Diante da pandemia, Bolsonaro dança com a morte à beira do abismo
Brasil bate mais um recorde e ultrapassa a Itália em número de casos de Covid-19. País está ameaçado pela condução desordenada por parte de quem deveria coordenar ações contra crise sanitária. Subnotificação dos números de casos e mortes e baixa testagem camuflam situação que, mesmo a partir de números oficiais, já é trágica: país já bateu 15 mil mortos
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O Brasil fechou o fim de semana com uma profusão de projeções sombrias: o país bateu a marca de 15 mil mortes e superou a Itália em número de casos, com 233,6 mil registros de infecções por Covid-19. A falta de comando, a inércia e o estado de conflito permanente na condução da crise do coronavírus pelo governo Bolsonaro estão levando o país ao abismo. A demissão de Nelson Teich do comando da Saúde elevou o tom agudo da crise. No sábado, o presidente Jair Bolsonaro desistiu do pronunciamento que faria em cadeia nacional para defender o afrouxamento das medidas de isolamento social.
O Departamento de Segurança e Saúde do Trabalhador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) divulgou pesquisa que aponta um número de pessoas infectadas no Brasil 16 vezes maior que o registro oficial. A discrepância com os dados oficiais, diz o estudo, ocorre pela baixa testagem. Os pesquisadores projetam 55 mil casos da doença e mais de sete mil mortes para os próximos dez dias, apenas no Rio de Janeiro.
Outro estudo, realizado no fim de abril pelo portal ‘Covid-19’, já apontava que, naquele momento, o número total de contágios no país poderia ter ultrapassado a marca de 1,2 milhão se os casos subnotificados fossem considerados. Nesta quarta (13), a análise de subnotificações alcançou a marca de 2,5 milhões.
Se os números fossem ajustados para dados mais próximos da realidade da doença, o Brasil já estaria atrás apenas dos Estados Unidos em casos confirmados. A questão é que os brasileiros realizaram 14 vezes menos testes que os americanos.
Com 330 milhões de habitantes, os Estados Unidos chegaram a 10,7 milhões de análises concluídas até sexta (15), maior quantidade de testes feitos por um país. No Brasil, foram realizados apenas 735 mil testes, mesmo com mais de 212 milhões de pessoas. A taxa de análises por um milhão de habitantes no território norte-americano é de 32,563. No Brasil, esse número é de 3,462.
Segundo o site ‘Worldometers’, que compila dados do mundo inteiro, o Brasil fica à frente apenas do Irã no ranking de maiores testadores do Top 10 de países mais atingidos pela doença. Proporcionalmente, também não está nem entre as nações da América Latina que mais realizam testes.
Com uma população quase 10 vezes menor do que a brasileira, a Venezuela é a que mais testou seu povo. Foram feitos mais de 18 mil exames para cada um milhão de pessoas. Depois estão Chile e Peru, com 17.876 e 17.845 análises por milhão de habitantes. O Brasil ainda fica atrás do Uruguai (8.988), Equador (5.050) e Colômbia (4.484).
Mas mesmo com a subnotificação, o portal ‘iG Último Segundo’, com base nos dados divulgados até esta sexta pela Universidade Johns Hopkins, centro global de estudos nos EUA, projetou que por volta de 18 de maio o Brasil ultrapassará os valores de Itália e Espanha, alcançando o posto de terceiro em número de casos. E superará o Reino Unido em 24 de maio, caso as atuais médias de crescimento se mantenham.
No momento, o Brasil ocupa a sexta posição no ranking dos mais atingidos pela doença, após bater os totais de Alemanha e França. Está atrás de Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, Espanha e Itália. Mas esses dois últimos países já apontam tendência de queda nos números de casos, enquanto nossos dados seguem direção oposta.
Para o médico epidemiologista e ex-diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) Alexandre Kalache, nesse ritomo, em julho o Brasil deve ultrapassar os números dos Estados Unidos, atual epicentro da doença. “É muito sério e pode vir a ser trágico num período muito curto”, afirmou em Live do jornal ‘Valor Econômico’, nesta sexta.
Kalache, que lida com projeções de centros acadêmicos como o Johns Hopkins Hospital, a Universidade de Oxford (Inglaterra) e a OMS, avalia que a realidade socioeconômica do Brasil influenciará diretamente na evolução da pandemia. “Minha avaliação é sombria, primeiramente porque temos uma subnotificação imensa, não só de casos, mas também de mortes”, acusou o médico, criticando a condução da crise pelo governo.
Testes só na propaganda
A inépcia com que o governo Bolsonaro vem enfrentando a crise desde 30 de janeiro, quando a OMS declarou que o surto de Covid-19 constituía Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – mais alto nível de alerta – levou a atrasos na adoção de medidas fundamentais para conter o avanço da doença, como a testagem da população.
Embora a ampliação do número de testes tenha sido anunciada ainda pelo primeiro ministro da Saúde exonerado, Luiz Henrique Mandetta, o Brasil só conseguiu distribuir até agora 17,7% dos testes prometidos. Do 17 milhões de exames planejados para até o fim de maio, menos da metade (8,1 milhões) foram efetivamente entregues.
O sucessor, Nelson Teich, já fora do governo, anunciara, há algumas semanas, que o país chegaria a um total de 46 milhões de testes. Mas o cronograma divulgado pelo Ministério da Saúde nesta quinta (14) prevê que a distribuição deve ser concluída apenas no fim do ano, muito depois do pico da pandemia no país.
O Ministério da Saúde afirma que o Brasil está na segunda de um total de cinco fases para a distribuição dos exames. Mas a quantidade que de fato chegará aos Estados mês a mês depende da capacidade de entrega dos fornecedores, num cenário de escassez global de insumos e de conflitos inapropriados com países produtores, como a China.
O Brasil não sabe sequer quantos testes já foram efetivamente realizados, pois ainda não conseguiu somar aos dados dos laboratórios públicos os exames realizados na rede privada. Apenas os resultados positivos feitos nos locais particulares entram no boletim diário divulgado pelo Ministério da Saúde. Pelo documento, o país tem cerca de 150 mil amostras à espera de resultado. Até hoje, foram feitos 350 mil diagnósticos nos laboratórios públicos, segundo o ministério.
A escassez de testes e a demora para processá-los estão na origem do problema da subnotificação no país. E a experiência internacional mostra que a informação subsidia o planejamento de estratégias vitais, como o momento certo de flexibilizar as medidas de isolamento social.
Nesta quinta (14), o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, afirmou em audiência pública virtual no Congresso que “a saída do distanciamento social dependerá de uma série de fatores, como a massificação dos testes”. Mas o próprio Ministério da Saúde, agora acéfalo, admitiu no mesmo dia que ainda não é possível sequer vislumbrar quando o país deverá apresentar uma estabilização ou desaceleração do contágio. No momento, o ritmo de infecção cresce em média 7,3% ao dia no país.
Isolamento abaixo do recomendado
Uma parceria entre o jornal ‘Estado de S. Paulo’ e a empresa de tecnologia Inloco gerou um monitor de isolamento que apontou uma média de isolamento no país de 43,4%, enquanto especialistas recomendam o nível de 70%. Nenhum estado brasileiro chega nem perto disso – todos apresentam índice de isolamento inferior a 51%.
Segundo os pesquisadores, nos últimos dias o número de pessoas que evitou sair às ruas ficou em patamar próximo ao da primeira quinzena de março, quando os casos de Covid-19 ainda eram reduzidos no Brasil e o presidente Jair Bolsonaro apontava a doença como mera “gripezinha”.
O pico de isolamento no país foi registrado em 22 de março, quando 62,6% da população ficou em casa, mas o afrouxamento da quarentena a partir de então coincide com o momento em que o sistema público de saúde começa a entrar em colapso e em que até mesmo a rede privada dá sinais de não conseguir absorver a demanda de pacientes.
O Amazonas – que bate recordes diários de casos, está com o serviço público de saúde saturado e sofre até para atender ao aumento da demanda por urnas funerárias – tem menos da metade dos habitantes em isolamento. Ainda assim, o número é melhor do que no Centro-Oeste, onde foram registrados os três piores índices: Goiás tem apenas 36,9%, e Tocantins (37,5%) e Mato Grosso (39%) vêm na sequência.
“Todo o avanço obtido com a rápida adoção das políticas de distanciamento pode ser perdido caso o relaxamento das medidas se dê de forma descontrolada. Se isso acontecer, a esperada redução no número de óbitos, observada em muitos países até agora, pode acontecer mais tardiamente ou com menor intensidade no Brasil”, alertou o epidemiologista e reitor da Universidade Federal de Pelotas Pedro Hallal, em debate promovido pelo portal ‘Uol’.
Inércia e falta de comando
Os dados do ‘Portal Transparência – Registro Civil’ revelam que entre 16 de março e 8 de maio, os cartórios brasileiros registraram 3.307 mortes por SRAG. O número é mais de 1.500% superior ao observado no mesmo período do ano passado, quando 210 pessoas morreram no país. Uma das consequências mais agressivas da Covid-19, a síndrome foi registrada pela primeira vez no mundo em 2002. Ela atinge a capacidade de funcionamento dos pulmões e causa dificuldades na respiração, febre e dores.
A especialista em Análises Clínicas Ana Paula Melo Mariano explica que a falta de testes potencializa a subnotificação e gera inconsistência nos dados. “Nós não estamos fazendo testes na quantidade satisfatória. O período de incubação do vírus é de cinco a seis dias, o agravamento ocorre do sexto ao décimo dia e as internações começam do décimo ao décimo quinto dia. Então, quando estamos testando, estamos olhando para o passado, estamos correndo atrás do passado. Quando na verdade precisaríamos ter o maior número de testes sendo executados no início.”
O matemático Paulo Angelo Alves Resende, pós-doutor pela Universidade de Brasília (UnB), diz que a subnotificação é um processo normal, mas quando ela se refere também ao número de mortes, a preocupação aumenta. “A detecção do vírus não é tão simples e é impossível ter 100% de acerto nos dados. Para aspectos de simulação, se a subnotificação for constante, dá para trabalhar com os dados. Isso se houvesse um padrão na subnotificação, mas isso não está acontecendo. Agora, a subnotificação de óbitos é preocupante. A gente precisa que esse número seja mais confiável”, ressaltou.
Ana Paula e Paulo Angelo fazem parte do observatório PrEpidemia, iniciativa ligada à UnB que acompanha o crescimento da pandemia e seus impactos por meio de modelagens matemáticas e geográficas. A primeira nota técnica do grupo analisa as possibilidades de crescimento de casos no Distrito Federal em diferentes cenários de isolamento social.
No documento, os pesquisadores compilam 11 princípios estratégicos para o controle da propagação. Entres os princípios estão, por exemplo, a transparência de dados, a participação social nas decisões, governança compartilhada entre cidades, acompanhamento psicológico da sociedade e a definição de protocolos padronizados para o tratamento. Ou seja, tudo o que o governo Bolsonaro vem negando ao Brasil.
Da Redação