Artigo: Liberalismo e fascismo, por Marcio Pochmann

“Ao operarem como se fossem arranjos de mútua ajuda, contam também com o apoio de poderosos da política tradicional, de meios de comunicação e de oligopólios econômicos”, afirma Marcio Pochmann

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Marcio Pochmann, economista e presidente do Instituto Lula

Sobre uma potencial redução do papel do Estado, a defesa do Estado mínimo significa que o Estado deveria intervir o mínimo possível em questões consideradas como o campo da religião ou da vida íntima (leia-se moral) e não necessariamente implicariam em uma redução de serviços públicos, como a educação e a saúde. Kalil, I. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair BolsonaroFESPSP, 2018.

O fascismo não foi um acontecimento isolado e pontual no tempo passado do capitalismo, mas produto integrante do seu funcionamento, sobretudo quando desregrado pelos mercados a dirigir praticamente sozinhos o destino humano. Enquanto a burocracia estatal se mantinha a serviço da ordem dos mercados, a burguesia se tornava ainda mais poderosa sobre a totalidade dos indivíduos não proprietários, cuja perspectiva de sobrevivência se subordinava à ideologia do mais apto[1].

Pela crescente autonomização da economia em relação às finalidades da esfera política, suas consequências perversas para a sociedade deixavam de ser mitigadas por ação das políticas públicas. Na catástrofe do descrédito instaurada pelo desemprego e abandono de expectativas futuras melhores, a democracia se enfraqueceu, substituída por incessantes buscas de autoproteção entre os mais fortes, sobretudo pelo poder armado.

Na primeira metade do século passado, a manifestação fascista se reproduziu a partir de condições objetivas vinculadas à regressão socioeconômica, com a diversificação de movimentos de massa, muitos consentidos e apoiados pela benevolência dos poderosos. Diante da crise de autoregulação do sistema de mercado no capitalismo europeu, a sincronia com a emergência fascista ofertando autoproteção foi direta e imediata[2].

No Brasil, guardada a devida proporção, a presença do fascismo nos anos de 1930 foi significativa. Não apenas o Partido Nazista se apresentou organizado, como o movimento fascista representado pela Ação Integralista Brasileira foi o primeiro e importante partido de massas no país.

Entre os anos de 1928 e 1937, por exemplo, o nazismo envolveu quase 3 mil membros adeptos das ideias de superioridade racial, assumindo a posição de maior Partido Nazista formal existente fora da Alemanha que chegou a contar com 83 filiais pelo mundo, segundo registros do Ministério das Relações Exteriores de Hitler. No caso da Ação Integralista Brasileira que existiu entre 1932 e 1938, o seu grande líder, Plínio Salgado, comandou o movimento fascista que contou com cerca de um milhão de adeptos distribuídos por mais de três mil grupos organizados nacionalmente e conectados por cerca de cem jornais descentralizados no território.

Nos dias de hoje, o desregramento dos mercados, proporcionado por décadas de predomínio neoliberal impõe a disciplina dos grandes conglomerados a protagonizar a financeirização da riqueza, cujos interesses objetivos escapam a todo e a qualquer justo controle. O resultado disso tem sido o enfraquecimento das instituições do regime democrático, especialmente para a classe trabalhadora organizada, pois crescentemente submetida à competição sem limites da contratação por menor custo de produção[3].

Embora os mercados estejam muito distantes de serem definidos atualmente pela autoregulação, a esfera política tem sido profundamente subalternizada pelos interesses dos detentores de riqueza. Ao conduzir o funcionamento da economia despossuída de contrapesos, o desemprego se massifica, destruindo esperanças de um por vir superior que não seja a ideologia do empreendedorismo a apostar na sobrevivência do mais forte.

Nesse sentido, o reaparecimento de grupos armados na oferta da autoproteção à legião dos desvalidos e desesperados diante do curso atual da regressão econômica e social brasileira. Assim, avançam as organizações das forças sociais assentadas na promessa de segurança (e violência) pelas práticas do quotidiano ancoradas em poderes de polícia, milícias, crime organizado e igrejas.

Ao operarem como se fossem arranjos de mútua ajuda, contam também com o apoio de poderosos da política tradicional, de meios de comunicação e de oligopólios econômicos, obtendo cada vez mais adeptos da proteção frente a barbárie que avança com o desregramento dos mercados. Se a receita neoliberal faz encolher os serviços públicos e os mecanismos de proteção social e trabalhista, o fascismo se reaviva por operar como alavanca conectada nos problemas nacionais apresentados como aparentemente insolúveis.

Com esse espírito, o governo bolsonarista ousou desrespeitar a lei sagrada do tripé da política macroeconômica (câmbio flutuante e metas fiscal e de inflação) adotada desde 1999, tornando a taxa básica de juros real negativa e operando à margem do teto de gastos públicos. Reinventa a política enquanto luta por valores inegociáveis, entendendo como inimigos os que contrariam o seu percurso, quer seja no poder público constituído (judiciário, partidos, agências reguladoras e outras), quer seja na sociedade civil (meios de comunicação, ONG’s, sindicatos e outros).

Ademais de seguir guardando viabilidade eleitoral, o fascismo em organização busca ser engrandecido através de sua interpenetração no meio econômico e social. Do parlamento de rachadinhas às práticas milicianas, das conexões com ilegalidades, muitas vezes acobertadas, à generalização das trambicagens, os movimentos de algumas igrejas e polícias seguem estruturando ofertas de proteção aos sobrantes de toda a ordem.

[1]. Mais detalhes em: Marcuse, H. Tecnologia, guerra e fascismo. Unesp, 1999.

[2]. Descrição com referência em: Polanyi, K. A grande transformação. 2a ed. Compus, 2000.

Marcio Pochmann é economista e presidente do Instituto Lula.

Artigo publicado originalmente no site Carta Maior

 

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