Máquina de ‘fake news’ ofende Constituição e direito coletivo
A prática das milicias digitais que o bolsonarismo defende como “liberdade de expressão” contraria os direitos coletivos assegurados pela Constituição. Exemplo disso são as campanhas que promovem nas redes sociais para sabotar o combate à pandemia, que vão desde a defesa do uso da cloroquina, desautorizado pela OMS, até a propaganda de “remédios” milagrosos
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O ministro da Justiça, André Mendonça, ingressou na madrugada desta quinta-feira com pedido de habbeas corpus para impedir o depoimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) do ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ele foi chamado a se explicar depois de fazer ataques à Suprema Corte. O argumento de Mendonça, instruído pelo presidente Jair Bolsonaro, é “garantir liberdade de expressão dos cidadãos”. O ministro tenta confundir a opinião pública. O pedido de habbeas corpus foi estendido a todos os indiciados no inquérito aberto pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito que investiga as fake news, divulgadas pelo bolsonarismo para atacar adversários do governo, autoridades públicas, como parlamentares, e instituições, como o próprio STF e o Congresso.
É verdade que a Constituição, no artigo 220, assegura a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma”. O dispositivo aponta que as manifestações não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na Constituição. A Carta também garante que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV”. E, ainda, que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Tal regra, vale lembrar, não vigorou no período da ditadura, regime político que volta à ordem do dia nas manifestações de Bolsonaro.
Direitos não são absolutos e ilimitados
Em sua justificativa para instaurar o inquérito, Alexandre de Moraes destacou os limites entre o exercício da liberdade de expressão e a prática de crime, calúnia e difamação nas redes sociais. “A norma de Direito, por um lado, impõe a todos o respeito aos direitos de cada um, e em contrapartida, determina uma limitação sobre os direitos individuais, para assegurar a proteção aos direitos gerais”, argumentou. De acordo com o ministro do STF, a proclamação dos direitos individuais, conforme o texto, nasceu “para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem, contudo desconhecer a obrigatoriedade das condutas individuais operarem dentro dos limites impostos pelo Direito”. O ministro aponta que os direitos e garantias individuais, consequentemente, não são absolutos e ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna.
A prática das milícias digitais que o bolsonarismo tenta defender como “liberdade de expressão” contraria os valores de respeito aos direitos coletivos, assegurados pela Constituição. Exemplo disso são as campanhas que a milícia digital de Bolsonaro, alimentada pelo Gabinete do Ódio, promovem nas redes sociais para sabotar o combate à pandemia. Os textos e publicação defendem o uso da cloroquina, desautorizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e propagandeia o uso de “remédios” milagrosos. Um vídeo defendendo a água tônica como uma espécie de “vacina” contra o coronavírus, por exemplo, circulou nas redes bolsonaristas, com o argumento “científico” de que o produto “contém quinino, a base da cloroquina”. Outras fake news difundidas pelo Twitter, com nomes diferentes, mas textos iguais, mostravam pessoas, claramente robôs, “curadas” pelo uso da cloroquina.
Fake news explodiram na eleição
A máquina de fake news financiada por recursos de origem clandestina, e até mesmo oficial, entrou na vida dos brasileiros durante a campanha eleitoral de 2018, que produziu alguns dos hits da máquina de mentira e difusão do ódio. A mais escabrosa foi a acusação de pedofilia contra Fernando Haddad, o candidato do PT, durante o segundo turno. Outra foi a “mamadeira de piroca”, que teria sido distribuída para crianças nas escolas durante os governos do PT, como instrumento de “educação sexual”. Estes são exemplos do que as milícias digitais chamam de exercício da liberdade de expressão. Mais recentemente, o bolsonarismo promoveu ataques difamatórios contra autoridades do Congresso e do STF, o que levou à instauração do inquérito para apurar o caso.
“A liberdade de expressão é algo consagrado na nossa Constituição e não podemos tocar nela. No entanto, quem se manifesta tem que se responsabilizar. Não significa que eu possa ultrapassar minha liberdade para atingir a liberdade do outro”, reagiu o ex-ministro da Justiça no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, José Eduardo Cardoso. “Abuso é uma coisa, liberdade de expressão é outra. Tenho toda liberdade de falar, mas tenho que responder criminalmente”, explica.
Outro ex-ministro da Justiça, o jurista José Carlos Dias, concorda com Cardozo. Ele ressalta que a Constituição não garante “mentira, a calúnia ou a notícia falsa. “Este é o caminho que está sendo usado pelo gabinete do ódio, comandado por Carlos Bolsonaro, para atacar aqueles que se opõem ao governo”, critica.