Benedita: da favela para o poder.

A deputada federal Benedita da Silva fala de aborto, fome, estupro e pede mais mulheres na política.

Em um intervalo de cinco anos o Rio de Janeiro viu cinco dos seus ex-governadores eleitos presos por acusações diversas de corrupção, de compra de votos a fraudes. E no fim de abril testemunhou uma queda de Wilson Witzel (PSC-RJ), o primeiro governador da história do país a sofrer um impeachment .

“Isso é muito ruim para quem pratica corrupção, mas também para quem quer ser político, porque nós ficamos com essa mancha: ‘Fulano é isso, fulano é aquilo’. Com alguns conseguem provar, com outros, não”, diz Benedita da Silva (PT-RJ), 79, primeira e única mulher e negra a comandar o estado, entre abril de 2002 e janeiro de 2003, com a saída do então titular Anthony Garotinho.

Benedita tenta provar que não cometeu improbidade administrativa quando esteve à frente da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio, entre 2007 e 2010, carga que ocupou durante o primeiro mandato do governador do PMDB Sérgio Cabral, que hoje está preso.

O Ministério Público acusa uma ex-secretária de fraudes em convênios que totalizam R $ 32 milhões, e a Justiça determinou em 2015 o bloqueio de seus bens. O MP também acusou seus dois filhos, Pedro Paulo, 57, e Nilcea da Silva, 58, de constarem da lista de funcionários da UERJ e serem remunerados sem trabalhar, entre 2010 e 2011.

As acusações do MP ainda não foram julgadas pelo Tribunal de Justiça do Rio, por isso ela pôde se candidatar à Prefeitura do Rio em 2020, ficando em quarto lugar.

Em seu quinto mandato, uma deputada federal nega como acusações feitas pelo MP e necessariamente que o racismo é um fator do pré-julgamento feito a ela. “Não estou dizendo que isso aconteceu comigo porque sou negra. Mas o que acontece na vida do negro e da negra? Primeiro, você condena. Depois, a gente que se vire para provar que não é isso”, diz.

Em 2003, Benedita teve outra acusação de corrupção, no caso, de mau uso do dinheiro público quando comandava a extinta pasta da Assistência e Promoção Social do governo Lula. Ela, que desde os 26 anos é evangélica, verba destinada a viagens oficiais para se hospedar em um hotel de luxo em Buenos Aires, quando esteve na cidade para um encontro de cunho religioso. Na ocasião, alegou que teve reuniões oficiais, mas depois devolveu o dinheiro usado.

Mesmo assim, foi denunciada pela Procuradoria-Geral da República por improbidade administrativa em outras duas viagens oficiais anteriores, além da feita à Argentina: a Portugal, para também um evento de cunho religioso, e aos Estados Unidos. Em ambas, ficou dias a mais nas cidades e levou assessoras, acarretando em gastos adicionais aos cofres públicos.

Um mês depois, foi demitida pelo então presidente Lula. Depois, o Tribunal Regional Federal arquivou o processo porque não foram comprovadas ilegalidades nas viagens a Portugal e aos Estados Unidos. Na feita para a Argentina, considere a devolução do dinheiro pela ex-ministra.

“Um dia a verdade vai aparecer, ninguém pode ser esperto a vida inteira. Isso serve para o bem e para o mal. Um dia vamos descobrir se você é uma pessoa inocente ou se você realmente é uma pessoa comprometida. espero na maior tranquilidade.”

 

 

 

 

 

 

 

 

A filósofa mineira Lélia Gonzalez (1935-1994) escreveu, na década de 1980, que a mulher negra está fortemente presente na formação material / espiritual da sociedade brasileira. E foi nessa mesma década que Bené, como é chamada pelos amigos, começou a aparecer em espaços que depois seriam abrigados por nomes como Marielle Franco, vereadora negra e lésbica executada em 2018.

Filha de uma lavadeira e de um pedreiro, Benedita viveu até os 57 anos na favela Chapéu Mangueira, na zona sul do Rio. Foi trabalhadora doméstica, vendedora ambulante, auxiliar de enfermagem e professora, tendo completado a faculdade de Serviço Social aos 40 anos.

Foi a primeira mulher negra e favelada eleita vereadora do Rio (1982) e senadora (1994). Em sua trajetória de 39 anos de vida pública, se destaca pela atuação em projetos pelos direitos humanos e das mulheres. Em 2013, foi relatora na Câmara da PEC das Domésticas , que garantiu direitos às trabalhadoras domésticas.

Na vida privada, a evangélica Benedita também acumula histórias: foi estuprada aos sete anos, perdeu dois filhos recém-nascidos e precisou fazer um aborto.

A deputada passa uma pandemia de isolamento com seu companheiro há 20 anos, o ator Antônio Pitanga, junto ao enteado, Rocco, e duas filhas dele, no Aterro do Flamengo, no Rio, e participa virtualmente das aulas da Câmara. Foi de lá que ela, que tem também uma enteada, a atriz Camila Pitanga, falou a Universa por videochamada.

Seu mandato termina em 2023, mas ela diz que não tem planos de se aposentar. Entretanto, já sabe como gostaria de ser lembrada. “Como uma pessoa que defendeu os direitos humanos”, diz.

No dia em que assassinaram para Marielle Franco, essa mulher estava numa palestra dizendo que eu era uma referência sua. Eu quero ver as mulheres negras chegando lá

 

“Fiz um aborto porque meu corpo pertencia ao Estado”

Durante seu primeiro casamento, dos 16 aos 39 anos, Benedita viu dois filhos morrerem dias após o parto. O primogênito contraiu uma infecção no cordão umbilical, e o terceiro nasceu prematuro e foi enterrado como indigente, pois não havia recursos para pagar o enterro.

Depois, já sendo mãe de Nilcea e Pedro, engravidou novamente, mas com a família já passando fome, viu que não daria para sustentar mais uma boca e então fez um aborto. “Estava com fome, desempregada, todo mundo morrendo em casa. Ia catar xepa na feira. Não outro faria aborto, mas naquela situação, quem quisesse me condenar, que me condenasse, porque não tinha para onde ir”, diz.

Sou mãe de quatro e de um aborto. Mas não levo essa situação para uma discussão sobre ‘Meu corpo, meu direito’, porque o meu corpo pertencia ao Estado. Ele dizia que a gente botava muito filho no mundo, que a economia não estava bem por causa dos pobres. O Estado não me dava proteção para que eu não engravidasse de dez em dez meses

Mas não quero passar essa ideia de que as pessoas que estão miseráveis ​​têm que sair e fazer o aborto. Ele é feito numa situação extrema, não na frieza que às vezes colocam. ”

Ela afirma, no entanto, não acompanha a maioria de seus colegas da mesma religião, da chamada bancada evangélica, em votações na Câmara. No momento, é contrária ao projeto do “Estatuto da Gestante”, que quer retirar o direito já conquistado ao aborto legal em casos de estupro, da gravidez representar risco à vida da mãe ou de o feto ter anencéfalo.

Sempre faço questão de dizer com todas as letras que não sou a favor do aborto, mas tenho o papel de proteger essas pessoas que já conquistaram o direito ao aborto legal

“Deveríamos fortalecer as leis para que o aborto não acontecesse. É isso que eu acho que uma bancada evangélica deveria fazer. Deus diz: ‘Deixai vir a mim as criancinhas’, mas precisa ter terra, casa, emprego, educação, né?”

 

“O estupro deixa marcas profundas. É peçonhento”

A deputada conta que foi estuprada aos sete anos de idade por um amigo dos pais que durante anos morou em sua casa. Decidiu só revelar que havia sido vítima de violência sexual após a morte deles, durante uma entrevista. E diz que até hoje se apega à religiosidade para lidar com as dores desse crime.

Eu me calei e sofri todo o tempo. E, para mim, isso é … não sei se eu fico numa situação em que eu fico muito tocada em qualquer violência, mas se ela se der com a criança, fico muito mais. E se para estupro, não passa na minha frente, não conte com a minha solidariedade, eu digo diante de Deus. É uma coisa horrível e eu levei anos e anos e anos para poder dizer isso

“Porque a gente é que é a culpada. Até hoje dizem: ‘As meninas gostam, elas querem’. Isso deixa marcas profundas. É doído demais. É peçonhento você ter algum tipo de relação com uma pessoa que você não quer”, fala . “Garanto que o maior psicólogo da minha vida se chama Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo.”

Precisamos rever as leis, com a participação da mulher. A maioria da população é pobre, é mulher e é negra. Os partidos políticos têm que garantir recursos para fazer campanha para as mulheres
Benedita da Silva

“Nunca aceitei esmolar”

Em 1982, Benedita foi eleita vereadora do Rio pelo PT sob o slogan “negra, mulher e favelada”. Tinha acabado de se unir ao marido, o líder comunitário Agnaldo Bezerra dos Santos, mas quando chegou à Câmara foi assediada pelos colegas.

“A conversa lá, por eu ser da favela, era para ver quem iria sair comigo primeiro, como se eu estava disponível. Era muito bem casada e não ia me dar a isso. Mas existe essa violência do ‘não te dou isso, porque você não quer sair comigo ‘”, fala.

Essas coisas absurdas deixam marcas. Elas fazem com que você se considera feia, desrespeitada. Então fui para cima e falei: ‘Sou uma mulher igual a todas, mas de cor e classe diferentes. Tenho minha beleza própria, minha dignidade, meu caráter ‘. E nunca aceitei esmolar

“O machismo e o racismo saíram do armário”

Em seus 39 anos de vida pública, Benedita viu a ascensão de mulheres trans e também de pretas na política, como Marielle Franco (PSOL-RJ) e, recentemente, Kamala Harris , primeira mulher e negra vice-presidente dos Estados Unidos. Não por isso, diz, o ambiente tornou-se mais acolhedor a elas. Ao contrário. Para ela, o racismo e a violência de gênero dentro da política estão mais escancarados.

Um exemplo recente: o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), se referiu a colegas mulheres integrantes da CCJ como portadoras de vagina .

“Nós ouvimos isso lá quase todo dia. De um tempo para cá tinha o racismo, o machismo, mas a maioria estava nos armários. À medida que começamos a ir para esses espaços, onde eles sempre mandaram, nomeados a nos agredir à luz do sol “, diz Benedita.

“Eu encontrei o machismo e o racismo em tantos outros ambientes que eu jamais pensaria, porque sempre pensaram que a ralé éramos nós e tudo que era ruim estava aqui, na base da pirâmide social.”

Deveríamos fortalecer as leis para que o aborto não acontecesse. É isso que eu acho que uma bancada evangélica deveria fazer. Deus diz: ‘Deixai vir a mim as criancinhas’, mas precisa ter terra, casa, emprego, educação, né?
Benedita da Silva

De miss do samba a evangélica que ouve hinos de louvor

O Rio de Janeiro estava completando seu quarto centenário, em 1965, quando uma jovem Benedita, de 23 anos, foi convidada para representar o bairro de Copacabana no concurso de Miss Samba. No início, quando amigos pediram para ela entrar na disputa, tentou se esquivar dizendo que não deveria poder participar uma mulher com filhos. Depois disse que não teria dinheiro para a fantasia de Baiana, mas acabaram conseguindo o traje de graça.

“Eu falava: não tenho roupa, não tenho nada, como que eu vou fazer esse negócio?”, Lembra. “Não tinha desfile de maiô, graças a Deus. Não ia bancar isso de jeito nenhum. Carnaval sempre brinquei, mas minha roupa mais desnuda foi aquela de baianinha. Então topei e acabei ganhando.”

Admiradora do Carnaval, a deputada conta que já integrou ala de compositores de escola de samba e desfilou, em 1998, pela Caprichosos de Pilares, cujo enredo era sobre uma raça negra e homenageava nomes como Martin Luther King e Nelson Mandela, além do seu.

Filha de uma umbandista, Benedita frequentou terreiros até a morte da mãe. Depois, virou católica e chegou a trabalhar nas comunidades eclesiais de base com o teólogo Leonardo Boff, 81, que deixou de ser padre por defensor a Teologia da Libertação – uma corrente nascida na América Latina que pede uma aproximação da Igreja Católica com os pobres e mudanças sociais. Mas, aos 26 anos, diz, “fui para a igreja evangélica e tô lá até hoje”.

Ela, que é da Igreja Presbiteriana Betânia, conta que no momento tem ouvido mais hinos religiosos, mas que nunca deixou de lado o gosto pelo samba. “Eu gosto muito de MPB, não escondo isso. Tem algumas tradições de denominações religiosas que só ouvem mesmo [hinos] e gostam. Eu não, eu sou uma pessoa assumida, eu gosto de MPB”, diz. “A minha casa é uma casa de artista. Então, a gente tem muita relação com eles [músicos]. Eu vou ao teatro, ao cinema, gosto da cultura.”

“O Pitanga vai se casar com aquela cafona?”

Foi justamente pela religião de Benedita que suas amigas viram com seu terceiro casamento, com Antônio Pitanga. Ela e o ator, “um homem” sempre cheiroso, infernal, lindo demais “, como alunos a ex-namorada Maria Bethânia no documentário” Pitanga “, de Camila Pitanga e Beto Brant, se uniram em 1992, três anos após a parlamentar ficar viúva pela segunda vez.

Eu conhecia o Pitanga, né? Um cara famoso, de televisão, galanteador, namorador, e tudo aquilo me preocupou um pouco. Aí minhas amigas diziam: ‘Você é louca, como vai casar com esse homem, dono do mundo? Ele vai pirar sua cabeça ‘. E o lado do Pitanga ficava: ‘Mas ele vai casar com aquela mulher cafona, evangélica? Como pode? ‘

Os dois cogitaram mesmo colocar um ponto final na paquera, mas a paixão deu samba. “Eu acho que ele estava muito interessado, porque eu disse: ‘Só vou ficar contigo, se você casar comigo”, lembra. E ele casou. “Já peguei Camila e Rocco crescidos, conversei com meus filhos também e me dou muito bem com eles, temos o maior carinho, maior amor. Eu e o Pitanga somos o casal 20.”

Outro dia estava conversando sobre sexualidade com a juventude e disse: ‘Idoso ama como nunca, porque ninguém tá interessado se tem fortuna ou não. A gente só quer amar e ser amado e isso inclui todas as coisas até o dia em que a natureza disser ‘agora descansa’
Benedita da Silva

Fonte: Universa (UOL)

 

Da Redação, Agência Todas.

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