Letras Por Elas | Conversa de mulheres: Por que nunca falamos sobre isso?

Uma jovem afegã e um marido moribundo. Uma família de iranianas conversam após o almoço. Diante do isolamento, duas obras falam sobre feminismo, diálogo e humanidade. 

Ilustração do livro Bordados, Marjane Satrapi

Ana Clara, Agência Todas 

Em tempos de pandemia e resguardo, surge o desafio de desfrutar o tempo entre as nossas para atender a uma medida sanitária e, ao mesmo tempo, não sucumbir ao isolamento e o fechamento de nossas fronteiras concretas e subjetivas. Mesmo as que são forçadas pela precarização do emprego a se deslocar pela cidade, as regras de não aproximação permanecem, os vínculos espontâneos diminuem e as ruas são sinônimo do absolutamente necessário, tornado-se apenas a casa o lugar da troca de afeto corporal e emocional.  

 

Trago para vocês duas obras sobre realidades de mulheres do Oriente Médio (Afeganistão e Irã) que se tocam em um ponto bastante sensível no cotidiano feminino — diálogo e feminismo. São elas: o filme “A Pedra de Paciência”, com a atriz iraniana Golshifteh Farahani, e o livro “Bordados”, da Marjane Satrapi.

No cinema, uma jovem afegã pobre assiste ao marido em coma dentro de casa por causa de um tiro. Com duas filhas e uma guerra civil no próprio quintal, ela leva as crianças para uma tia ‘liberal’ (no sentido de ser livre) e prostituta cuidar enquanto, forçada a ficar em casa, lida com seu parceiro estático, um herói guerrilheiro.

Fosse uma narrativa comum, os conflitos externos obviamente colocados – guerra, sobrevivência, opressão, relações sociais – seriam o eixo do filme, mas não são. 

A grande sacada da obra cinematográfica é sobrepor o conflito interno ao externo. A trama se desenvolve em um longo monólogo da jovem com o marido em que, aos poucos, ela revela os detalhes mais sórdidos da própria existência. 

 

Filme “A Pedra de Paciência”

 

O gatilho do diálogo vem à tona e traumas de infância, a relação com a religião, o casamento, a opressão, o próprio corpo e as decisões (ou não) sobre a própria vida começam a ser articuladas. 

A virada acontece quando a protagonista verbaliza a constatação “as mulheres não falam sobre isso”. As horas de monólogo com o marido que, no fundo, eram consigo mesma despertou a jovem para a realidade de que as mulheres não conversam sobre si mesmas e suas próprias questões.

 

As mulheres não falam sobre isso, monólogo do filme A Pedra de Paciência

 

A partir daí, suas reflexões com a pedra de paciência – nome dado ao marido influenciado por uma lenda contada pela tia liberal – partem para uma espécie de tomada de consciência e rompimento subjetivo com o status quo

Esse movimento também é acompanhado por contextualizações do “sistema de valores morais” da sociedade afegã – quando guardas entram na casa e ela precisa “se desonrar” – dizendo que vende o corpo – para não ser estuprada. 

O fato é que a possibilidade de falar sobre si mesma e as próprias questões torna-se um elemento tão libertador quanto fatores externos.

No livro “Bordados”, a proposta de Marjane Satrapi é semelhante, sob outro viés: ela apresenta os bate-papos “entre mulheres” da sua família que aconteciam após o almoço. A autora apresenta como essas conversas eram liberais e a importância de contar as próprias histórias em um mundo onde a voz masculina é predominante.

Esse protagonismo do inconsciente feminino revelado – seja entre mulheres, dentro do casamento ou socialmente – nas obras culturais contemporâneas significa o início de um aprofundamento na subjetividade da opressão. 

E não estou falando em colocar mulheres como protagonistas, isso não é nada novo – mas, sim, o diálogo, a conversa, o conteúdo da voz, o exercício da relação com o outro que se transforma no catalisador do rompimento com o confinamento social, a separação de gênero – aquilo que só pode ser dito “entre mulheres”, pois “eles”, “os homens”, nunca vão entender.

 

Trecho do livro “Bordados”, de Marjane Satrapi

 

Esse ponto é relevante porque o acúmulo sobre os fatores opressores externos já está em pauta na sociedade – apesar de ainda precisarmos avançar em questões básicas. Mas esse aprofundamento dos elementos sutis – daquilo que não é “visível” e nem pode ser mensurado em estatísticas econômicas, sociais e criminais – representa um passo importante na luta feminista. 

Afinal o quadro é tão, mas tão gritante que uma atitude tão profundamente humana como falar, conversar e se relacionar com o outro pode revelar o quão desumanamente construímos nossas relações de gênero.

 

Livro: Bordados

Autora: Marjane Satrapi

Ano: 2010

Editora: Companhia das Letras

País: Irã

 

Filme: A Pedra de Paciência

Protagonista: Golshifteh Farahani

Ano: 2014

País: Afeganistão, Alemanha e França.

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