidade econômica de parte das ocupações informais (assalariadas e por conta própria), fazendo expandir a esfera da subsistência. A flexibilização da legislação social e trabalhista adotada desde os anos 1990 (contratos temporários, terceirizados, cooperativados, pejotização, microempreendedores individuais e outros) contribuiu para que parcela das ocupações se deslocasse para atividades vinculadas à prestação de serviços aos segmentos cada vez mais ricos da sociedade (segurança, limpeza e asseio, cuidadores de animais, entregadores variados, personal stylist, trainer, entre outros).

De outra parte, o país escolheu uma forma para adentrar a Era Digital – como consumidor, e não como produtor – que o fez repetir equivalente situação de ingresso rebaixado na Era Industrial ao longo do século 19. Isso porque, para poder consumir o que não produzia internamente à época, dependia da importação, cuja capacidade nacional de pagamento era definida pelo setor agroexportador.

Nos dias de hoje, o Brasil detém a sexta maior população do mundo, ocupa o posto de 13ª economia do planeta e responde pelo quarto maior mercado consumidor do mundo de bens e serviços digitais. Na condição de mero consumidor, o governo brasileiro leiloou o acesso à tecnologia 5 G como se fosse, por exemplo, ir ao supermercado comprar qualquer tipo de bem ou serviço, sem nenhuma preocupação, portanto, com as possibilidades de internalização do saber fazer, da infraestrutura, da formação de mão de obra, entre outras.

Ademais da aceleração da desigualdade na Era Digital, o país assiste passivamente ao esvaziamento crescente da soberania tecnológica e à dependência do mercado externo. Como o atendimento do mercado interno de bens e serviços provém de empresas estrangeiras e do comércio externo, o país deixa de produzir internamente, sendo o consumo externo financiado pela exportação de commodities.

As trocas desiguais, tratadas no passado pela versão cepalina da deterioração dos termos de trocas ou pela perspectiva do trabalhismo de Vargas como perdas internacionais, estão intensas. Numa espécie de neoextrativismo, o Brasil exporta em grande escala produtos de contido valor agregado para importar bens e serviços de elevado conteúdo tecnológico.

Concomitante à destruição dos antigos sujeitos da sociedade industrial (classe média assalariada e operariado com carteira assinada), emerge nova classe trabalhadora desagregada da tradicional relação salarial e, por consequência, dos direitos sociais e trabalhistas. Por um século, mais precisamente entre os anos 1889 e 1989, a relação salarial despontou como o principal mecanismo de transformação da antiga massa inorgânica herdada do agrarismo em proletariado urbano associada, sobretudo a partir da década de 1930, à identidade e pertencimento definido pelo acesso à carteira de trabalho enquanto passaporte à cidadania regulada.

Se em 1940, por exemplo, o país detinha somente 12,1% do total da força de trabalho com emprego assalariado e direitos sociais e trabalhistas, no ano de 1989 chegou a registrar 49,2% da População Economicamente Ativa (PEA) no assalariamento formal. Três décadas depois, em 2021, o Brasil registrou 41,1% do total da PEA submetida à relação salarial formal.

Em virtude disso, assiste-se à marcha da desproletarização no interior do mundo do trabalho, cuja relação débito-crédito tem-se fortalecido no país em plena condição de consumidor na Era Digital. Resumidamente, a relação débito-crédito expressa o financiamento do custo da vida individual ou familiar identificado como débito financeiro que, mesmo para aqueles vinculados à relação salarial, dependem do rendimento (crédito) pontualmente obtido da contrapartida do exercício de trabalhos gerais diversos. Em grande medida, a intermediação das plataformas digitais atende desde serviços profissionais (psicólogos, coach, telemedicina, cursos remotos, entre outros), passando pelos especializados (vendedor, entregador, youtuber, influencer e outros) até os mais simplificados (microtarefas variadas).

De forma dispersa geograficamente, o trabalho na Era Digital tem sido externalizado através da disponibilização da contratação de multidões de trabalhadores disponíveis (crowdwork), sem que horário e lugar sejam determinados previamente, permitindo crescentemente a sua realização em casa (teletrabalho). Sem regulação, a intensificação do trabalho tem sido brutal, pois lastreada em aplicativos decorrentes do curso da revolução informacional que aproxima o labor, muitas vezes, às ocupações já existentes, não fossem as novas ferramentas da digitalização.

Nessa mudança de época, as instituições de representação de interesses de classes e frações de classes sociais pouco conseguiram se aclimatar. A prevalência da forma hierárquica e rígida de atuação e organização, própria da antiga sociedade industrial, coincide com o esvaziamento da tradicional base social e dos filiados, impactando negativamente na capacidade de ação política, bem como na credibilidade e soberania tecnológica.

Realizada cinco anos antes da brasileira, a reforma trabalhista espanhola objetivou fundamentalmente flexibilizar mais a relação contratual, fracassando na elevação do nível do emprego. No Brasil, a reforma do governo Temer foi muito mais longe do que a desregulação da relação contratual, pois visou reduzir o custo laboral, como, por exemplo, na indústria, que diminuiu em 1/3 o custo total horário em comparação aos EUA.

O modelo brasileiro foi mais grave do que o modelo antilaboral espanhol, pois atacou o sindicalismo e bloqueou o acesso à justiça do trabalho para o conjunto da classe trabalhadora. Ademais da necessária reversão da “deforma de Temer”, cabe perfeitamente a construção democrática da nova Carta Nacional do Trabalho: a CLT contemporânea do trabalho em plena Era Digital.

 

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