Fernando Haddad: Desigualdade e perversão

Fala de Guedes sobre domésticas mostra que coisas voltarão à sua ordem, cada um no seu lugar

Na viagem em que Lula recebeu das mãos da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, o título de cidadão honorário da cidade —concedido durante sua permanência na PF—, tivemos a oportunidade de visitar o Laboratório de Desigualdade Mundial e conhecer a equipe liderada pelo economista Thomas Piketty.

Em ensaio na revista piauí, fiz uma afirmação que gerou bastante controvérsia à época (jun.17): “durante o governo Lula, os ricos estavam se tornando mais ricos e os pobres, menos pobres. Por seu turno, as camadas médias tradicionais olhavam para a frente e viam os ricos se distanciarem; olhavam para trás e viam os pobres se aproximarem. Sua posição relativa se alterou desfavoravelmente”. Tentava explorar os impactos políticos dessa dinâmica.

Dois dos pesquisadores do laboratório, Amory Gethin e Marc Morgan, elaboraram (out.18) o gráfico abaixo, que comprova o acerto daquela intuição. Ele nos diz que a população brasileira teve, no período 2002-14, um crescimento médio da renda total de quase 20%.

Os 70% mais pobres tiveram um crescimento superior à média. Entre o 70º e o 99º percentil, os brasileiros tiveram crescimento da renda inferior à média, embora apenas entre os percentis 85 e 95 houve queda real —de até 5%. O 1% mais rico teve crescimento acima da média; o top 0,01%, muito acima.

Bolsonaro parece engajado na perversão de alimentar o ressentimento das classes médias espremidas. A fala fantasiosa de Guedes sobre a ida de empregadas domésticas para a Disney é mais do que uma manifestação preconceituosa. É a declaração de que, na economia, as coisas voltarão à sua ordem, cada um no seu lugar.

Isso talvez explique por que alguém que corta o Bolsa Família do Nordeste, dispensa médicos em tempos de epidemia, transfere recursos da educação, enaltece policiais amotinados e congela o salário mínimo goze ainda de alguma consideração.

Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.
*Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo

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