Volta à ditadura: Bolsonaro quer nomear agora ‘reitores biônicos’
Ao editar medida provisória para permitir ao MEC definir nomes dos principais cargos de direção das instituições federais de ensino superior, presidente remete às práticas do regime militar de 1964: indicar interventores e cercear a autonomia universitária. PT recorre novamente ao STF e Congresso ensaia reação ao Palácio do Planalto
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O Brasil caminha rapidamente rumo às décadas de 60 e 70, na volta ao autoritarismo mais obtuso praticado pelos militares na história política do país. O presidente Jair Bolsonaro mais uma vez mostra seu apreço pelo uso da força para promover uma intervenção na vida acadêmica e universitária. Ao editar a Medida Provisória 979, que permite ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, nomear os cargos de direção das universidades e institutos federais, Bolsonaro retoma uma prática dos tempos da ditadura: nomear reitores biônicos.
A medida é uma afronta à autonomia universitária, garantida pela Constituição de 1988. A figura do reitor biônico remonta à mais brutal intervenção promovida pelos militares numa universidade brasileira, justamente a de Brasília, que estava no centro nervoso do Golpe de 1964. A UnB foi invadida em 1964, 1965, 1968 e 1977 pelos tanques militares e o objetivo principal da intervenção violenta e brutal era sufocar a dissidência política e prender líderes estudantis e professores que não concordavam com o arbítrio.
A Andifes, Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, reagiu à MP. “Suspender eleições e escolha dos dirigentes universitários ou condicioná-las ao fim incerto do período da pandemia e, depois, pelo período subsequente necessário para realizar a consulta à comunidade, até a nomeação dos novos dirigentes, na dependência dos humores do presidente da República, implica uma intervenção por tempo indeterminado, que tão somente revela um mal disfarçado pendor autoritário e uma chantagem política em desfavor da vida”, criticou a entidade, em nota à imprensa.
Resistência à intervenção
Nesta quinta-feira, a deputada Margarida Salomão (PT-MG) e outros parlamentares de oposição voltaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ingressar com um mandado de segurança contra a MP 979. Ao proibir a consulta à comunidade acadêmica — alunos e professores — para a definição do reitor o governo rasga a Constituição.
Segundo a oposição, a MP afronta o texto constitucional. O artigo 207 diz expressamente: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
O ex-ministro da Educação Aloizio Mercadante, presidente da Fundação Perseu Abramo, também alertou que a MP é uma aberração. “É nosso dever a defesa de princípios seculares e internacionalmente reconhecidos, como o da autonomia universitária e da liberdade de cátedra, que são essenciais ao estado democrático de direito”, destacou.
“São medidas autoritárias como essa MP que fazem crescer, cada vez mais, a indignação contra o governo e a formação de amplo movimento pelo impeachment de Bolsonaro”, adverte Mercadante.“Não há dúvidas que estamos apenas no começo de um processo social que deve se transformar, após a pandemia, em grandes manifestações de rua no Brasil, que farão o país voltar a respirar liberdade e os bons ares de democracia”.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), ensaiou nesta quinta-feira, 11, uma reação ao Planalto. Ele disse que o governo está promovendo uma intervenção no Congresso Nacional, ao editar a medida provisória. “Daqui a pouco não tem necessidade de lei. Vai editando uma MP sob outra sobre temas correlatos. Isso tira a relevância do parlamento”, criticou.
Precedentes perigosos
“A oposição está trabalhando para derrubar mais um ato arbitrário, antidemocrático e inconstitucional do governo Bolsonaro”, diz Margarida Salomão. “As instituições precisam reagir a mais uma ação fascista do governo”. O mandado de segurança lembra que A Constituição proíbe a reedição de MP que tenha sido rejeitada ou perdido sua eficácia.
Em dezembro de 2019, Bolsonaro editou a MP 914 que também retirava autonomia das universidades. A normativa caducou sem ter sido apreciada pelo Congresso. “Não cabe ao Executivo decidir, de forma unilateral, sobre a nomeação dos dirigentes de universidades federais e institutos federais”, diz a deputada petista. O senador Jean Paul Prates (PT-RN) também criticou a iniciativa do governo: “Chega de intervenção autoritária em universidades e institutos federais”.
A tentativa de sufocar as universidades, a inteligência e a vida acadêmica não é inédita por parte do governo Bolsonaro. No ano passado, o ministro Abraham Weintraub atentou contra as universidades e instituições federais, cortando verbas de manutenção para sufocar as reações às primeiras medidas autoritárias assumidas pelo presidente. No final de abril, o MEC anunciou o congelamento de R$ 1,7 bi dos gastos das universidades. A justificativa era patética. Weintraub disse que era comum encontrar sem-terras dentro dos campus e gente pelada.
Ao querer nomear “reitores biônicos” – escolhidos pelo MEC para que sigam a orientação política e ideológica, curvando-se às vontades do Palácio do Planalto – Bolsonaro tenta resgatar os interventores que, durante a ditadura, eram responsáveis pela manutenção de uma política de contenção da democracia, sufocando dissidentes e abrindo a temporada de perseguições.
Não seria de se estranhar se, depois de promover militares a ocupar cargos no Ministério da Saúde, entregue ao General Eduardo Pazzuelo, Bolsonaro passasse a indicar oficiais egressos das Forças Armadas para comandar as universidades. Durante a ditadura, isso foi uma prática comum.
As invasões da UnB
O Capitão de Mar-E-Guerra José Carlos Azevedo passou a atuar como interventor na UnB para impor a ordem e perseguir qualquer resquício de resistência à ditadura. Em 1976, foi nomeado reitor da UnB pelo governo Geisel, atuando como um cão de guarda do regime militar dentro do campus universitário da universidade, na Asa Norte. Ele morreu em 2010, por câncer.
Foi o capitão quem permitiu à Polícia Militar invadir o campus da UnB em 1977 para inibir uma greve estudantil. Em 6 de junho daquele ano, tropas militares invadiram a UnB, prenderam estudantes e intimaram professores e funcionários. O estopim era a greve que estudantes e professores declararam para dar um fim às agressões que sofriam e à perseguição de Azevedo.
A invasão mais violenta, entretanto, ocorreu em 1968. Os alunos protestavam contra a morte do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, assassinado por PMs no Rio de Janeiro. Cerca de 3 mil alunos reuniram-se na praça localizada entre a Faculdade de Educação e a quadra de basquete. Aquilo foi o estopim para o decreto da prisão de sete universitários, entre eles, Honestino Guimarães, morto e assassinato pelo regime militar logo depois.
Agentes da PM, da Polícia Civil, e da Polícia Política, o Dops, e soldados do Exército invadiram a UnB e detiveram mais de 500 pessoas na quadra de basquete. Ao todo, 60 acabaram presas e o estudante Waldemar Alves foi baleado na cabeça, tendo passado meses em estado grave no hospital.
Foi uma das mais brutais e traumáticas intervenções de forças do governo dentro de uma instituição universitária. A UnB, fundada por Darcy Ribeiro e por Anísio Teixeira em 1962, nasceu como esforço do governo João Goulart para reinventar a educação superior, entrelaçar as diversas formas de saber e formar profissionais engajados na transformação do país. A estrutura administrativa e financeira era amparada por um conceito novo nos anos 1960 e até hoje uma garantia estabelecida na Constituição Federal: a autonomia.
Da Redação