Quem tem medo de atletas trans no esporte?

Artigo de opinião de Antonio Alonso para a coluna Campo Livre do UOL.

Foto: Veja

Tiffany Abreu.

Nos anos 1970, o nadador norte-americano Mark Spitz, dono de 11 medalhas olímpicas, foi um gênio do esporte e um fenômeno de mídia. Até abrir uma boca. Após abandonar as piscinas, sua promissora carreira de garoto-propaganda naufragou fragorosamente. Não faltou dinheiro, não faltou planejamento, não faltaram agentes. Faltou Mark Spitz.

Diz a lenda que o tubarão da piscina teria desabafado: “passei minha vida inteira focado em uma coisa: nadar mais rápido. Quando acabou, eu não estava preparado para nada”.

O esporte de alto nível faz isso. Demanda todo o tempo e todas as energias do sujeito, e um dia acaba. Todos aqueles anos dedicados a clínicas, tratamentos, cuidados com a nutrição, baladas perdidas, amores abandonados, fins de semana inexistentes, os dias de folga solitários? nada.

Giba foi um gênio em sua arte. Desses de dar orgulho de ser brasileiro. Fim. Giba tem opiniões simples sobre questões complexas, coisa que anda na moda. Resolveu a equação usando uma notícia falsa para embasar um comentário transfóbico , conforme noticiou este UOL . E mais, escolhida dar essa opinião em um canal que é uma câmara de eco: sem contraditório, só mesmo lugar para a claque.

O debate sobre a participação de atletas trans no esporte de alto rendimento costuma passar longe das questões importantes – e difíceis. Vamos supor que o interesse fosse científico: alguém estudou detalhadamente as transformações ocorridas desde o início da transição? Comparou com outras meninas e mulheres? Mediu hormônios, hematócrito, área muscular, força? Quem vai pelo caminho fácil, não se importa com essas perguntas, porque o preconceito é uma deliciosa fonte de certezas.

Sim, existem estudos científicos diversos sobre o tema. Um grupo liderado pela pesquisadora Joanna Harper publicou este ano no British Journal of Sports Medicine uma metanálise – técnica que permite comparar diferentes estudos – analisando 24 diferentes pesquisas científicas exatamente sobre a influência da supressão hormonal em mulheres trans.

Mas quer saber? Essa não é a questão mais importante. Até porque, cada grupo vai ler o artigo e sair com suas certezas reforçadas. A verdade é que hoje esse debate tem muito pouco a ver com ciência ou com justiça dentro das quatro linhas. Basta lembrar o caso da patinadora artística trans de 11 anos que foi barrada de competir. Alguém vai alegar que o problema era o nível de testosterona ou o desenvolvimento muscular? Em uma criança que nem entrou na puberdade? Não era lá e não é aqui.

O preconceito em torno dessa discussão faz quem ouve Giba imaginar que existe uma jogadora em quadra que é muito mais forte, muito mais alta, que salta mais e é mais veloz que todas as outras. Não é verdade. As estatísticas mostram uma atleta acima da média, mas que não disputa a liderança em nenhum fundamento.

Demétrio Vecchioli do Olhar Olímpico falou sobre isso, com propriedade . Durante a história, o esporte se viu desafiado a incluir o diferente. Nunca foi fácil. Aconteceu com as mulheres, com latinos nos Estados Unidos, com negros no país mais negro fora da África – sim, o Brasil.

A proposta de criar ligas segregadas é historicamente a proposta do preconceito. No beisebol americano a resposta foi como “Negro Leagues”, que segregavam negros e também latinos brancos. E não custa lembrar que em nome da justiça no esporte os negros foram de proibidos de jogar, inclusive nos tempos brasileiros. Afinal, os “profissionais” (pobres) estariam um nível físico acima dos moçoilos universitários admiradores do nobre esporte bretão.

E o esporte ficou maior – e melhor – cada vez que enfrentou esses desafios. Para além do negacionismo científico que o preconceito traz, ele interdita a discussão. O preconceito ignora a pergunta maior: para quê existe esporte? Apenas para colocar a bola na cesta, na rede ou no chão da quadra adversária? Para perpetuar preconceitos, espalhar fake news e ódio? Para depósito de frangos derivados? Nenhum gênio ou herói existiria nesse esporte aí. Nem homem, nem mulher, nem preto, nem branco. O esporte é maior que isso.

Fonte: Campo Limpo – UOL

Da Redação, Agência Todas.

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